“Já pedi desculpa às vítimas e ao Sporting, não quero dizer mais nada…”

Depois de já terem sido ouvidas quase todas as testemunhas de acusação do Ministério Público no julgamento do caso de Alcochete (Bas Dost, que adiou a primeira data por se encontrar doente, esteve esta tarde por Skype), e de terem passado já pelo Tribunal de Monsanto várias testemunhas abonatórias e de defesa dos 44 arguidos, a 30.ª sessão ficou marcada pela audição do primeiro arguido. E acabou por ser uma sessão diferente: ao longo de cerca de duas horas, houve um pouco de tudo entre desconhecimento, uma dose de estranheza, assumir de culpas, arrependimento e mesmo alguns pensamentos quase filosóficos sobre o sentido da vida e como as escolhas que se fazem num dia podem ou não condicionar os anos seguintes. No final, ficaram mais pormenores de como tudo foi preparado, de como tudo aconteceu mas também contradições entre o que se disse e o que se escrevera antes.

Tiago Neves passou a adolescência no Algarve até vir para Lisboa, com 15/16 anos, na altura da separação dos pais. Foi nessa altura que começou a seguir mais de perto o Sporting, as claques e movimentos como os casuais – sendo que entre esses assumiu apenas ligação ao clube, do qual foi sócio, deixou de ser e reativou filiação algures em 2005, ao passo que dos restantes ficou apenas os muitos amigos. Na semana antes da invasão a Alcochete, dias depois do dérbi em Alvalade com o Benfica, perdeu o telefone e esteve menos contactável uns dias. Na segunda-feira, véspera do ataque, viajou do Algarve para Lisboa já com telemóvel, um Smartphone da Vodafone, e esteve em dois dos grupos onde se foi preparando tudo. Entre as mensagens enviadas, entre as quais uma já a caminho da Academia onde refere que “não é para bater em ninguém” (como referiu no depoimento) que fazem parte do processo que o Observador consultou, algumas destas frases foram recordadas hoje no Tribunal de Monsanto:

[na véspera do ataque]

– “Fod***** o telefone no derby mas vou apanha-lo em breve. E amanhã quero ir bater nos jogadores”

– “Isto era alguém ter seguido… O William está sempre no Olivier, andei a checkar a conta dele”

– “Bruno está frito… Não há um  gajo normal…”

– “Têm mesmo que levar… Se a JL [Juventude Leonina] não foi lá, vou lá à mesma”

– “Falei com o Alan, também diz que vai. Mas falta a JL avançar…”

[no dia do ataque]

– “Tochas? Não tenho nada, há na Casinha (…) Queria uma para meter no cu do Paulinho também”

– “É chegar e ir a correr para lá, não vão ter tempo. Alguém fica com os da Prosegur para não comunicarem. E alguém tem de ficar com eles [jornalistas] para não filmarem”

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– “Se estiver lá bófia não saio de casa, não dou para esses filmes”

“Não sei como começou tudo porque perdi o telefone nessa semana. Havia mais pessoas com quem ia falando e demonstrei a minha vontade de ir à Academia. O número do telefone? Era o mesmo, sim. Juntei-me talvez por volta das duas e qualquer coisa, num restaurante, não cheguei a ir a Alvalade. É isso, posso comprometer alguém… Apanharam-me em casa, parámos num restaurante, seguimos para o Lidl [do Montijo]. Continuei a falar nesse grupo. Não fiz nenhum controlo da polícia, lembro-me que havia conversas dessas. Sabia que havia jornalistas porque vi na TV, assim como o Jorge Jesus parecia que ia ser despedido…”, disse sobre o dia 15 de maio.

“Ficámos no parque de estacionamento, a cerca de 300 metros. Creio que não corremos esse espaço todo até à Academia, andámos e depois começámos a correr. A ideia que tenho era que a corrida foi uma forma de entrar porque podiam fechar o portão. Corrida em formação militar? Da minha parte corri normalmente, se parece uma formação militar ou não, isso não sei… Lá dentro, dirigi-me à zona dos campos. Lembro-me de chegar e de não ver ninguém. Havia uma câmara mas achava que era aquela com que o Jorge Jesus filmava os treinos. Recordo-me do Ricardo Gonçalves [diretor de segurança do Sporting]. Abordou-nos pela primeira vez no sintético tapado ao pé da ala da formação, depois acho que foi connosco até lá dentro, ao balneário. Tenho ideia que ia a falar com alguém, não era comigo. Acendi ao pé do campo uma tocha. Deram-me só uma tocha e mandei para aquela zona, atirei para ali porque não acertava em ninguém e sei que fiz mal…”, acrescentou a esse propósito.

“Mais do que arrependimento, venho contar toda a verdade e quero virar a página. Não fazia sentido não vir”, disse Tiago Neves logo no arranque de uma sessão que contou apenas com oito arguidos além de Nuno Mendes (Musta) e Elton Camará (Aleluia). “Sabia que era uma irregularidade o que estava a fazer. Foi estupidez condenável mas achei que me podia safar assim”, admitiu, acrescentando: “Não vou falar sobre com quem fui”.

“Foi sem autorização. Fui em frente, contornámos a ala da formação e fomos diretos ao campo. Observei que os jogadores não estavam lá, só um elemento que poderia ser o Jorge Jesus. Passaram-me uma tocha e acendia-a. Projetei-a para o meio do nada, passou por cima de um carro e ficou na estrada. Depois fui para as portas da ala profissional e entrei. A porta já estava aberta. Virei à esquerda mas perdi-me, não conseguia visualizar nada. Fui seguindo até chegar ao balneário. Vi que estava um jogador caído no chão, que era o Bas Dost. Vi-o a levantar-se com as mãos na cabeça. Como disse, havia muito fumo, muita confusão, vi alguns vultos. Insultos e ameaças? Ouvi algumas coisas como ‘Joguem à bola’ ou ‘Têm de jogar mais’, algumas ofensas como ‘filhos da p***’. Fiquei ali naquela zona porque fiquei estupefacto com o que estava a acontecer. A intenção não era aquela, era só pedir justificações. Confesso que estava revoltado e triste com os resultados, por isso a ideia era dar ‘apertos’ mas sem ser aquilo que se acabou por passar”, descreveu em relação ao período em que esteve na Academia.

A minha intenção era possivelmente assustá-los, fazer com que percebessem que deviam ter dado mais em campo, que deviam ter ganho. Foi não terem conseguido ir à Liga dos Campeões. No último jogo que empataram com o Marítimo, foi só por isso, não tinha mais nenhuma razão. Por mim era mais o acesso à Liga dos Campeões perdido. As coisas na Madeira não me afetaram, não foi comigo”, destacou.

A juíza presidente Sílvia Pires passou depois para as mensagens nos grupos do Whatsapp, onde surge sempre como “Neves Casual” apesar de argumentar que não pertence a qualquer desses grupos de adeptos leoninos. “Tenho vários amigos, deve ser por isso… Não me identifico nem como casual nem como Juve Leo, sou adepto do Sporting. Não sou filiado a nenhum grupo. No entanto, tenho vários amigos nesse grupo dos casuais. Não me identifico. Se alguém me identifica e escreve ‘Neves Casual’ deve ser por isso. Tem-se a ideia de quem não leva adereços é casual. Paro ali nos cafés onde estão casuais, alguém meteu o nome ‘Neves Casual’, ou ‘Neves Juve Leo’… No meu WhatsApp tenho ‘Neves 1906’, esse fui mesmo eu que coloquei”, contou. “O que diz nas mensagens não fiz, não vou dizer que foi brincadeira porque fica mal mas… A minha revolta era tanta que sim, que escrevi isso, que se fosse preciso ia lá sozinho. Tocha? Não levava nenhuma, foi-me dada lá dentro”, completou.

“Apesar de não ter batido em ninguém nem me lembrar de ter ameaçado alguém, a verdade é que participei nisto. Apesar de ter essas mensagens a dizer que batia, não era essa a minha intenção. Há alguém até que diz que vai levar um tanque… Foi mais numa de bazófia, de parvoíce, do que outra coisa qualquer. Consultei o meu advogado e há mensagens minhas quando estamos a caminho da Academia a dizer para não baterem em ninguém. Foi mais em jeito de brincadeira… Temos esses grupos e foi mais uma de…”, prosseguiu, antes de ser interrompido por Sílvia Pires numa primeiro momento de diálogo mais curto e direto entre as duas partes.

– Não é uma brincadeira, não é uma palhaçada, é uma grandessíssima estupidez! Estamos a falar de homens, não são nenhumas crianças, não são nenhuns acéfalos…
– Sim, tem toda a razão…
– Isto foi tudo menos uma brincadeira, não é uma brincadeira de Carnaval quando se entra por ali de cara tapada…
– Dizia isso porque há smiles, há lol… Mas arrependo-me disso, claro… Mas assumo que sim, que estava nesse grupo e que ajudei a planear…
– A sua intenção era não ser apanhado… Sabe, a primeira coisa que pensei era se tinha sido uma grande inconsciência ou se havia um grande sentimento de impunidade… Que raio de adultos, são uns grandes homens a gritar ‘O Sporting somos nós’ e depois tapam a carinha e andam a pedir para desistirem das queixas…
– De facto é uma grande inconsciência e na altura não consegui perceber isso, não sabia que ia ter esta dimensão. Hoje em dia vejo que foi o maior erro da minha vida. Na altura foi só isso que pensei, assustar os jogadores e dar um aperto mas nunca pensei que seria assim. Nunca pensei que sairia impune, quando entrei sabia o que ia acontecer…

“Pensava que ia encontrar os jogadores no campo, o que tinha mais impacto, e que depois podíamos falar com os jogadores. A parte dos balneários nunca entrou na minha cabeça. A minha ideia era encontrar a equipa toda no relvado. Se conhecia? Sabia que o edifício era aquele, para aquele lado, mas não conhecia”, disse depois.

– E um rapaz da sua idade que já tinha tido problemas com a Justiça, não aprendeu?
– Pelos vistos não aprendi…

“Gosto muito do Sporting. Comecei neste fenómeno quando os meus pais se separaram. Vim para Lisboa, tenho mais liberdade, comecei a entrar mais nesses grupos. Tive alguns problemas por causa de coisas de futebol, depois disso não tive mais nada… A minha vida era Lisboa e Algarve. Hoje não consigo perceber porque é que me envolvi tanto nisto. Neste momento acho que estou suspenso de sócio. Fui desde miúdo, depois voltei a ser, desde 2004 e 2005. Já fui sócio da Juve Leo mas não tinha qualquer filiação agora. Comecei a ir muito cedo ao estádio. Via os jogos quase sempre na bancada Sul, não necessariamente na Juve Leo”, explicou.

– Mas entraram lá de cara tapada e com essa atitude numa de dar o tal ‘aperto’, para criar medo. E achavam que era com medo que os jogadores iam começar a jogar mais, era isso?
– Hoje em dia tenho a certeza que o medo não motiva as pessoas. Na altura o que podia pensar, e que é estúpido, era que os jogadores teriam de dar o máximo mas de facto não tenho direito de pedir satisfações a ninguém…
– Sim mas o medo, o bato, o ameaço, o vou a casa, o que é que isso pode motivar?
– Sim, tem toda a razão…
– Porque isso do estamos muito ofendidos são balelas… Sabe, guardei aqui duas frases da conversa: ‘Honra a quem foi a Alvalade’ e ‘Deus perdoa, a Juve Leo não’… Portanto, ainda foram glorificados até perceberem que tinha dado barraca… O que é que motivava? Um pai dá uma grande tareia um filho porque em vez de passar teve muito bom, ajuda alguma coisa? Motiva?
– Acho mesmo que na altura… Não queria de todo amedrontar os jogadores… Ia pedir justificações…
– Mas pelo que ouvimos aqui ninguém perguntou nada, foi logo a virar… Foi entrar, agir e sair…
– Falo por mim, só queria mesmo encontrá-los no campo e falar… Sei que as vítimas aqui são eles, não sou eu. Como tem dimensão, quero pedir desculpa e às vezes meto-me no lugar deles e pensar… Quando fui preso pensei nisso, nas conversas que tive com a minha família, comentava com a minha tia, que é médica, porque tem casos desses… Não querendo voltar atrás que não posso, que me mudou a vida, a única coisa que posso fazer é pedir desculpa e afastar-me destes fenómenos. Não venho aqui dizer que sou inocente, participei nos grupos, estive lá…

Já em resposta a outra juíza do coletivo, que pediu primeiro dados mais concretos, Tiago Neves recordou também algo estranho de Rafael Leão, além de William a falar com invasores e a presença de Manuel Fernandes.

“Vi o Manuel Fernandes, não me lembro se à entrada ou à saída. Recordo-me de dizer que o Sporting não era aquilo. Depois virei à esquerda não porque soubesse que era ali o balneário mas porque ia tudo para ali e aquela porta estava aberta. Passei pelo Bas Dost. À minha frente já tinha passado muita gente, não sei ao certo quantos. Quando cheguei e olhei para balneário já havia fumo sim. Vi o William a sair e a falar com os arguidos, tenho ideia que foi para aí, não percebi se aquilo é casa de banho. Fiquei na zona da porta, posso ter entrado mas não estive no centro do balneário. Do nosso grupo estavam 20, mais os jogadores e tudo mais. Os jogadores estariam perto dos cacifos deles, não me recordo se de pé ou sentados. Lembro-me de ver o Rafael Leão sentado do lado esquerdo onde estava, é curioso que até se riu…”, contou antes de ser interrompido pela juíza.

– Mas sabe que o rir não é só felicidade, também pode ser de assustado…
– Sim mas achei estranho…

“Quando vi as imagens depois vi marquesas e quando lá estive nem tive noção disso, nem sabia que estava lá aquilo. Havia barulho sim, pessoas a falar alto. Se ouvi a frase ‘O Sporting somos nós’? Não me recordo. Vi vultos, posso ter visto empurrões, agressões não. Muitas pessoas, muito fumo. O único que vi perto foi o William, além do Bas Dost. Lembro-me do Jorge Jesus já cá fora, foi falar com alguém e saí pela porta. Depois entrei no carro e achávamos que havia uma saída para o outro lado, que afinal não havia”, completou nessa parte.

– Portanto, foram tipo PlayStation, chegaram ao último nível, deram de cara com o monstro e qual era a ideia? As conversas podem ser só tontice mas deram o passo… Qual era o passo seguinte?
– Não era agredir ninguém, era só assustar…
– Assustaram os jogadores e o país inteiro… Mas parece que depois chega ao balneário e fica assustado, estupefacto. Se foi assim, podia ter saído…
– Sim, devia ter saído…
– Não, não, não devia era ter entrado e era na Academia. Veja a minha estupefação: diz que faz, que acontece e depois chega lá e fica estupefacto…
– E foi um dos primeiros a entrar e um dos últimos a sair… – acrescentou Sílvia Pires
– Confesso que bloqueei…
– Tentou interagir, tentou organizar, como diria um colega meu com energia criminológica, sai e depois…
– Acredito que não faça sentido…
– Isso depois somos nós que vamos ver mas também lá tem nas mensagens um assustar de tal maneira que tenham medo depois de apresentar queixa…
– Acho hoje em dia condenável tudo isso e não me revejo nisto hoje em dia. Não sei o que me passou pela cabeça na altura e estou mais do que arrependido… Quero dar uma volta à minha vida. Acho incompreensível, tive logo essa sensação do impacto… Estou arrependido pelo que fiz, por mim e pela minha família principalmente. Não tinha ideia do que ia acontecer e não há nenhuma justificação…
– São palavras muito bonitas…
– Mas não são só palavras bonitas…
– Mas explique-me lá então: porque é que fez e hoje não faria?
– A minha namorada é médica, falo com ela e com amigos, e acho que era quase como um vício que tinha e que se tem de curar. O vício do Sporting, das claques…
– Aqui não é a fanfarronice nas redes ou nos grupos, é o que leva um grupo de pessoas tão diferentes darem o passo seguinte…
– Vi nisto um escape… Como se sabe que não volto a fazer? Tenho de curar este vício, afastar-me de tudo isto, até pelo que fiz sofrer os meus, as vítimas e o Sporting. Tenho 29 anos, estudei nas melhores escolas, tinha todas as condições e não sou nada…

Sílvia Pires, que nesta fase estava apenas a ouvir, fez uma interrupção ao ouvir o “não sou nada” e tomou então a palavra. “Isso não! Somos um passado e um presente mas temos futuro. Não é por se fazer uma coisa má atrás que fica com isso do ‘não sou nada’. É você que decide o seu futuro, seja o mais cadastrado possível ou não… Tem a vida toda à sua frente. Ainda por cima cada vez saímos mais tarde de casa dos pais…”, exclamou.

– O que quis dizer foi que não sei o que vou fazer à minha vida, tenho planos e é motivo mais do que suficiente para desligar dessa vida…
– Sim mas pode juntar-se depois a outra coisa… Como é que me diz que por exemplo não se vai juntar a uma seita religiosa e um dia entra lá e parte aquilo tudo?
– Tenho um foco de vida, finalmente segui os conselhos…
– Tinha também um curso de treinador, não era?
– Estava a tirar um curso de treinador, não concluí porque fui fazer exames na faculdade no Algarve…
– Já imaginou estar no balneário e viver isto?
– Joguei à bola muitos anos, não imagino…

À terceira juíza do coletivo, Tiago Neves referiu ainda que pensava que iria um grupo de “70 ou mais” à Academia nesse dia. Já à procuradora, Fernanda Matias, voltou a dizer que “a intenção nunca foi bater”. “Confirmo todas essas mensagens que está a referir, se diz que escrevi é porque escrevi. Mas nunca achei que isso fosse acontecer, tanto que a caminho disse para não baterem, existe essa mensagem”, explicou, antes de referir que as tochas “eram mais para marcar a chegar, para assustar, daí que tenham sido abertas cá fora”.

Por fim, e apesar de ter dito que não respondia a perguntas de outros advogados, acabou por confirmar que a balaclava recuperada no carro onde seguia era sua, depois de retirar já no interior da viatura. “Dou este exemplo: nas mensagens aparece que batia no Paulinho quando o Paulinho é quase um símbolo, até nos encontramos algumas vezes no mesmo restaurante. Disse essas coisas no grupo mas não fiz nada…”, concluiu, antes de ser dispensado quase duas horas depois e começarem a ser ouvidas as testemunhas abonatórias e de defesa.