O homem que surge no ecrã vestido com uma t-shirt vermelha, desbotada e manchada a caminhar incerto numa cidade nova e velha não se parece com a imagem do escritor moderno, cosmopolita, famoso, que conquistou o dificílimo mercado literário anglo-saxónico, finalista do Booker Prize (2015), rosto da moderna literatura africana. Adolescentes elegantes, vestidos com a última moda urbana e telemóvel em punho rodeiam-no para tirar selfies. Chegam mais e mais, rapazes, raparigas e, de repente, já há também turistas chineses na fila para a fotografia. Ele é um gato paciente e deixa que se entretenham com a sua presença. Tenta esconder-se entabulando conversas, fazendo perguntas aos miúdos, mas eles querem é fotografias, troféus para a glória das redes sociais. Não chegaremos a saber se tanta efusividade é pelos livros que escreveu, por ser um filho da terra, por ser um branco que diz ser “preto”, por ter preferido ser “mais moçambicano que português”ou por ser famoso.

Mia voltou à sua Beira natal, lugar matricial das suas memórias, das suas histórias, da sua mundividência, apesar de já não haver nem pai, nem mãe e de a sua infância ser hoje uma memória que poucos partilham: esse tempo em que deu a si próprio o nome de Mia, em vez de António Emílio, porque se sentia mais gato que gente. É, precisamente, a partir desse desencontro no meio dos encontros que se desenrola o documentário “Sou Autor do Meu Nome: Mia Couto”, da autoria de Solveig Nordlung que, sendo biográfico não é elegíaco, não força a tónica do “escritor africano”, nem da “África genuína”, que não está muito preocupado em repisar os estereótipos que se foram construindo em volta do tal escritor que inventa palavras e escreve histórias sobre feiticeiros e terras sonâmbulas. Se um homem pode dar a si mesmo um novo nome então ele é tão instável como a tectónica da Terra, ele é um filho da catástrofe do colonialismo, da guerra civil, da fome, da convivência diária com a morte e depois com a natureza. Como tal, ele sabe que todos queremos fingir que a terra que pisamos é sólida e que no meio do maior abalo há sempre a força de uma história à qual nos podemos segurar.

Mia Couto na Beira antes do ciclone Idai. Na cidade da sua infância é uma mistura de estrela pop com mensageiro de  de histórias, recados, encomendas

Sobre este documentário, Mia Couto conta que “resistiu muito” à ideia. “Sou avesso a que façam coisas sobre mim e o que ficou definido foi que o filme não seria sobre mim mas sobre o meu trabalho, sobre a relação que os livros criam com as pessoas. Agora estou feliz com o que está ali, porque não se trata de celebrar uma pessoa mas um trabalho e como é que esse trabalho traduz um lugar e um tempo. Um filme como uma celebração da pessoa em si não me parece aceitável”.

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Apesar de ser peremtório nesta recusa do estatuto de celebridade, no dia 29 de Abril de 2019 encontrámo-lo em Lisboa no meio de uma maratona de entrevistas: mais ou menos meia hora para cada órgão de comunicação social. Sabemos que, depois do Indie, o escritor-estrela segue para Oxford onde, no dia 21 de Maio, apresentará a tradução para inglês do segundo volume da trilogia As Areias do Imperador, sobre Ngungunyane (Gungunhana) que, no século XIX resistiu ao avanço dos portugueses, na região do sul de Moçambique e foi capturado por Mouzinho de Albuquerque. O livro será apresentado por Philip Rothwell, que dirige a cátedra D.João XX nesta universidade inglesa e que escreveu dois ensaios sobre Mia Couto que foram determinantes para a entrada da sua obra no mercado de língua inglesa.

É que apesar de tantas promessas de génios escribas por terras lusas, a verdade é que Mia Couto é um dos poucos escritores de língua portuguesa a ter sido alvo de estudos e da construção de um aparato teórico sobre a sua obra numa prestigiada universidade como Oxford. Este pouco falado “detalhe” a que Mia chama “o resultado de uma coleção de acasos” torna-o hoje, depois da morte de José Saramago, o escritor com mais reconhecimento internacional, e o prémio Nobel não é uma hipótese a descartar, apesar de ele recusar a si mesmo essa possibilidade: “A academia tem uma lógica na qual eu muito dificilmente me incluo. Não acho que corresponda aos seus critérios”, diz sem denunciar qualquer mágoa.

É mesmo com bastante frontalidade que fala do “pouco reconhecimento” que dá um prémio como o Camões “mal conhecido dentro do espaço lusófono e totalmente desconhecido fora dele ao contrário do Booker Prize  que abre muitas portas a uma obra”.

O absoluto que pertence à terra

A Terra é provavelmente a mais importante personagem das obras de Mia Couto

A impossibilidade de andar na rua sem ser notado e raptado por dezenas de telemóveis faz com que não vejamos Mia Couto pelas ruas das Beira em peregrinação nostálgica pelas memórias de infância, a voz da mãe que lhe ensinou o gosto pelo contar histórias e as vozes dos mortos que lhe ensinaram a ler na Terra e nos homens os sinais portadores de símbolos e significados:

“Eu tive infância agitada porque o meu pai era um poeta incapaz de fazer face ao mundo, que se incompatibilizava facilmente com os vizinhos e, por isso, estávamos sempre a mudar de bairro, mudámos de casa umas dez vezes e depois  mudámos de cidade. Mas os lugares que me constituíram como pessoa foram na Beira. As ruas eram uma fronteira muito fluida. A Beira é, tal como a Vida, uma desobediência, uma ilegalidade, uma organização no meio do caos. É uma cidade que nasceu em cima de um pântano e agora como o ciclone foi como se a Natureza quisesse resgatar aquele lugar e dissesse que não é suposto estarem ali casas. Há uma diferença de sete metros entre a maré baixa e a maré alta o que fazia com que, na minha infância, ao fim do dia, a maré inundasse aqueles bairros. Esse foi o meu primeiro relógio que me indicava a hora de voltar para casa. Eu sempre soube que o chão não era estável.”

Entre as memórias na Beira e as de Maputo, atravessamos a Guerra Colonial, a Guerra Civil, os anos como jornalista, a militância política na Frelimo, o abandono do curso de medicina, a poesia como “uma relação íntima com as palavras” quando ainda não tinha percebido que “a escrita podia ser uma relação com o outro” e que Moçambique era “um mundo habitado por muitos mundos escondidos dentro das suas mais de 25 línguas”.

A câmara de Solveig Nordlung entra nas sombras do mercado de Maputo e segue Mia pelos corredores de frutas e hortaliças, pelas memórias dos anos de guerra civil, de quando quase não havia comida e era preciso enfrentar horas, dias numa fila para arranjar alimentos. Não deixa de ser curioso que o escritor tenha escolhido um lugar tão aparentemente prosaico para mostrar onde vai buscar fios, fragmentos, encomendas para as histórias que tem que contar:

“Os mercados não são apenas lugares de comércio mas sobretudo de trocam histórias. É uma coisa milenar. Os mercados são lugares de histórias e de resistência política, incubadoras de novas ideias. A fronteira entre a oralidade e a escrita é o que mais me interessa. Contar é uma coisa, escrever é outra. Aquilo que se conta tem uma força, uma vida que a escrita dificilmente traduz porque a linguagem está amarrada a muitas regras. É preciso furar as normas da escrita, da gramática. Hoje muitos escritores moçambicanos fizeram com que a oralidade invadisse a escrita. Em Moçambique — porque as pessoas habitam sobretudo a oralidade e a escrita é a outra margem — o escritor é visto como mensageiro entre a oralidade e a escrita. Isso dá-lhe a missão e o dever de contar aqueles que vivem na invisibilidade, tornar visível esses lados do mundo. O que as pessoas querem de um escritor não é que ele seja um ídolo, é que ele as traduza.”

Solveig Nordlung tem vários filmes feitos a partir da obra de escritores como Ballard, Lobo Antunes, Marguerite Duras

Seguimos a toada da sua voz branda carregada de um sotaque moçambicano, que denuncia o seu lugar ambíguo e tantas vezes paradoxal em que habita, tal como tantas das suas personagens: é um branco que se sente “preto”, um português que não é retornado, é moçambicano, que escolheu uma pátria que não apenas a da língua portuguesa, que escolheu um caminho diferente da maioria dos portugueses que viviam e nasceram em Moçambique.

Que é um africano sendo, ao mesmo tempo, um artista ocidental. Que visto de longe pode parecer mais um habitante do jardim zoológico onde o Ocidente enjaula os escritores “africanos” para garantir que eles vão escrever sempre sobre uma África mitificada, pura, inocente. Mas que visto de perto é alguém que usa a cultura moçambicana para “colocar questões de índole universal” como escreveu Margarida Calafate Ribeiro. E cuja literatura nasce no contexto pós-colonial, num país novo no qual ela aspira a fazer-se o chão cultural sobre o qual se possa erguer um estado moderno.

Mia Couto pertence à geração de escritores que surge quando a esgotada a narrativa anti-colonial vai dar lugar a outras narrativas, como a etnicidade, a raça, a religião. Como notou Philip Rothwell no ensaio Leituras de Mia Couto: aspetos de um pós-modernismo Moçambicano a obra deste autor recusa as fronteiras que os novos regimes tentaram colocar à criação literária e procura fazer desta um compromisso político e cultural, a procura de um ponto negociável entre o colonialismo, o nacionalismo e a diversidade cultural e étnica à semelhança do que o Brasil fez com o movimento da Antropofagia.

“Não há pior prisão para um escritor do que gostar de si mesmo. Eu gosto e e não gosto de mim. E não gosto da ideia de que temos um público que espera isto e aquilo de nós, porque a minha lealdade primeira é comigo e eu quis sair dessa moldura onde me queriam colocar; a moldura o escritor africano, que escreve sobre feiticeiros e cria neologismos. Os meus últimos livros, a trilogia são esse desafio e têm sido bem recebidos pela crítica, o que não é sinónimo de terem muito público. Isso é um processo mais lento”, diz em conversa com o Observador.

Apesar de reconhecer que a difusão dos seus romances “contou com a ajuda do sentimento de culpa europeu”, com a “cota dos africanos” , o escritor , que se estreou no início dos anos 90 com o romance Terra Sonâmbula, não quer ser colocado nesse “arrumário” da tal “África simplificada” pelo Ocidente e gosta de contar a historia do seu empregado, um camponês da Zambézia que lhe explicou o que era a app Whatsapp, que desmonta todo esse imaginário simplificador.

Depois de Maputo descemos 40 quilómetros a Sul, onde o escritor tem uma propriedade e onde exerce o seu lado de biólogo. Vemo-lo a falar de árvores, a mostrar as suas corujas adotivas, cuja docilidade nos espanta. É ali que o documentário parece ter encontrado o homem por baixo da persona: no lugar onde ele se encontra com aquela que muitos dizem ser a grande personagem dos seus livros: a Terra. Essa Terra que engendra homens e deuses, mitos e tecnologia é a grande narrativa de Mia Couto, o seu lugar do sagrado:“Sou filho de um pai ateu, fui formado no Marxismo e no Materialismo Histórico, sou cientista e tenho uma grande tendência para dessacralizar a Terra e luto contra isso, porque a Terra é o que me dá a aprendizagem da eternidade”.

Outra presença constante na obra de Mia, são os mortos. Porque, diz, “em Moçambique, os mortos não só não morrem como comandam uma grande parte da vida. Eles são viventes ativos que participam na construção do tempo. Perceber isso foi fundamental para eu ser feliz, porque sei que há um passado de onde eu venho. Um passado que nos chega sempre através das histórias que nos contam. Nos meus romances eu invento os meus mortos. Quando eu construo um personagem eles, elas são sempre negros ou pretos como se queira dizer. Todas as vozes que me aparecem não são da minha raça.”

O documentário “Sou Autor do Meu Nome: Mia Couto” passa no domingo, dia 5 de Maio, às 18h30 na Culturgest