São incontáveis as maneiras de dividir as personagens de ficção televisiva em categorias. Os heróis e anti-heróis. Os vilões. Os superadores. Os outsiders. Ted Lasso, personagem que dá nome a um dos primeiros verdadeiros sucessos da plataforma de streaming Apple+, tem a sua própria categoria: personagens a quem podemos comprar um carro usado com a maior das confianças. Não só nunca nos tentaria enganar no preço ou no estado do bólide como ainda nos traria biscoitos caseiros feitos pelo próprio.

Há um ponto em comum evidente entre “Ted Lasso”, a sitcom, e Ted Lasso, o personagem. É que ambos tinham tudo para falhar e todo o seu reconhecimento não é menos que uma verdadeira surpresa. Lasso é um treinador de uma pequena liga universitária de futebol americano que não só é escolhido como aceita vir para o outro lado do Atlântico treinar o AFC Richmond, uma equipa londrina da Premier League daquele que é, perdoem-me a imparcialidade, o único futebol que interessa – aquele que tem balizas, penalties, sandes de courato e resultados de 0-0 em partidas decisivas. É claramente uma escolha bizarra para aquela posição, assim como é bizarra a opção da Apple de pegar em anúncios de televisão e encomendar uma série com o mesmo protagonista.

Ted começou como a cara de uma campanha viral da NBC Sports, quando esta quis comunicar que ia começar a transmitir o campeonato britânico . Daí a uma série sobre um treinador que é escolhido exatamente por ser a pior opção para o cargo (a nova dona do clube, que ficou com ele depois de um divórcio litigioso, quer arruinar todas as chances da equipa para se vingar da infidelidade do ex-marido) foi um passo. Um passo digno do ministério dos Silly Walks dos Monty Python, diga-se.

[a campanha viral da NBC:]

Entre o Lasso dos anúncios e o Lasso da sitcom há semelhanças e diferenças. Nenhum deles sabe reconhecer um fora-de-jogo. Mas a versão que se apresenta agora revista e aumentada para 10 episódios de meia hora é muito mais meiga. Ted Lasso é o personagem mais bonzinho, dócil e apaziguador de que há memória recente numa ficção cada vez mais cáustica. Dito assim, parece meio caminho andado para uma série aborrecida, irrealista, irritante e a fazer lembrar o Poupas da “Rua Sésamo” ou a rubrica do Padre Vítor Melícias nos primórdios da TVI com a cruz como logótipo. Não é o caso. O otimismo, inteligência emocional e generosidade deste mister em modo peixe fora de água é o cobertor quentinho que precisamos depois de um ano de pandemia. “Ted Lasso” provoca gargalhadas, comoção, mas acima de tudo provoca alívio. Depois de tantos meses de confinamentos, más notícias e distanciamentos, esta sensação de que a empatia é que colhe é uma canjinha de galinha pelos olhos adentro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Aos então 10 episódios já disponibilizados vão juntar-se pelo menos mais duas temporadas de 12 compradas pela Apple. A segunda deverá estrear no verão, provavelmente ainda nos apanhando entre máscaras e álcool-gel e por isso mais do que a tempo para ser a injeção de feelgood que precisamos quase tanto como a da vacina. Nomeada para os Globos de Ouro de Melhor Comédia e Melhor Ator de Comédia (Jadon Sudeikis), tornou-se no maior êxito da plataforma que tem de competir com uma ultra oleada Netflix (maior êxito descontando “Morning Show”, que custou um camião TIR cheio de barras de ouro para um efeito de crítica e prémios semelhante).

[o trailer de “Ted Lasso”:]

Criada pelo próprio protagonista e pelo experiente Bill Lawrence (de “Scrubs”, outra sitcom sem problemas em apostar numa certa sacarose), a equipa de escrita conta com quatro mulheres (uma entrada a pés juntos em dois preconceitos – o de que as mulheres não percebem nada de humor nem de futebol) e com o ator que encarna o jogador mais velho da equipa, um tal de Roy Kent que já foi uma estrela e agora é só um avançado com os joelhos em pior estado que os do Mantorras.

E aos olhos de um não-americano muito mais familiarizado com este futebol de esférico perfeito, “Ted Lasso” é credível? Bom, para uma produção born in the USA é bastante mais realista do que se poderia supor. Claro que um treinador de futebol americano de terceira categoria nunca poderia ser inscrito como treinador, mas o ambiente de balneário e alguns detalhes de jogo são claramente fruto de muito cuidado de escrita. O AFC Richmond não existe, mas seguidores mais atentos da liga inglesa vão reconhecer várias características do Crystal Palace, dos resultados desanimadores às cores do equipamento. Mais: a série foi, efetivamente, filmada no estádio do Crystal Palace – que, mesmo assim, existe em nome próprio no universo da série, já que é um dos primeiros rivais do Richmond. A ligação estreita à Premier League real levou até a que uma das promos da série tenha tido como conselheiro de Ted o treinador do Tottenham, José Mourinho.

[uma conversa entre Ted Lasso e José Mourinho:]

É igualmente refrescante ver um personagem que, optando sempre pela bondade, não é um tonto. Se estão a achincalhar Ted, ele apercebe-se (há uma cena com uma aposta com dardos no pub local que é particularmente exemplificativa). Simplesmente, gere-o com a mestria de quem percebe as imperfeições da condição humana. Além de treinar clubes de futebol em risco de descer, também devia treinar indivíduos em risco de perder a esperança nas outras pessoas. Bem sabemos como agora nos faria falta.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa