No final dos anos 80, o hip hop estava cheio de raiva. Grupos como Public Enemy e N.W.A. ocupavam a linha da frente do movimento com atitude abertamente política e pose confrontacional. Tanto It Takes A Nation of Millions To Holds Us Back, o segundo álbum de Public Enemy, como Straight Outta Compton, o primeiro de N.W.A., saíram em 1988, ambos com comentário social fortíssimo. Esse era o modelo que dominava a cena underground, considerada “verdadeira”, por oposição ao sucesso comercial de gente como MC Hammer, que em 1988 já era uma estrela pop a lançar moves de dança e tendências de moda a cada novo hit. Depois chegou 3 Feet High & Rising e tudo mudou ou, pelo menos, ficou com mais cor. E flores.

3 FeetHigh & Rising, o álbum de estreia dos De La Soul é o que se chama um disco de rutura, que mudou o paradigma do hip hop no final dos anos 80. Nada o faria prever, porque ninguém conhecia os De La Soul e mesmo o produtor, Prince Paul, que tinha sido dos Stetsasonic, estava longe de ser uma estrela. Vinham todos do mesmo liceu, em Amityville (sim, a cidade da casa assombrada), Long Island: Kelvin Mercer, também conhecido como Posdnuous, ou Plug One; Dave Jolicoeur ou Trugoy The Dove, também conhecido como Plug Two e Vincent Mason, Pasemaster Mase, ou Plug Three. Os três rapazes estudavam artes, tinham penteados estranhos e faziam hip hop, mas não seguiam as regras habituais. Segundo consta, nos intervalos do liceu costumavam rappar em cima de música dos Eurythmics ou da Steve Miller Band, referências um pouco fora da caixa para o hip hop de então, mais interessado em breaks de James Brown.

A capa de “3 Feet High and Rising”

As ideias fora do comum em relação aos samples, as rimas inteligentes e irónicas e a atitude descomprometida do trio acabaram por convencer Prince Paul a ajudá-los a fazer um disco, depois de ouvir uma demo. Não só produziu o álbum (ou co-produziu, porque os de La Soul surgem também creditados como produtores), como acabou por se tornar numa espécie de quarto De La Soul, mantendo uma relação estável que durou os três primeiros álbuns (e seria depois reativada no quinto).

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3 Feet High & Rising é uma obra prima, tanto a nível lírico como de sampling. Fala de amor, perder a virgindade, paz e harmonia, tudo em flow rápido, usando rimas com metáforas e sempre em tom bem disposto. “Say No Go” também fala de drogas mas, a menos que se preste mesmo atenção à letra, até parece que é só uma música para dançar e ser feliz. Os instrumentais que sustentam as histórias são feitos de partículas de funk, soul negra e blue eyed, jazz, rock, aulas de francês… só a faixa “Cool Breeze On The Rocks” tem 23 samples encaixados em 48 segundos! O próprio título do disco é uma citação de 5 Feet High and Rising, álbum de Johnny Cash que, de resto, também é samplado na canção “The Magic Number”, que também usa música de James Brown, Fat Back Band, Double D & Steinsky e, claro, “The Magic Number” de Bob Dorough, um clássico de 1973.

[“The Magic Number”:]

Por ser um complexo puzzle sónico, que abre novos horizontes para o hip hop, sobretudo na produção dos instrumentais, 3 Feet High & Rising foi apelidado de “Sgt. Peppers do hip hop”, mas devido às conotações do rótulo, o grupo nunca achou piada à comparação. É verdade que pregavam a chegada da D.A.I.S.Y. Age (“daisy” de “margarida”, como a flor, mas também de Da Inner Sound Y’all, um movimento que, segundo os próprios, queria dar otimismo ao hip hop), usavam flores, tinham de algum modo uma atitude psicadélica a juntar sons e eram, genericamente, “boa onda”, mas serem vistos como “os hippies do hip hop” deixou-os desconfortáveis ao ponto de encerrarem a D.A.I.S.Y. Age na capa do segundo álbum, De La Soul Is Dead (1991), partindo o vaso com as flores.

Mas voltando ao sampling, ou seja ao uso de matéria alheia, toda esta variedade de elementos, o corte e colagem cirúrgicos das partes, foram possíveis devido ao uso do sampler, a máquina que permitia gravar e armazenar os sons, no caso de Prince Paul e dos De La Soul, um Casio RZ-1. Hoje soa a tecnologia rudimentar mas, na altura, permitiu uma revolução no hip hop porque, o que até aí era feito, com caixas de ritmos e gira discos, podia agora ter um maior nível de sofisticação. Os De La Soul e Prince Paul nem sequer foram dos primeiros a usar o sampler num contexto hip hop, mas fizeram-no de forma incrivelmente imaginativa. No hip hop, Marley Marl foi um dos pioneiros no uso desta tecnologia em discos de Eric B & Rakim ou Biz Markie mas, antes disso, tanto Stevie Wonder (no álbum Journey Through The Secret Life of Plants, 1979) como Herbie Hancock (em “Rock It”, 1983, no fundo é electro hip hop) tinham usado samplers. As origens da técnica, essas remontam à musica concreta.

[“Cool Breeze on the Rocks”:]

A verdade é que o sampler, a máquina outrora cara e rara que se tornou vulgar nos anos 80, mudou a forma de fazer hip hop abrindo um imenso mundo de possibilidades em termos de fontes de som, nomeadamente de uso de música alheia. Com isso vieram também problemas legais que, no caso dos De La Soul, se estendem até hoje, impedindo-os de terem a sua música, 3 Feet High & Rising em particular, acessível em formato digital.

Um dos samples mais polémicos do disco é dos Turtles. Foi usado em “Transmitting Live From Mars”, um interlúdio de pouco mais de um minuto, construído com pedaços de aulas de francês, parte da versão de “Hey Jude” de Wilson Pickett e parte de “You Showed Me”, uma canção de 1968 dos Turtles. Pouco depois da saída do álbum, em 1991, os Turtles processaram os De La Soul por uso não autorizado da música. As partes acabariam por chegar a acordo fora do tribunal, consta que a editora Tommy Boy terá pago 1,7 milhões de dólares para limpar o sample, mas o trio sempre negou esse valor. Este caso abriu um precedente legal que abalou fortemente a cena hip hop. Muitos processos deram entrada nos tribunais depois deste confronto que opôs os Turtles aos De La Soul. Outro sample que parece ter custado caro aos De La Soul foi o de “Not Just Knee Deep” dos Funkadelic que serve de base a “Me, Myself & I”.

[“Me Myself and I”:]

Um disco como este seria hoje impossível de fazer devido aos elevados custos que envolveria. Trinta anos depois, as questões de direitos de autor estão muito mais presentes na mente de quem faz música, mas também de quem escuta. Além disso, a sofisticação na produção de hip hop também é muito maior. A tecnologia mudou, há algoritmos que detetam samples online e software que permite alterar os samples até ficarem irreconhecíveis. As hipóteses hoje são simultaneamente mais limitadas e infinitas. Mas nada disso afeta 3 Feet High And Rising, um disco que preserva a frescura de ideias e o experimentalismo quase ingénuo que fizeram o hip hop mudar. A experiência de o ouvir de uma ponta à outra, com os episódios do jogo de televisão como elo unificador das canções e interlúdios, continua a deixar-nos com um sorriso nos lábios e vários refrões na cabeça.