Armando Vara, antigo ministro socialista, foi libertado da prisão esta segunda-feira, anunciou um comunicado do Tribunal Judicial da Comarca de Évora. Estava a meio do cumprimento da pena de prisão de cinco anos a que foi condenado três crimes de tráfico de influência no processo Face Oculta.

O antigo ministro e ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos estava numa saída precária durante o fim de semana e regressou à prisão para assinar os papéis da libertação. Chegou ao Estabelecimento Prisional de Évora por volta das 14h15, para “tratar do procedimento” relacionado com a sua libertação e saiu em liberdade por volta das 14h30.

Em declarações aos jornalistas, afirmou que estava a cumprir pena por crimes que não cometeu e que o comunicado do tribunal o prova. Mais: disse que o facto de ter sido libertado o iliba dos crimes de tráfico de influências.

O que daqui saiu, o que esta decisão demonstra sem margem para dúvidas, é que eu não cometi nenhum crime no exercício de funções públicas”, considerou: “Sou completamente ilibado disto. É isso que diz [o despacho], senão não podia ser libertado. Se não fosse ilibado desse crime não podia ser objeto de perdão. Está na lei”.

Armando Vara fala de um “absurdo” e “brutal erro judiciário”: “Desde o princípio que o tribunal disse que tinha praticado crimes no exercício de funções públicas e isso foi sempre mentira, [assim] como nunca cumpri nenhum crime”. E insiste: “Não só nunca cometi nenhum crime no exercício de funções, nem aquilo que era acusado foi por causa das funções que cometia”.

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De dia, na biblioteca. À noite, ao lado de um serial killer. A vida de Armando Vara na prisão

Vara estava desde 16 de janeiro de 2019 a cumprir uma pena de prisão no âmbito do processo Face Oculta, no Estabelecimento Prisional de Évora — onde se apresentou voluntariamente —, depois de os juízes terem dado como provado que o antigo ministro recebeu 25 mil euros do sucateiro Manuel Godinho, como contrapartida por beneficiar as suas empresas. A condenação viria a ser confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto — o Supremo não aceitou o recurso e o Constitucional decidiu “não conhecer do objeto” do recurso interposto.

Em março de 2019, o Tribunal de Aveiro aceitou descontar os três meses e sete dias na pena, correspondente ao período em que esteve sujeito a prisão domiciliária, no âmbito da Operação Marquês. Assim, os cinco anos anos a que foi condenado passaram a quatro anos e nove meses. Isto significava que a pena de prisão a que foi condenado pelo processo Face Oculta terminaria a 9 de outubro de 2023. No entanto, o ex-administrador da CGD poderia ser colocado em liberdade quando completasse os dois terços da pena, em 9 de fevereiro de 2022. Só que foi libertado esta segunda-feira ao abrigo de lei criada para enfrentar a pandemia.

Vara afirma que nunca recebeu condicional por “motivações de política judiciária”

O antigo ministro também afirma que o facto de nunca ter recebido a liberdade condicional teve “motivações políticas” porque “era preciso convencer a opinião pública” de que os crimes eram graves e tinham ocorrido no exercício de funções públicas — o que impossibilitaria a pena suspensa. “Não tenho dúvidas que a motivação foi também de política judiciária e também motivada por todo o espetáculo mediático das instituições”, comentou.

Procurando por “uma pedra no assunto”, Armando Vara assume: “Os tribunais decidiram, eu apresentei-me aqui para cumprir pena, a pena não correu nos termos em que eu queria, mas acabou. Estou livre, não quero falar mais sobre esse assunto”. E prossegue: “O Face Oculta para mim desapareceu. Vou escrever sobre isso, como é evidente, a seu tempo. Já escrevi, rasguei, voltei a escrever, voltei a rasgar”.

O ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos condena o que considera ser uma “tendência para a judicialização da política”, o que é “mau para o Estado, mau para a política e mau para as pessoas”. Armando Vara afirma que, hoje em dia, o Ministério Público “não investiga”, demonstrando “um grande desgaste em relação às liberdades individuais”: “Não faz sentido que, depois de quase 50 anos de democracia, vejamos a desconsideração pela liberdade por parte de alguns tribunais”.

Relativamente ao processo do Caso Marquês, em que está também envolvido, Armando Vara afirma que “os pressupostos são os mesmos” do que no Face Oculta. O recurso que apresentou leva-o a crer que não voltará mais à cadeia: “Não deixei de acreditar na justiça e acredito que vou ser ilibado na Relação. Mas isso é uma questão de fé, mas muito fundada na qualidade do recurso que apresentámos”.

Vara libertado ao abrigo de lei criada para enfrentar a pandemia

O comunicado do tribunal indica que Amando Vara “foi hoje libertado ao abrigo da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril (Regime Excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença Covid-19), a qual permanece em vigor”. O comunicado foi emitido esta segunda-feira e está assinado pelo Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, José Francisco Santos Saruga Martins.

A lei citada por ele diz que, perante a “emergência de saúde pública” que é a Covid-19, são perdoados “os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena”.

O mesmo documento justifica que o Tribunal de Execução de Penas de Évora acredita que Armando Vara “reunia os requisitos legais de perdão de pena” e que a medida foi aceite pelo Ministério Público. Além de já ter cumprimento metade da pena, contou para a decisão do tribunal o facto de o antigo ministro não ter sido condenado por qualquer crime considerado “imperdoável”.

Além disso, o crime de tráfico de influência não está contemplado como exceção à lei apontada pelo tribunal, uma vez que Armando Vara já não era titular de cargo político quando os crimes foram cometidos (2006 a 2009). Os crimes resultaram das ligações pessoais e partidárias do antigo ministro, não por causa das funções de alto cargo público que ele tinha exercido.

Um total de 2.030 reclusos foram libertados entre 11 de abril de 2020 e 31 de agosto ao abrigo do regime excecional de flexibilização da execução de penas. Segundo informações fornecidas à agência Lusa pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) “entre 11 de abril de 2020 e 31 de agosto de 2021, foram registadas 2.030 libertações”.

De acordo com o DGRSP, foram também concedidas 906 Licenças de Saída Administrativa Extraordinária/LSAE e concedidos 16 indultos. “Releve-se que, ao presente momento, estão unicamente 27 reclusos em usufruto de Licença de Saída Administrativa Extraordinária e que a última LSAE que foi concedida é datada de 4 de junho de 2021”, adianta a DGRSP.

Lei que beneficiou Vara já libertou mais de 2.000 reclusos até agosto

Libertação é a “solução menos injusta”, diz advogado

O advogado de defesa de Armando Vara disse à Lusa que esta decisão é “uma solução menos injusta” para o caso. “É uma decisão que, cumprindo a lei no caso concreto, acaba por permitir uma solução menos injusta”, notou o advogado Tiago Rodrigues Bastos: “Fico muito contente, muito satisfeito porque já era tempo de ele ser devolvido à liberdade”, frisou, adiantando que Armando Vara está, “acima de tudo, aliviado”.

“A pena que lhe foi aplicada não era justa e, em qualquer caso, ele já tinha cumprido tempo suficiente”, assinalou o advogado do escritório RBMS – Rodrigues Bastos, Magalhães e Silva & Associados.

A libertação de Armando Vara “protege o Estado de Direito”, destaca Tiago Rodrigues Bastos, defendendo a necessidade de se refletir sobre “a desproporcionalidade da aplicação da justiça (e não da lei) em relação aos crimes económicos”. Isto porque, alerta, “a justiça está a perverter aquilo que a própria lei prevê” para este tipo de crimes.

Vara foi condenado em julho a dois anos de prisão efetiva no âmbito da Operação Marquês

A pena que Vara estava a cumprir diz respeito ao processo Face Oculta, na qual os juízes deram como provado que o antigo ministro recebeu 25 mil euros do sucateiro Manuel Godinho, como contrapartida por beneficiar as suas empresas. No entanto, em julho deste ano Armando Vara foi novamente condenado num processo diferente: a Operação Marquês. O antigo ministro foi condenado a dois anos de prisão efetiva por um crime de branqueamento de capitais.

Uma vez que a condenação é inferior a cinco anos, o tribunal poderia ter optado por uma pena suspensa e não efetiva. Porém, o facto de Vara deste ter desempenhado o cargo de ministro pesou na decisão de o condenar a pena efetiva de prisão: “O arguido exerceu as mais altas funções públicas, contribuiu para a condução dos destinos no pais e tinha rendimentos declarados acima da média. Tinha o dever moral de agir de uma forma diferente de como o fez, sendo elevado o nível de censura. Há que considerar também o grau de ilicitude muito elevado”, disse o juiz Rui Coelho na leitura do acórdão.

Operação Marquês. Armando Vara condenado a dois anos de prisão por branqueamento de capitais

Os juízes entenderam que ficou “demonstrado objetivamente o circuito de dinheiro” e “o percurso que o dinheiro fez para chegar de A a B”, relacionado com os dois milhões de euros que Vara colocou em contas na Suíça e que trouxe depois para Portugal. Ficou também demonstrado que o objetivo do antigo ministro era fazer chegar a Portugal 535 mil euros, branqueados através de negócios imobiliários, sem que o dinheiro fosse “detetado pela Autoridade Tributária”. “À luz da informação recolhida e da experiência não é difícil alcançar a motivação do arguido com a circulação de dinheiro introduzido em numerário pela mão de terceiros para depois entrar em contas de sociedades offshores”, indica o acórdão.

[Artigo atualizado às 17h14 de dia 11 de outubro]