Enquanto os amores de Robert Mapplethorpe cozem em lume brando em Serralves, o Museu Berardo, em Lisboa,  abre duas portas para um labirinto onde nos podemos perder entre mais de 120 obras de 68 artistas, cada uma dela falando do amor com uma linguagem própria, cada uma delas destinada não a um público que a olhe de longe, mas a um amante que a reconheça e a testemunhe.

“Para mim, o imperativo cartesiano deveria ser ‘amo logo existo’ ou ‘existo logo amo’, porque o amor vem muito antes e muito depois do pensamento”, diz Eric Corne, que se afirma como “o realizador” desta exposição criada para o Museu de Arte Contemporânea de Marselha e que está agora em itinerância no nosso país. “Não gosto de me pensar como um comissário, muito menos como um curador, tento ser como um realizador de cinema e gostava que as pessoas vissem esta mostra como um filme, que percebessem os vários ambientes, jogos de luz, diálogos entre imagens”, explica ao Observador enquanto nos leva a percorrer uma espécie de labirinto de corredores, salas amplas, luminosas, sala escuras, recantos, becos, um desenho espacial que nos remete para a dimensão do Amor como lugar onde inevitavelmente nos perdemos.

O longo beijo de Ulay e Marina Abramovic em “Breathing In  Breathing Out”, 1978

E não são poucas as razões para aceitarmos o desafio de Eric Corne, desde logo porque começamos por fazer uma homenagem a Helena Almeida, a artista portuguesa que recentemente perdemos, revisitando algumas obras suas, como a que serve para divulgar a exposição: a das pernas de um homem (Artur Rosa, o companheiro da artista) e de uma mulher amarradas uma à outra, evocando o carácter tormentoso do Amor, as dificuldades e atribulações de um caminho feito com as pernas de corpos diferentes. Mas também porque podemos ver trabalhos de Francis Bacon, David Hockney (do ensaísta e pintor), Pierre Klossowsky, Paula Rego, Lourdes Castro e Manuel Zimbro, Niki de Saint Phalle, Picabia, Nan Goldin, Francesca Woodman,  Marina Abramovic e Ullay, Chéri Samba, Adolphe Monticelli (um dos mestres de Van Gogh, que é exposto em Portugal pela primeira vez), Louise Bourgeois, Gonçalo Pena.

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Algumas destas obras foram feitas de propósito para esta exposição e muitas estão a ser mostradas no nosso país pela primeira vez, como o filme da viagem/separação de Marina Abramovic até à grande muralha da China. São várias gerações, diferentes dispositivos e linguagens artísticas, diferentes movimentos que são colocados em diálogo. É preciso que o público perceba esses diálogos subterrâneos entre artistas tão diferentes, entre conceções do amor que chegam a ser antagónicas e com as quais Eric Corne pretende “criar uma alquimia viva e misteriosa”, que levante questões, dúvidas, que leve à consciência dos paradoxos, porque, como escreveu Rimbaud, “o Amor está sempre pronto a ser reinventado”. Isto leva-nos ao facto de “Quel Amour!?” não abdicar de trazer para esta exibição problemáticas atuais como a libertação feminina do seu papel doméstico, a homossexualidade, o aborto, o casamento como instituição das relações amorosas.

Maria Madalena libertada, de Kiki Smith

“Quel Amour!?”, uma resposta ao desencanto contemporâneo

Com o “um” não há amor, é preciso o “dois”, escrevia Georges Bataille. A exposição resulta da necessidade de lembrar que o Amor precisa sempre de uma alteridade, seja um corpo, um deus, um objeto. Num tempo onde “o culto da selfie (traduzindo: o Euzinho), onde essa captura e arquivamento de imagens do Eu são constantes, levando ao abandono do Outro nas nossas vidas”, diz o comissário. “Hoje a tecnologia dá-nos a sensação de que estamos ligados a tudo, próximos de tudo e todos, mas é uma proximidade vazia”, continua, para explicar o que o mobilizou para fazer uma exposição sobre um tema tão complexo.

O Amor tem sido a grande temática da arte, da literatura e da poesia ocidental desde há milénios. De O Banquete de Platão à Arte de Amar de Ovídio, dos bustos de Antínoo, o amante do imperador Adriano, espalhados por todo o império romano, à Pietá de Michelangelo, das Vénus de Botticelli à Maman de Louise Bourgeois, das Cartas de Amor de Mariana Alcoforado às canções dos Smiths. Talvez essa obsessão se explique na citação do psicanalista J-B Pontalis que abre o texto que Eric Corne fez para o catálogo desta exposição:

“De onde nasce o amor das origens senão das origens do amor? Daquilo que não continuará e também não terminará.”

O Amor não tem origem nem fim e por isso é impossível explicá-lo, a própria linguagem parece fugir de cada vez que tentamos dizê-lo. Não se explica o coração, apenas se pode carregá-lo connosco, como escreveu o poeta e.e. cummings. Tal como o Tempo, a Vida, a Morte, o Amor é avesso a explicações, conclusões, dogmas, e nunca está separado do corpo. Consciente disso, o comissário diz-nos:

“‘Quel Amour!?’ quer mostrar pontos de vista, tonalidades, vagabundagens, climas, perturbações. Não pretende ser nem uma descrição, nem uma interpretação imagética inequívoca”.

É um percurso que toca várias sensibilidades mas que quer acautelar-se contra o sentimentalismo, contra a ideia de produzir uma “antologia”; pelo contrário, procura vozes singulares que tenham inventado a sua própria linguagem amorosa, porque se há uma forma de amor subjacente a esta mostra é “o [meu] amor pela arte”.

Francis Bacon em Oedipus and the Sphinx (after Ingres), 1983, “porque se não experimentarmos o  amor edipiano não saberemos amar mais nada”, diz Eric Corne

A exposição tem duas entradas distintas e Eric desafia os casais, os amigos, os pais e filhos a começarem cada um por uma entrada diferente e percorrerem sozinhos o labirinto, até se voltarem a encontrar e depois contarem uns aos outros o que viram e sentiram nessa viagem, pois cada percurso criará uma narrativa diferente inevitavelmente diferente.  Cada entrada começa com um trabalho escultórico de fôlego, um de Kiki Smith e outro de William Kentridge. Como prelúdio, uma antecâmara onde se pode ver um conjunto de fotografias de Francesca Woodman e o seu melancólico e obcecante trabalho sobre o corpo em diálogo com duas imagens plenas de agressividade: uma casa a ser derrubada numa noite anónima da periferia americana e outra de uma mulher sozinha e com as pernas ensanguentadas.

Com estas duas séries, Eric Corne mostra-nos as duas grandes linhas de força desta mostra: o corpo como lugar de inscrição do Amor mas também de todas as violências e perturbações que lhe são inerentes (e que voltaremos a ver na obra de Nan Goldin, por exemplo), e o corpo como carne cuja fragilidade mortal é redimida pela ternura, o erotismo, o cuidado.

Eric Rondepierre em Convultion, pelicula de velhos filmes de amor queimada e depois fotografada

“Quel Amour!?” atravessa sentimentos que não podem ser desvinculados do Amor, como o ódio, o narcisismo, o poder, a plenitude, o mistério, a aparência, a desilusão, a guerra, a mutilação, a separação, a morte — recorrendo a múltiplos dispositivos, como a fotografia, o desenho, a instalação, a pintura, a escultura, o vídeo ou a colagem. O labirinto do amor tem ainda alguns momentos “trompe l’oeil” que desafiam a atenção do espetador. Não seremos spoilers, mas lembramos que aqui cada obra não está sozinha mas em interação com as obras que estão em frente ou ao lado, e que essa disposição não é por acaso. Afinal, haverá coisa que provoque mais ilusões óticas que o Amor?

A exposição está patente até 17 de fevereiro de 2019. O Museu Berardo está aberto todos os dias, das 10h às 19h. Entradas a 5 euros.