É um dos edifícios mais marcantes da paisagem física e espiritual da cidade. A pedra branca, as cúpulas de redonda opulência oferecem-se ao olhar de quem atravessa qualquer uma das pontes e, ainda que ao longe, ela espalha todo um encanto que só podem ter os lugares habitados pelo tempo, moldados por sucessivas gerações de vivos e mortos, fieis depositários de pequenas e grandes histórias. A igreja de Santa Engrácia ou Panteão dos heróis nacionais é um exemplo do triunfo do Barroco e da sua propensão para a mistura, o excesso que convive com as ruas estreitas de uma Alfama medieval com as avenidas retilíneas do iluminismo do Marquês de Pombal. Antes de ser de turistas de passagem, dos hostels, dos tuck-tuck, antes de ser uma abstração no Google Maps, Lisboa é uma cidade quotidianamente revisitada por pessoas concretas, as suas vontades e acasos.

A Igreja de Santa Engrácia ainda sem a cúpula

Quem foi afinal Santa Engrácia e o que fez ela para ser celebrada numa igreja que demorou quatro séculos a ser concluída? Porque foi ali, no campo de Santa Clara, junto a um chão de feira com memórias de judeus e mouros, monges cristãos, nobres atemorizados com o terramoto, militares, que se instalou o Panteão Nacional, quem são os mortos anónimos que olham pelos mortos insignes? A Igreja de Santa Engrácia no Campo de Santa Clara: os tempos do lugar é a exposição onde se pode ficar a conhecer a história deste monumento que é muito mais do que uma expressão aforística sobre o nosso ancestral defeito de deixar as coisas inconclusas, “as obras de Santa Engrácia”. Mas também não pode ser pensada apenas como “mais uma obra do Estado Novo” e o seu interesse  vai muito para lá dos túmulos daqueles que cada tempo e cada regime político considera “heróis nacionais”. A mostra, que comemora a passagem dos 450 anos da fundação da freguesia de Santa Engrácia, foi inaugurada esta quinta-feira, fica patente até 1 de Março de 2020 e é comissariada por Clara Moura Soares, do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

A comissária levou o Observador numa visita guiada aos três espaços do Panteão que recebem a exposição onde se pretende “mostrar as várias vidas desta igreja e as suas ligações com o espaço urbano envolvente”, muito mais antigo e também ele com histórias que acabam por se entretecer com o templo e determinar o seu caminho desde a sua fundação no século XVI, pela filha de D.Manuel I, a infanta Dona Maria.

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Mas quem foi afinal esta santa que mereceu honras de ter uma igreja em seu nome? Engrácia (em graça) viveu no século III, nos alvores do cristianismo, na cidade que, sob o domínio romano se chamava Bracara Augusta (Braga). A lenda diz que a jovem se dirigia para o sul de França para casar e quando parou em Saragoça e soube das atrocidades do governador romano sobre os cristãos da cidade decidiu confrontá-lo. Acabaria supliciada e morta. Como os símbolos são sempre mais persistentes que as leis humanas vamos reencontrá-la na Lisboa fervilhante das descobertas, na devoção da Maria, infanta filha do 3º casamento do rei com a castelhana D. Leonor e materializada nas obras de artistas que lhe emprestavam os mais diversos rostos. Dona Maria, humanista e mecenas, decide então mandar erigir uma igreja em honra de Engrácia e um paço para si mesma onde organizava serões musicais e literários. A obra é edificada já fora dos muros da cidade, mas próximo do mosteiro de S. Vicente de Fora e do convento de Santa Clara. Santa Engrácia tornar-se-á então a freguesia mais oriental de Lisboa e, em torno da igreja e da sua construção, começa a nascer um novo núcleo urbano.

O Campo de Santa Clara em Alfama, fotografado por Amedée de Lemaire-Ternante, 1858 (imagem cedida pelo Centro Português de Fotografia)

Do convento de Santa Clara já nada subsiste senão o nome, mas o nome guarda a memória desse lugar inicial. Porque, como percebemos nesta exposição, os nomes são um arquivo de memórias, por isso também eles devem ser respeitados como se de  monumentos se tratasse. “Hoje habituamo-nos a ligar o nome de Santa Clara à feira da Ladra, mas a história não começa aí e nem sempre paramos para nos questionar sobre tudo o que um nome nos pode contar”, lembra Clara Soares. “O convento ficou muito danificado no Terramoto de 1755 e as clarissas acabaram por ser deslocadas para outro lugar”, explica ainda a comissária. Não se sabe se, quando a infanta morre em 1577, já havia alguma parte da capela erigida ou não. O certo é que ela deixou em testamento dinheiro para a conclusão de uma igreja onde seria depositada uma relíquia da Santa Engrácia de Saragoça.

Uma igreja à mercê das paixões humanas

Entre o século XVI e o século XX foram vários os acontecimentos que impediam a sua conclusão. O primeiro será a sua vandalização e roubo por Simão Solis, um cristão novo, crime que mais tarde se provou ter sido cometido por outra pessoa. De qualquer forma Solis foi supliciado nas fogueiras da inquisição ali mesmo no campo de Santa Clara. Depois deste caso é criada uma irmandade de nobres endinheirados que decide renovar a capela mor. O rei  D. João IV concederá também algumas verbas para a obra. A construção recomeça por volta de 1630 e vai ser continuada até aos anos 80 do século XVII, altura em que uma violenta tempestade destrói parte da igreja, inclusive algumas paredes mestras. A irmandade decide então arrasar tudo o que estava feito e erguer uma nova igreja do início. No meio destes azares ouvir-se-á muitas culpar de novo Simão Solis por ter rogado a praga de nunca este templo ser acabado.

“É então feito um novo projeto, já com uma arquitetura barroca, muito inovador para a época e semelhante ao que era feito em Itália. Com o uso intenso de materiais nobre e coloridos. Porém, a morte do arquiteto ditou mais uma vez a interrupção da construção da igreja”. A obra ficou muitos anos praticamente ao abandono e só volta a ser motivo de interesse quando, no século XIX se começa a pensar na criação de um panteão, à semelhança do que se fazia em França, com a planta circular. Não obstante os desires deste lugar de culto, à sua volta a urbe não parou de crescer com palácios de nobres, como o Lavradio, Barbacena, Sinel de Cordes, Resende. “A vinda da infanta Maria para aqui atraiu para este lugar muitas famílias nobres e as casas rurais desaparecem para dar lugar a esta elite que vem habitar a zona nova da cidade. Mais tarde, já no século XIX, começa a atrair também a comunidade militar, nomeadamente a Marinha e exercito, que vai ocupando e construindo novos edifício. A zona não sofreu muito com o terramoto isso criou a ideia de que era uma zona mais segura, o que fez com que muitas famílias mudassem para aqui”, conta ainda Clara Soares.

Feira da Ladra no Campo de Santa Clara (sem data, foto de Ferreira da Cunha, Arquivo Municipal de Lisboa)

“A feira da Ladra instala-se aqui em 1882, vinda de outra parte da cidade, também é feito o mercado de Santa Clara, um dos últimos edifícios em arquitetura do ferro de Emiliano Bettencourt que ainda temos. A igreja de Santa Engrácia tinha sido entretanto ocupada… por uma fábrica de calçado… e assim se manteve até aos anos 50 do século XX. Tinha sido colocada uma placa de zinco para cobrir a cúpula inacabada. Só então se decide instalar aqui o panteão, é lançado um concurso ao qual concorreram vários arquitetos, entre eles Raul Lino. “Apesar de já termos passado o Modernismo, são projetos muito conservadores, muito à imagem da igreja do Vaticano e a obra é concluída em 1966 e inaugurado no mesmo dia que a primeira ponte sobre o Tejo”, diz Clara Soares.

A exposição é composta por fotografias, desenhos, gravuras que documentam a transformação desta parte da cidade e, simultaneamente, as várias tentativas de construir a igreja, mas também obras de arte vindas de coleções privadas que testemunham cada uma  destas cinco vidas do Panteão. Como explica a comissária, “muitas vieram de coleções dos descendentes das famílias nobres que viviam nos palácios em redor. Por isso, quem visita esta exposição pode contactar com obras de arte originais que dificilmente são vistas em público”.