Um “Hamlet unplugged e sem efeitos” é como o encenador Luís Moreira define a tragédia de Shakespeare integrada no ciclo “Três comédias, três tragédias” iniciado em 2017 e que se estreia esta quarta-feira no Teatro do Bairro, em Lisboa.

“Estão a ver aquelas bandas que fazem sempre uma versão unplugged? É isto”, acrescentou Luís Moreira em entrevista à agência Lusa, no final de um ensaio parcial da peça para a imprensa.

Sem efeitos, “completamente despido de uma arrogância que pode vir tanto dos criadores como do próprio público, pelo facto de acharem que já conhecem a história”, acrescenta o encenador do coletivo filho do meio, para quem o “essencial é tornar os textos de Shakespeare acessíveis a todos”.

“O que nós queremos é contar a história. Sem efeitos e eu disse isto aos atores logo no primeiro ensaio”, referiu, acrescentando que a expressão “unplugged” (desconectado e/ou desligado, numa tradução livre) foi a “que achou melhor” definir este trabalho.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Do ciclo das três comédias – iniciado em janeiro de 2017, com “Noite de Reis”, seguindo-se “Sonho de uma noite de verão” e “Muito barulho por nada”, ao ritmo de uma encenação por ano” – para a transição da tragédia, Luís Moreira pretendeu que “o público conseguisse acompanhar o património de linguagem que o filho do meio tem vindo a criar”.

“E esse património de linguagem, como um precipitado que vai sendo cumulativo de cada espetáculo, culminou nas três comédias com um casamento”, referiu. Por isso, o encenador abre os espetáculos com textos dramáticos de O Bardo com um que começa com um casamento: para que o público que vá acompanhar os espetáculos a partir de agora “vá ver o trabalho onde o deixámos”, observou.

Um pormenor “muito importante” para o encenador, já que o que a associação filho do meio pretende é “que o público acompanhe o trabalho do grupo sem que se sinta defraudado com esta mudança de linguagem”, uma vez que a partir de agora vão trabalhar tragédias e estas têm “uma estrutura dramatúrgica e dramática e uma narrativa que têm de ser respeitadas”.

E Luís Moreira decidiu começar pelo texto em torno do príncipe da Dinamarca, precisamente por considerar “incontornável e inegável que é uma das melhores tragédias de Shakespeare, senão mesmo a melhor”.  “Mas é dificílima”, observou a propósito do texto que deixou para a História a frase “Ser ou não ser, eis a questão”, uma fala da personagem principal, considerando ainda tratar-se de um texto que, de uma forma geral, é pouco posto em cena por jovens encenadores mesmo no estrangeiro.

Questionado por que motivo ousou, aos 31 anos, por este texto do dramaturgo e poeta britânico (1564-1616) em palco, Luís Moreira explicou ter-se tratado “mais uma provocação da própria companhia do que uma vontade”.

E confessou mesmo que embora o seu texto favorito do autor inglês seja “Romeu e Julieta” e que até tivesse “mais razões para não fazer o “Hamlet” do que para o fazer”, é com ele que se abre as três peças dedicadas às tragédias por o coletivo que integra ser “um grupo unido em que cada um tem liberdade para a reação ainda que a encenação assine o projeto”.

“Hamlet é tão meu como é da coreografia, da tradução, do desenho de luz, do cenário, dos figurinos e dos próprios atores; além de que é um desejo de longa vida do ator Luís Lobão, pelo que se junta o útil ao agradável”. Há um ator em cena que “verdadeiramente está a ter prazer porque está a cumprir um sonho de vida. E se o filho do meio puder fazer isso, porque não?”. “Feliz sou eu de poder cumprir esses sonhos”, confessou.

Num cenário onde pontuam apenas um estrado, dois cadeirões reais depurados e figurinos atuais — apenas com as carpetes que forram o chão e duas cortinas na lateral direita do palco a remeterem para épocas distantes — “Hamlet” vive, sobretudo, do texto, mas também da expressão corporal dos atores.

Quem estiver atento ao texto não deixa também de apanhar paralelismos com a atualidade. Mas não é por isso que Luís Moreira gosta de trabalhar Shakespeare. Até porque detesta falar da atualidade dos textos, como admitiu.

O que o encenador gosta, tal como o coletivo filho do meio, é que o espetador “sinta prazer em ouvir o texto e encontre esses blocos de sentido”. “Porque Shakespeare irradia sentido puro”, frisou, acrescentando que não é necessário que o espetador precise compreender “intelectualmente tudo aquilo que está a ser dito para se sinta tocado e se comova”.

Apesar de ser a quarta peça do filho do meio dedicada ao autor inglês, trata-se da primeira vez em que o coletivo obteve apoio à produção, atribuídos pelas fundações GDA e Calouste Gulbenkian. E se conseguissem “saltos maiores”, como apoios pontuais da Direção-Geral das Artes, Luís Moreira sublinhou que gostava de “dobrar” as produções que, até aqui, têm ocorrido ao ritmo de uma por ano.

“Hamlet” tem tradução de Fernando Villas-Boas, assistência de encenação de Ana Baptista e Leonor Buescu e apoio ao movimento de Joana Chandelier. A interpretar estão Alice Medeiros, André Pardal, António Pedro Ramalhinho, Filipe Abreu, Frederico Coutinho, José Matos de Oliveira, José Redondo, Luís Lobão, Nuno Pinheiro, Rita Loureiro, Valter Teixeira e a voz de José Neto. A iluminação é de Rui Seabra, a cenografia e figurinos de Maria Gonzaga e a fotografia de Vitorino Coragem.

Esta produção de Leonor Buescu e filho do meio conta ainda com o apoio da companhia Primeiros Sintomas e do Teatro do Bairro. Com uma duração de perto de duas horas, “Hamlet” pode ser visto até 02 de fevereiro e tem espetáculos de quarta a sábado, às 21h30, e, ao domingo, às 17h00.