Ouve-se o início do disco, os primeiros segundos de “Tusa Mole”, quase cante alentejano alternativo, e pressente-se logo uma ou duas coisas que hão-de confirmar-se disco fora. Uma é que Filipe Sambado está diferente. Outra é que há aqui uma nova portugalidade, uma apropriação de ritmos, sons e instrumentos mais tradicionais cruzados com batidas digitais. Já não é só pop-rock que transforma em boas cantigas o linguajar e as preocupações de um rapaz com talento para a guitarra e para as canções. Revezo, terceiro álbum do músico português que é editado esta sexta-feira, é um disco feito aqui e agora. E isso ouve-se mesmo.

A mudança começou pelo gosto e experiência de ouvinte. Nos últimos anos, mais intensamente nos últimos dois a três, o músico português de 34 anos foi dando por si a pensar: será que aquilo que se vai vendo e ouvindo é português ou é apenas em língua portuguesa? Tem-lhe acontecido muito “tanto no teatro como no cinema e na música”, diz ele nas suas próprias palavras, em conversa com o Observador numa pastelaria lisboeta, estar “a ouvir e ver uma coisa e a única coisa que dá uma noção do tempo e local é o facto de se estar a cantar ou falar em português”. No caso da música em específico, detalha Sambado, tem-lhe acontecido ouvir muitas bandas e pensar que se tirasse da equação a língua em que cantam, “podia ser uma banda de qualquer país”.

Não há aqui propriamente um fundamentalismo: nem toda a música (ou qualquer outra expressão artística) feita no seu país tem de ter um traço marcadamente nacional ou inspiração na tradição. “Não estou a dizer para toda a gente fazer isto”, alerta. Mas o “exercício”, como lhe chama, interessou-o: ter um álbum com “uma assinatura do sítio onde a coisa é feita”, em que se afasta do “anglo-saxonismo” do pop-rock, porque “acho que é giro e até razoavelmente importante ouvir-se uma coisa e perceber-se que aquilo vem daquele país”.

[A capa do álbum ‘Revezo’, de Filipe Sambado:]

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O trabalho da cantora Rosalía, que tem ganho proeminência internacional com uma fórmula para as canções que mistura modernidade e tradição, sonoridades da pop que se ouve mundialmente com ritmos sonoros marcadamente espanhóis (do flamenco) e latinos (reggaeton), foi mais um catalisador. Como o foi sentir que em Portugal “as únicas pessoas que sinto que estão a fazer uma música que é totalmente portuguesa são os da [editora] Príncipe Discos, que estão a fazer algo que só a comunidade negra em Portugal poderia estar a fazer”. Uma coisa que, sendo nova, reflete o passado, o contexto social e as tradições de quem a faz — e que “nesse sentido é bastante única”. Na música portuguesa, considera, isso tem-se notado mais na música de dança, que soa cada vez mais distinguível e própria. Na pop-rock não tanto, “parece que ainda estamos colados a esses padrões de tentar fazer uma coisa que é uma sugestão do que nos chega em massa”.

A palavra chave é identidade. Depois de experimentar o formato de canção mais linear, sonoramente mais próximo do pop-rock internacional ancorado em guitarras e bateria — ainda assim com letras e trejeitos na escrita que o situavam aqui, na Lisboa atual e alternativa da ZDB, do bairro da Graça ou do Intendente e Martim Moniz —, Filipe Sambado foi à procura de uma música que soasse também ela única. Nacional e mais descentralizada. Uma música que nas letras e nos temas abordados, soasse a si e ao que agora o impele a escrever. Nos sons, que o refletisse como artista do seu tempo, que cruza música orgânica com beats digitais, mas como artista que se insere na história da música portuguesa.

Para Revezo, houve uma “investigação”, como se a música também fosse antropologia. Quando lançou o seu álbum anterior (e segundo da sua discografia, a que se somam alguns EP, ou miniálbuns), Filipe Sambado & os Acompanhantes de Luxo, o português tinha já as canções para o seu álbum seguinte, este que vai agora  lançar, praticamente compostas. Tinha letras e melodias. Faltava-lhe decidir de que forma embrulhar as canções, com que roupagens as vestir, e nesse período andou um ano “para a frente e para trás”, a perceber de que forma as poderia gravar fazendo-as soar simultaneamente portuguesas e suas.

Era preciso recuar uns anos e conhecer melhor a história da música cantada em português. Filipe Sambado fê-lo mais intensivamente do que em anos anteriores e foi percebendo várias coisas. Uma: “o nosso corridinho é uma fuga francesa, é o resultado das invasões napoleónicas no Algarve”. Outra: “vai-se para Trás-os-Montes e para o Minho e há coisas mais celtas”. Uma terceira: “O folclore tem uma parte engraçada, que é: parecendo que não, a tradição folclórica de cada país aproxima-se da de outros países, por causa das transações comerciais”.

@ JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

À chamada música de intervenção, por onde passaram algumas das referências maiores de Filipe Sambado na música portuguesa — como Fausto Bordalo Dias, José Afonso (inspiração muito notória na forma como canta “Bitola”, oitava faixa do novo disco) e José Mário Branco —, o autor de Revezo foi descobrir estratégias de rumos identitários.

Há palavras que convém que se note que estão a ser ditas aqui e agora. Comecei a sentir muito isso nos discos do Zeca, do Zé Mário, do Fausto, do Adriano, de todos eles: sente-se que aquilo é daquele tempo. E mesmo com a semelhança que possam ter com outras coisas lá fora — no caso do Zé Mário com a canção francesa especificamente, em todos eles com coisas da Violetta Parra, aqui e ali com coisas do Dylan, do Cohen — há detalhes que fixam o período e o local”. Ambicioso, Sambado quis perceber: “de que forma é que consigo fazê-lo também?”.

Um disco sobre trabalho, lar e má vida de lado

Fazer canções que soem novas, portuguesas e catchy, com letras que refletissem as suas preocupação atuais: era este o desafio de Filipe Sambado. Missão cumprida: não faltam aqui canções viciantes, refrões que ficam no ouvido passadas algumas audições, sons que surpreendem (num disco muito marcado pela utilização da flauta) e por isso marcam a diferença face ao pop-rock mais habitual.

O single foi “Jóia de Rotina”, com aqueles versos “só peço, só peço / para te ter no quarteirão / o gato no colchão / o amor a dividir” a alojarem-se no cérebro de quem ouve, numa canção que é só ilusoriamente sobre uma relação amorosa, porque também é “uma canção sobre a vontade de acabar o trabalho”. A dificuldade de conciliar a música e a vida pessoal com a claustrofobia de um outro emprego a full-time, ainda por cima com horários longos — entretanto largado para se dedicar em exclusivo às canções — é uma tensão que parece atravessar grande parte do disco. Sambado concorda: “O disco tinha desde início uma relação muito próxima com a ideia de trabalho e de casa. As únicas que fogem um pouco a isso são a “Mais Uma”, a “Gerbera Amarela” (já lá iremos) e “a ‘Imagina’, que até era para ter entrado no disco anterior”.

O álbum, aliás, chama-se Revezo — termo agrícola que também significa, em sentido mais lato, substituição contínua, regeneração —, “não só por ser uma palavra que acho bonita mas por definir bem a rotação, a necessidade de desenvolver uma coisa enquanto se está a fazer outra”, explica Sambado, logo acrescentando que se aplica também a uma “sensação de não poder aproveitar duas coisas da mesma forma, em simultâneo” e a uma “necessidade de equilíbrio” que sentiu, “entre trabalho e vida pessoal” e “entre música e vida pessoal, que não é só a vida privada”.

Mesmo quando são canções com amor e desamor em pano de fundo, só muito raramente — talvez apenas em “Imagina” tal acontece — esse é o tema principal da cantiga. Em “Tão Bom”, talvez a canção com mais potencial de single do disco, porventura a mais viciante (aquele som de flauta, aqueles coros femininos, o ritmo rápido…), os versos que mais ficam no ouvido são “É tão bom / é tão bom / ter a casa ao nosso jeito / eu e tu dá tanto jeito”, repetidos mais do que uma vez. E no entanto, é uma canção “sobre deixar de sair da noite, acalmar um bocadinho a má vida porque já conheces outras coisas boas para fazer, pessoas boas com quem estar”, diz Sambado, o que aliás se comprova com versos como “‘tivemos tão perdidos na noite” (o português é coloquial, canta-se com as abreviaturas com que tantas vezes se fala entre amigos) e “se a festa já não encanta”.

Ainda se ouve em Revezo canções como “Paçoquinha pra Novela”, que é “muito sexy, muito romântica”, diz Sambado, mas que é também “sobre não querer ir trabalhar na segunda”. Ouvimo-lo cantar dengosamente “a mim quem me dera não ter / segunda-feira / se não for para ser aqui” como se fosse um domingo e como é que alguém não se identifica com isto? E ainda há por exemplo “Mais Uma”, canção com tanto cheiro a B Fachada como a cantiga de intervenção, mas que é Sambado no seu melhor, refrão em cheio no coração, coolness e swag na cantautoria sem que se perca a seriedade.

@ JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Apesar de tudo isto, Revezo é um álbum que não satisfez por completo o pai de Filipe Sambado, um dos seus mais atentos ouvintes, a par do tio que também fazia música (já o pai “tocava bateria mas só quando estava bêbado, não sabia tocar”). A rejeição, talvez surpreendentemente, deixou-o feliz: “É o disco que mais rompe com a linha de gosto do meu pai. Isso tem um lado engraçado: ao mesmo tempo que é o disco em que recuo mais e em que vou mais às raízes ou assim, também é o disco em que arrisco mais, em que fujo de uma linha mais imediata”.

Tem alguma piada que ele [o seu pai] não tenha gostado tanto. É a primeira vez. De certa forma agrada-me, senti-me sempre um bocado desconfortável com a ideia de o meu pai, sendo mais velho do que eu, gostar sempre do que faço. Pensava: será que não estou a acertar? Era fixe que ele não gostasse, que me mandasse tocar mais baixo ou coisa assim”, brinca.

O “pânico” de participar no Festival da Canção e a precariedade do indie

Um dos temas que faz parte do disco, mas que tematicamente está à margem de todos os outros, é “Gerbera Amarela do Sul”, canção que Filipe Sambado compôs para o Festival da Canção e sobre o concurso para o qual foi convidado. A primeira sondagem foi recebida depois da participação no Eléctrico, programa de música ao vivo da RTP com autores portugueses. “O [Nuno] Galopim veio ter comigo e disse-me que queria convidar-me para fazer uma coisa para o [festival] Queer. Depois alguém se meteu com ele, perguntou-lhe se me estava a convidar para o Festival da Canção. Ele respondeu: disso falamos depois. Percebi logo que ia acontecer”.

A primeira reação ao convite da RTP foi de “pânico”, diz Filipe Sambado: “É um formato que me assusta bastante, a ideia de concurso, a maneira como as pessoas se colocam em fações por causa de cada canção”. Ali, não interessa só a qualidade das canções, acrescenta: “As pessoas estão ali a avaliar é se a canção tem capacidade e qualidade para representar Portugal, se representa aquilo que ‘nós somos’. E eu não quero ser representante de ninguém, faz-me muita confusão a ideia de representatividade”.

A reticência face ao formato do Festival da Canção levou-o a escrever uma canção sobre o próprio concurso. No tema canta “mesmo a ser de qualquer laia / só com roupa de ir para a praia / fazem de mim pitaia / para chegar a cônsul”. Eis a explicação dos versos provocadores por quem os escreveu: “Agora vou ser aqui um gajo tropical para vocês acharem alguma piada, para eu ser cônsul e ir representar o país lá fora [à Eurovisão], porque só se for um palhacinho é que vocês gostam”.

Filipe Sambado tem notoriamente alergias ao Festival da Canção. Mas então porquê participar, o que é que o aliciou? A resposta é sincera e sem grandes filtros: “Aliciou-me… [baixa o tom da voz] o dinheiro. E a visibilidade que aquilo pode dar. O Rui Miguel Abreu, que foi júri o ano passado, disse-me uma coisa que me ficou na memória: aproveita para ir e pôr mais um grão de areia na engrenagem. Lá assumi que ia participar e quando fiz a canção decidi que ia escrever uma letra sobre a forma como encaro o festival”.

A popularidade que pode ganhar não é um fator de somenos importância para um músico que hoje em dia diz-se já um pragmático do indie. “Gosto de fazer isto, desenvolvi este gosto e esta capacidade, no fundo é aquilo que faço hoje em dia. Enquanto puder continuar a fazê-lo com gosto, vou fazer. Preciso de sentir que não estou a vender a alma ao diabo. Não o sentindo, faço as coisas porque sei que chegar às pessoas é uma necessidade inerente a viver disto. Se não o conseguir, vou ter de voltar a ter um regime em que concilio trabalho com a música”.

Se tiver de voltar a trabalhar 12 horas e só puder fazer música nos tempos livres, se calhar faço um disco de cinco em cinco anos em vez de o fazer de dois em dois. Um artista da minha dimensão está no limiar do ordenado mínimo, mais ou menos — com os descontos todos. Mas a minha situação tem estado a melhorar cada vez mais e tenho boas expectativas de fazer disto uma carreira. Estou com 34 anos e só desde janeiro do ano passado é que decidi que ia fazer um esforço para viver só da música. Tive um verão porreiro, mas é difícil”, admite.

“‘A música até é fixe mas o gajo é granda panilas’? Estas coisas não vão parar”

Ao longo do seu percurso na música — primeiro na banda Cochaise, depois com os primeiros EP, de seguida com o primeiro disco Vida Salgada, com o sucessor Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo e agora com Revezo —, o músico, que viveu em Lagos e Elvas antes de viver em Lisboa, foi também mudando a forma como se apresenta publicamente, nas suas contas oficiais nas redes sociais e nos concertos. Primeiro começou pelas unhas, que começou a exibir pintadas. Depois mudou a roupa: chegaram os vestidos, as saias, a indumentária menos heteronormativa.

Sambado, que uma vez até já atuou nu num concerto, diz que já fazia “muitas experiências” em casa desde miúdo, já desde muito novo “vestia a roupa da minha mãe, mas não saía à rua com nada disso, era incapaz”. Foi ganhando conforto de se apresentar com a roupa que queria quando foi começando a ter amigos que o deixassem confortável. Paralelamente, também a música contribuiu: “Os concertos são uma coisa ótima, é um momento em que estás a ser apoiado, as pessoas estão ali para te ouvir, para te encorajar”.

@ JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Apesar dos concertos serem uma boa altura para testar roupa mais arrojada — “sinto-me mais à vontade para arriscar e quando corre bem sinto-me mais confiante, é um passo para no dia seguinte usar a roupa que estreei ” —, Filipe Sambado reconhece que se depara com ouvintes para quem o seu estilo é um entrave ao apreço pela música que faz:

Ainda no outro dia havia um comentário qualquer numa rede social. Alguém escreveu que quando estava no ‘Sobe à Vila’ em Paredes de Coura, uma pessoa ao lado disse: ‘pá, a música até é fixe mas o gajo é granda panilas’. Estas coisas não vão parar, daí ser tão difícil para um transexual ou uma transexual decidir fazer a sua mudança, daí ser tão difícil para um homossexual poder sair do armário. Há uma série de situações em que se as pessoas querem ser mais próximas de si mesmas têm de se lixar”, refere.

Já na reta final da entrevista, mudamos o tema à bruta e lembramos a Filipe Sambado que depois do disco anterior dissera, numa entrevista: “É um disco sobre mim nestes dois anos”. E agora, o que é que este Revezo dirá da sua vida no último par de anos? “Diz que eu estou numa relação. Nota-se, não é? [sorri] Diz que tive, no período em que o escrevi, uma relação difícil com o excesso de trabalho, com a carga horária [do emprego que largou entretanto]. E é um disco em que se nota que estou à procura de um lugar meu, para conseguir falar sobre os meus assuntos, para fazer a minha música com autoria e autoridade sobre o que canto”.

É um espelho eficaz. Sambado diz que não gosta de ser representante de nada, que tem problemas com a noção de representatividade, mas em Revezo não há problema nenhum com isso: representa-se a si e isso chega, talvez seja até mais autêntico. Suspeitamos que a autodescoberta musical há-de prosseguir.