Uma declaração rara marcou a apresentação pública do projeto que Portugal leva este ano à Bienal de Veneza. Leonor Antunes, a artista escolhida por concurso, afirmou que “se estivesse o PSD ou o CDS no governo” ela “não aceitaria” representar o país na conhecida exposição internacional de arte. “Embora sejam partidos democráticos, defendem valores em que não acredito. Defendo os valores da democracia, defendo os valores de esquerda. Estou a apresentar o meu trabalho, e represento-me a mim própria, mas também represento o país e defendo o governo que existe”, afirmou.

Ao lado do curador João Ribas, da ministra da Cultura e do novo diretor-geral das Artes, Leonor Antunes disse também que “a situação no mundo é bastante triste, com países que se estão a tornar regimes fascistas e populistas”, enquanto em Portugal “vivemos quase uma situação fora do comum, temos um governo fantástico que queria apoiar como artista e por isso decidi aceitar o convite” para estar em Veneza.

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A apresentação decorreu na quarta-feira de manhã no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, mas não foram divulgadas imagens do trabalho com que a artista ocupará o palácio Giustinian Lolin, onde à falta de pavilhão oficial ficará instalada a representação portuguesa. Como é de regra, a exposição só ganhará forma em cima da data de abertura. O título é “A Seam, a Surface, a Hinge, or a Knot”, uma citação da historiadora de arte Briony Fer (habituada a citar em título autores que tem como referência, é a primeira vez que a artista usa um fragmento de uma autora viva, com a qual tem laços de amizade). A pré-inauguração está marcada para 8 de maio e a abertura ao público acontecerá no dia 11, prolongando-se a exposição até 11 de novembro.

Leonor Antunes disse que a presença na Bienal, onde já esteve há dois anos como convidada da organização para a mostra central “Viva Arte Viva”, não é uma consagração nem representará uma mudança no seu percurso. Reconheceu que vive “um bom momento” e disse que “as pessoas irão a Veneza ver a exposição da Leonor Antunes e não o Pavilhão de Portugal, as pessoas vão ver os artistas que estão lá”. Falando também em nome de João Ribas, acrescentou que têm “um alvo internacional”. “Não me revejo como artista portuguesa, sou uma artista que por acaso nasceu aqui. O nosso público é um público internacional.”

Lisboeta radicada em Berlim

Leonor Antunes é uma figura mais ou menos discreta em termos mediáticos, mas um nome forte no circuito internacional da arte contemporânea, com exposições no Museu Rainha Sofia em Madrid, no Hangar Bicocca de Milão, no New Museum de Nova Iorque ou no Museu de Arte Contemporânea de São Francisco. “Uma das artistas mais importantes da sua geração”, elogiou João Ribas.

Em Portugal, apresentou-se na Bienal de Arte Contemporânea da Maia (1999 e 2003), no Museu de Serralves (2011), na Kunsthalle Lissabon (2013) e no Pavilhão Branco das Galerias Municipais de Lisboa (2017).

Recebeu o Prémio Novos Artistas da Fundação EDP em 2001 e realizou uma mostra alusiva no Museu Nacional de Arte Antiga, tendo o seu trabalho sido descrito à época pelo curador João Pinharanda como “herança da arte minimalista e conceptual das décadas de 1960 e 70”, na “premissa de que o espectador deve experienciar a obra numa relação de interação com o lugar onde é apresentada”.

Nascida em Lisboa em 1972, terminou os estudos em artes visuais e escultura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa em 1998 e radicou-se em Berlim em 2004, onde começou por trabalhar com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e aprofundou estudos na Academia de Belas-Artes de Karlsruhe.

“Sempre quis ir para Berlim, era uma cidade em que achei que teria contexto para o meu trabalho, porque a cidade tem visibilidade e há muitos artistas a viver lá”, contou Leonor Antunes. “Em Lisboa, hoje, é mais fácil, mas naquela época era muito complicado, não havia muitos curadores que visitassem a cidade, as galerias eram fracas e não faziam um trabalho de internacionalização dos artistas, principalmente para uma mulher artista era muito complicado.”

Com discurso informal e presença marcante, a criadora explicou nesta quarta-feira que o projecto para Veneza dá continuidade ao trabalho que tem vindo a expor nos últimos anos. “São exposições que jogam muito com o sentido de verticalidade e da suspensão de esculturas”, resumiu. Quanto ao palácio Giustinian Lolin, classificou-o como “espaço muito complicado, porque não se pode tocar nas paredes, no chão e no teto”, o que contende com o tipo de intervenção a que está habituada. “Há presenças de quatro pinturas enormes, são frescos, não fui eu que escolhi, para mim era importante não lidar com aquele artista, era importante ocultar a presença de um outro artista naquela sala.” Uma dificuldade que a artista disse também ver como desafio e mais-valia.

Num texto de apresentação, João Ribas falou de “A Seam, a Surface, a Hinge, or a Knot” como um projeto “site-specific” (criado em função do local de apresentação), marcado por “uma série de gestos e motivos esculturais”.

Segundo a descrição oferecida por Ribas, a artista criou para o piso inferior do palácio “um pavimento intercalado por dois candeeiros e duas esculturas que funcionam como telas”, enquanto para o piso nobre pensou numa “série de perfis de alumínio revestido” com “ritmo vertical que envolve e suporta esculturas intricadas, fabricadas em mogno, freixo, aço inoxidável e tília”.

“A artista criou também várias lâmpadas em latão e vidro soprado, feitas em colaboração com uma fábrica de vidro. As próprias janelas do palácio foram alteradas de modo a permitirem a entrada de luz natural no espaço interior, como elemento emprestado da paisagem”, descreveu Ribas.

O trabalho está praticamente pronto, com elementos a serem criados em oficinas de carpintaria e de vidro em Veneza, outras no atelier da artista em Berlim e outras ainda em Lisboa, por um correeiro com quem trabalha há muitos anos.

Concurso “inédito e notável”

A escolha de João Ribas como comissário foi feita através de um concurso da Direção-Geral das Artes (DGArtes), com resultado conhecido há três meses. A candidatura incluía já a aposta em Leonor Antunes, com quem Ribas trabalhou pela primeira vez em 2012. O ex-diretor do Museu de Serralves – que se demitiu em setembro do ano passado, face a divergências com a administração do museu portuense relativas à exposição do fotógrafo americano Robert Mapplethorpe – enalteceu nesta quarta-feira a “nova modalidade concursal”, por ser “inédita e notável” e por “abrir possibilidades a curadores, artistas e ao próprio sistema artístico português”.

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Américo Rodrigues, indicado como diretor-geral das Artes no início de fevereiro mas só esta semana oficialmente nomeado em Diário de República, foi cicerone da apresentação em São Carlos, uma vez que cabe à DGArtes dirigir a representação portuguesa na Bienal de Veneza. Informou que a escolha da artista foi feita através de concurso público “para o qual foram convidados vários curadores a apresentar propostas”. O júri foi constituído por Nuno Moura (DGArtes), Cristina Góis Amorim (AICEP — Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal), a historiadora Catarina Rosendo e os comissários Jürgen Bock e Sérgio Mah. “É a primeira vez que há um concurso na base desta representação oficial, os mecanismos têm ainda de ser apurados, mas é uma boa ideia”, referiu Américo Rodrigues.

O mesmo responsável disse que a totalidade do investimento nesta participação é de 500 mil euros e Leonor Antunes acrescentou que a DGArtes comparticipa com 200 mil euros, estando o valor restante a cargo das “galerias incríveis” com que trabalha e que a representam.

Visibilidade de mulheres artistas

Em São Carlos, a ministra da Cultura destacou o facto de se tratar de uma mulher artista. “Importa resgatar as mulheres artistas, não para afirmar o género, mas para corrigir as assimetrias artísticas por causa do género, que são coisas profundamente diferentes”, disse. “Esta linha de atuação política” irá ser seguida “a partir de agora como prioridade.”

“Ao olharmos para trás, até 1950, primeiro ano em que há registos, vemos que em 20 anos de representações portuguesas houve quatro mulheres. Se recuarmos ao 25 de Abril, houve seis mulheres. Se olharmos para o que é a produção e o talento português através das mulheres, percebemos que há uma sub-representação evidente”, destacou Graça Fonseca. “Importa reconhecer que assim é e ter políticas que retirem um pouco da invisibilidade o trabalho de mulheres artistas.”

A intenção não prejudica a liberdade de escolha dos júris, explicou a ministra da Cultura, porque o que pretende é “colocar as mulheres no primeiro plano”. “Não necessariamente através de uma comissão ou de um júri ou de um grupo. Se advogamos a liberdade artística, tem de ser com liberdade que o júri vai selecionar, independentemente do género.”

Segundo Graça Fonseca, dentro de um mês o Governo apresentará publicamente uma “iniciativa dedicada especificamente ao tema da presença das mulheres e a forma como olhamos para a obra de mulheres artistas”, iniciativa que incluirá várias instituições e se conjugará com o Plano Nacional das Artes, dirigido a crianças em idade escolar.