[este artigo foi originalmente publicado a 21 de março de 2022]

Se há coisa certa numa casa portuguesa é uma televisão ligada o dia todo. A voz incessante dos locutores, o ambiente sonoro feito a pensar em manter o nosso coração em sobressalto à espera da mais recente catástrofe, ou a nova descoberta científica. Assim os nossos dias equilibram-se precariamente entre o medo do Apocalipse e a esperança da descoberta da imortalidade. Na rua, nos transportes públicos, as pessoas passaram a não viver sem música, podcasts, conversas infinitas com phones nos ouvidos ou telemóveis na boca. Se a este cenário juntarmos os ruídos das cidades e a grande maquinaria que as sustenta, o trânsito, a imposição de, em qualquer relação, ter que existir sempre uma conversa (que não é aqui sinónimo de diálogo), seja real, seja virtual, percebemos que raramente temos um espaço mental de silêncio nos nossos dias.

“Hoje sabemos melhor que o silêncio não é assimilável por uma sociedade que o despreza e ignora — e por isso ele perturba. No fundo, [o silêncio] é uma atitude que permite o pensamento  (…) e a interiorização da experiência. Pode assim ser-se solitário no meio de uma multidão (como Baudelaire e Poe), tal como escolher o silêncio produtivo no meio do ruído reinante.”

[“Breviário do Silêncio”]

O silêncio é, aliás, algo muito mal visto, quase sempre associado a experiências negativas como a tristeza, a solidão, a morte. Os psicólogos recomendam “preocupação” para com crianças silenciosas, as pessoas menos dadas às conversas são frequentemente tidas como “esquisitas”, vigiam-se-lhe potenciais traumas, sondam-se problemas mentais. Vinda de todo o lado a ordem para falar, “porque falar cura”, anuncia a psiquiatria, falar é alegria, anuncia a industria da auto-ajuda, já silêncio é melancolia. O silêncio só é bem visto quando colocado no pacote chamado “retiro espiritual”, em paragens distantes, cenários exóticos, preços faiscantes,  quando recomendado pelo coaching ou em livros escritos por figuras famosas.

Face a este tempo que teme terrivelmente o silêncio, o ensaísta e tradutor João Barrento atreveu-se a colocar à venda, algo timidamente, como é seu jeito, um livro sobre “as festas do silêncio” (Hölderlin) e que é ele próprio uma festa de silêncio e poesia; uma pequena delicia, um oásis chamado, justamente, Breviário do Silêncio (editora Alambique). O livro como que se divide em três partes: a primeira é uma reflexão sobre o silêncio, não como coisa mística, mas como uma condição da natureza, logo uma condição da vida humana na Terra, que se estende por muitas formas de experiência, que vão da contemplação, à leitura, do prazer solitário do flaneur, ao prazer de descobrir o silencio dentro da intimidade com outro alguém. A segunda parte é uma deambulação pela obra de artistas para os quais o silêncio é o alicerce da sua obra: do escultor Rui Chafes, à escritora Maria Gabriela Llansol, do poeta romeno Paul Celan, aos mestres orientais como Bashô ou Lao Tse, do poeta português Fernando Echevarria ao poeta alemão Hölderlin.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Com uma grande sensibilidade e apurado sentido poético, Barrento ensina-nos que “os olhos são o órgão do silêncio”, e não a boca. E que o rosto humano é provavelmente o único lugar onde o silêncio se pode ler. Cada paisagem humana ou natural é um manual de e sobre o silêncio, coisa que na verdade não existe, nunca terá existido. O silêncio é sobretudo uma condição da escuta. Por isso o sino da igreja, o canto dos pássaros, o rolar dos seixos ou das ondas são ruídos que não interrompem o silencio, apenas o propagam. O mesmo acontece com alguma música.

Só no silêncio se vive verdadeiramente o tempo, experimentamos a eternidade, dedicamos atenção às coisas mais ínfimas, escreve o autor, que diz ter descoberto cedo na sua vida “que o silêncio é uma festa”, e o lugar de muitos prazeres que nos estão a ser negados por esta imposição da palavra, da imagem, dos mais diversos tipos de ruído. Qual é a diferença entre os milhares de vozes aos gritos numa rede social e um mercado medieval? Talvez nenhuma. Silêncio não é o contrário de ausência de som. “Silêncio é um mais da experiência”, ou seja, é uma experiência mental e física, de abertura de um espaço e a um tempo em que se está em si mesmo, não deixando por isso de estar com o mundo. Pelo contrário, quanto mais soubermos viver no silêncio e na solidão, melhor saberemos viver com os outros, lembra-nos Séneca.

Falámos com João Barrento sobre este Breviário, que sabe que o silêncio “é inexplicável”, mas também uma das mais radicais experiências que o ser humano pode ter na passagem por este mundo.

A capa de "Breviário do Silêncio", de João Barrento (Alambique)

Neste seu Breviário do Silêncio, que é sobretudo uma uma viagem pessoal às festas do silêncio celebradas por vários artistas, há também um aviso urgente sobre tudo o que perdemos quando não temos capacidade de perceber a importância do silêncio para a nossa vida interior e exterior. Que (per)cursos, que caminhos o trouxeram até este livro?
A estrada larga do silêncio, dos silêncios de vária ordem que nos podem guiar, sempre foi o meu caminho preferido, à margem dos ruídos mais ou menos estridentes do mundo, e mesmo da fala pela fala, a “variegada desconversa” das vidinhas, como escreve Paul Celan. Mas este livro, o Breviário do Silêncio que fui vivendo de forma mais sensível nos primeiros meses da pandemia, já vinha de antes e correspondia originalmente a um plano muito diferente. Começou por ser — e deveria ficar-se por aí — uma reflexão sobre a obra do escultor Rui Chafes à luz do silêncio falante que, ao que me parece, dela emana, e que o artista por mais de uma vez reconheceu. Mas depois o tema impôs-se para lá desse paradigma maior e começaram a perfilar-se outras referências decisivas, de filósofos e poetas, do cinema e da arte, da música e da literatura. E subitamente vi-me acompanhado, nesta estrada silenciosa, por figuras com as quais convivo há muito tempo, e outras que a nós se juntaram, vindas de caminhos laterais, de veredas de ocasião, igualmente silenciosas.

A dependência que hoje temos do ruído revela sobretudo um enorme medo do silêncio e da relação com nós próprios, com a reflexão, a memória. Na sua opinião, qual é a razão desta fuga ao silêncio?
Não sei se o mundo de hoje é o de uma “fuga ao silêncio” (que, a sê-lo, não é deliberada), ou antes o de uma entrega inconsciente a formas várias de ruído tido como necessário – para “animar” existências de outro modo cinzentas, para criar a ilusão de uma “qualidade de vida” que reduz as vidas a uma dependência total de novos “aparelhos ideológicos” de controlo, hoje propagandísticos e digitais, para servir toda a espécie de consumismos – de “bens” sem qualquer bem, de “ideias” sem densidade, de “serviços” que de pouco servem, de toda uma parafernália quase sempre ruidosa na sua propaganda.

Parar para ouvir o silêncio, reconhecer a sua função determinante no processo de auto-conhecimento, é qualquer coisa de altamente estranho nesta era da aceleração, em que se receia cair-em-si, porque isso significaria a queda, mortal, para fora de um mundo todo feito de exterioridade, enredado, em que vive – ou julga viver – a maior parte das pessoas. Isso significaria entrar num outro tempo, lento e criador, que é o único que o silêncio conhece – o silêncio e a música (que não é o oposto do silêncio, é antes muitas vezes um seu recetáculo privilegiado), onde aquele só se ouve verdadeiramente na duração, e não na estridência da altura dos acordes, como reconhece [o compositor] John Cage, que cito no livro.

Em dois anos de pandemia, teremos perdido uma oportunidade de encontrarmos a tranquilidade e até a redenção no silêncio?
Encontrei, no meio da histeria pandémica, tranquilidade para fazer este e outros livros. Não terei encontrado propriamente uma “redenção” no silêncio (algo com que já convivia antes), mas estou aqui, são e salvo. Provavelmente porque, a partir de um dado momento, resisti ao massacre diário dos media, e continuei a acreditar, sem dramatismos, que somos seres-para-a-morte, e que ela, tal como o corpo de cada um, são sempre e só nossos. E esta desdramatização anda de mãos dadas com o silêncio, algo que não vai com a civilização que nos coube em sorte (ou em desgraça), invasora, manipuladora e alegremente inconsciente, desconhecedora da singularidade do Eu. E só no espaço livre dessa singularidade o silêncio germina e pode ser criador.

Mais do que um apelo ao silêncio, este Breviário é também um memento para as suas delícias, os seus prazeres, o seu potencial como vida, resistência, recusa. O silêncio pode ser a nossa única revolução contra este tempo que nos obriga a viver em  modo de “presente” e estrépito contínuo?
Essa é de facto uma forma de resistência passiva que incomoda os poderes. Por isso eles muitas vezes “resolvem” tais situações de forma radical, pura e simplesmente silenciando os resistentes do silêncio. No livro lembro pensadores contemporâneos como Jacques Rancière ou Pascal Quignard, que chamam a atenção para a força de alguns desses “manifestos mudos”, da “contestação pela retirada”. Os que ousam escolher esta via são os “rebeldes da restante vida” (que Llansol, uma autora desta linhagem contrapõe simplesmente ao “mundo”, com todo o seu ruído). É claro que esta forma de rebeldia nunca transformou o mundo (a não ser talvez pelo exemplo, que outros podem seguir). Os contestatários silenciosos do presente contínuo em que vivemos (que julga poder prescindir da memória e é incapaz de se assumir como futuro que não seja tecnológico) são, afinal, uma espécie de “místicos sem misticismo”, se pensarmos que o sentido de “místico” na língua grega é simplesmente o de silencioso. Hoje sabemos, melhor do que nunca, que o silêncio não será assimilável por uma sociedade que, a nível global, o despreza e ignora. Mas por isso mesmo ele perturba a ordem estabelecida.

Pela sua contenção, pelos artistas escolhidos para analisar, este Breviário parece aspirar ele próprio a um grande e profundo silêncio. Fale-nos um pouco destes artistas silenciosos que escolheu para este livro e as várias formas de silêncio que cada um deles encontrou e expressou nas suas obras. E porque é que escolheu estes e não outros? Robert Walser também era outro homem silencioso, Walter Benjamin também…
Um filósofo alemão nosso contemporâneo [Odo Marquard] lembra-nos de que “somos mais feitos de acasos do que de escolhas”. Como disse antes, dos nomes que vieram ter comigo pelos caminhos do silêncio, Rui Chafes foi o primeiro, e esteve para ser o único. Os outros foram surgindo porque eram não apenas casos exemplares, mas também porque na maior parte dos casos me acompanham há muito tempo. O caso Robert Walser, que refere, poderia ter “acontecido”, mas estava destinado, por algum acaso inexplicável, a vir pouco depois: aconteceu agora, com a seleção de 50 Poemas saídos nas Edições Sr. Teste, com um título que se casa bem com o Breviário do Silêncio: Estou só e fora do mundo…  Já Benjamin não o vejo muito como um filósofo do silêncio, antes como um pensador da ideia reverberante, original, um cultor de imagens vivas de pensamento – com uma vida que foi uma travessia de silêncios, isso sim.

Os outros são todos, cada um a seu modo, autores de obras de grande despojamento e intensidade, um vazio pleno de onde, por razões existenciais, históricas ou estéticas irrompem formas de silêncio intrinsecamente ligadas a modos de encarar o mundo ou de fazer nascer a obra.

O que lhe ensinaram eles e as diferentes formas de silêncio destes artistas?
O que aprendi? Com Rui Chafes, que a arte é um fazer discreto e íntimo, nos antípodas da auto-exposição do artista e do espetáculo colorido e gritante de tanta arte contemporânea. Aqui, a obra simplesmente se dá a ver, e apela ao silêncio que traz em si, apontando para uma qualquer origem (uterina?), de antes do som.

Com Maria Gabriela Llansol, que é das dobras do real que “apuram o silêncio” que nasce o sentido mais fundo das coisas e do ser, que o Texto nos dá a ouvir com a sua Voz. Que nada explica, mas tudo ilumina no silêncio da leitura, deixando-nos “mudos de expressão”, imerso no silêncio das imagens desta prosa.

Com o poeta-filósofo Fernando Echevarría compreendi, melhor do que já sabia, que silêncio, vagar e estudo são os ingredientes fundamentais e congeniais da introspecção – algo que hoje pouco se pratica, mas de que vive toda a poesia de Echevarría.

Paul Celan veio dizer-me um dia, nos idos de setenta do século passado, que o seu tempo – histórico e necessariamente também pessoal – foi um tempo de sombras e silêncios negativos. De morte, que levou ao apagamento progressivo da linguagem na sua poesia e, em última análise, ao auto-silenciamento da morte livre. Mas gerando também, na escrita deste grande oficiante do silêncio, a luz dos “sóis desfiados” do poema, que lhe diz, e nos diz, que “há ainda canções para cantar / do outro lado dos homens”.

Já o silêncio que se ouve na poesia de um Hölderlin é sobretudo o que vem de cima, do éter, de um qualquer lugar transcendental e humano, demasiado humano, que hoje, em tempos de real indigência, deixámos de ser capazes de sentir – as “palavras dos homens” interpõem-se sempre, ruidosas e vãs. No poeta que se retira, “a meio da vida”, para o silêncio da Torre (e da loucura mansa), este é um guia: “Quanto maior é o silêncio, / mais coisas se dizem” e as palavras dos seres de diálogo que somos – apenas alguns, claro!

E há ainda os “mestres ignorantes” orientais, praticantes dessa forma poética a tender para o silêncio, que é o haiku. Com esses fiquei a saber que se pode chegar ao essencial através do silêncio e que podemos conversar sem palavras com o mundo – ou com os rostos e os olhos de tantas belas mulheres da história da pintura (que convoco no final):

“Aquele que sabe não fala,
aquele que fala não sabe.
Falar, raramente é conforme à natureza”

Sendo sobretudo um incansável tradutor, uma tarefa também ela que obriga ao silêncio, porque interrompeu o seu silêncio, para nos vir falar do silêncio? Não é um paradoxo?
Não interrompi o meu silêncio de tradutor, aproveitei-o para, em simultâneo, preparar mais um volume das Obras de Walter Benjamin, o último, que reúne os Diários de Viagem [a sair em março]. Não há paradoxo entre o viver o silêncio (que, só vivido, é talvez gratificante, mas improdutivo) e o falar dele. Afinal, a escrita, necessariamente silenciosa, é a melhor maneira de consciencializar o silêncio e tentar entender, pela reflexão, a sua essência e as suas formas.

Uma das faces do silêncio para as quais chama a atenção é a ideia de “um silêncio fértil”. Ou seja, o silencio não é a morte, o fim, pelo contrário, o silêncio convoca à abertura à memória, mas também à chegada do novo, à abertura ao conhecimento. É preciso começarmos a pensar numa educação para o silêncio?
Uma educação para o silêncio, na nossa tradição (que é diferente da do “mestre ignorante” oriental, ou mesmo da socrática, com a humildade do seu saber e a componente silenciosa da sua ironia), poderia ser uma educação para a leitura. A leitura é uma das situações mais facilmente geradoras de “silêncio fértil”. E sabemos como há muito tempo se vem lendo cada vez menos, e olhando cada vez mais para breves mensagens, posts, informação rápida. Com a leitura, entramos muitas vezes noutras dimensões, enriquecedoras e gratificantes. O prazer da leitura, como lembra Proust [em Sobre a Leitura] não é apenas o de aprender (com os melhores, se possível, e não apenas para passar o tempo), é sobretudo o de podermos ficar a sós connosco mesmos, “em pleno trabalho fecundo do espírito sobre si próprio”. Também Pascal Quignard (La Barque Silencieuse) lembra hoje que a leitura é uma das “sete solidões”, que confirma a ideia de que a capacidade de ficar a sós com o livro é uma das melhores formas de soltar a imaginação numa situação de “não sociedade” que pode ser fundamento de criatividade, longe do ruído da indústria da cultura. Não se trata de um apelo ao isolamento associal, trata-se de um complemento importante da vida com os outros. A escola, sendo necessariamente uma sociedade, poderia no entanto despertar muito mais o gosto por esta convivência com o silêncio.

A palavra não é uma coisa cada vez mais fraca, mais irrelevante? Não só porque o espaço é cada vez mais ocupado pela imagem, que como sabemos é siderante, mas também porque a palavra se tornou um objeto facilmente manipulável por vários tipos de poder…
A palavra banalizou-se, de facto. E perdeu sangue e consistência, visão também. Seria preciso cultivar uma palavra não apenas assertiva, opinativa ou “objetiva”, mas também capaz de voos poéticos com silêncios a ouvir-se entre elas, outras palavras, não manipuladoras, mas livres e abertas à imaginação. Mas onde estão os que as podem usar assim, para que delas salte o brilho de uma ideia? Não serão muitos… Basta ler hoje jornais e revistas, para não falar das redes, para constatar como a palavra e a língua sofrem tratos de polé. Quanto ao domínio da imagem, já por mais de uma vez escrevi sobre esta “era da imagem”, que afinal – grande paradoxo! – é um tempo em que as pessoas não sabem ver, desaprenderam a escola do olhar!

Mas não há necessariamente incompatibilidade entre a palavra e a imagem, que podem conviver de forma muito criativa. Há as “imagens de pensamento” e as “palavras imaginantes”. O que acontece é que a iliteracia alastrou e as imagens se transformaram em instrumento de alienação e instrumentalização das consciências, em matéria-prima de uma cultura do kitsch. Sobretudo naqueles domínios que gerem hoje as consciências – o populismo, o consumismo, a publicidade (para não dizer propaganda tantas vezes melifluamente enganadora).

Não saber viver com e no silêncio torna-nos mais frágeis, mais manipuláveis, mais servis?
Porque o silêncio é o húmus onde pode medrar a nossa autonomia em relação a toda a espécie de poderes e forças controladoras da nossa vontade e da nossa força interior. Pelo silêncio resistimos, no silêncio somos mais nós próprios. O silêncio, como já referi, pode ser uma forma de resistência passiva. E o estar sempre fora dele, no borbulhar banal do mundo, retira-nos a auto-consciência e a firmeza de quem sabe onde está. No meio do ruído, andamos perdidos, ilusoriamente felizes, e somos fáceis joguetes dos agentes – e são muitos hoje – da alienação, do hedonismo fútil, tantas vezes de uma penosa infantilização e estupidificação…

Diz-nos, logo na abertura do livro, que a “sensação do silêncio é uma festa interior”. Quando e como descobriu no silêncio essa festa e decidiu que é para ela que se quer encaminhar?
O Eduardo Prado Coelho classificou-me um dia, no [jornal] Público, a propósito do que eu escrevia, como “um melancólico ativo”. À festa interior do silêncio aderi cedo, a uma melancolia serena que no entanto não abdicava, não abdica, do que há de belo e estimulante na vida e no mundo (em certos mundos), e da absoluta necessidade do fazer para nos afirmarmos, continuarmos, e eventualmente deixarmos rasto. E o fazer, pelo menos aquele que me é próprio e mais familiar, é cúmplice do silêncio e do seu prazer, da sua festa. Separando muitas vezes a vertente ativa e a contemplativa, à luz de uma simples máxima que me orientou durante muito tempo: Business is business, pleasure is pleasure!

O vocabulário estreita-se, domina o soundbite, a opinião rápida ou uma “linguagem neutra”. Poderemos falar num retrocesso?
O “neutro” não tem necessariamente de ter uma conotação negativa, mas falar de “linguagem neutra” corresponde a uma falácia de objetividade, é tentar neutralizar o que há de mais próprio na linguagem: a sua capacidade distintiva (“diacrítica”, diz a Linguística) e as suas potencialidades criativas. Fazer tábua rasa destas potencialidades, como acontece hoje no mundo digital e da inteligência artificial, é claramente um retrocesso civilizacional, como sempre, no sentido de uma desumanização, uma perigosa robotização universal.

Mas há outras formas de neutro, que não têm de ser necessariamente o inexpressivo ou o sempre igual, é mesmo outra forma de dizer o silêncio falante – por exemplo nas práticas místicas do “vazio pleno” da linguagem. Roland Barthes fez em tempos todo um curso sobre “O neutro” na Sorbonne, de onde se destaca, entre outras coisas, a ideia de que a linguagem do silêncio é preferencialmente marcada, e não neutra em sentido negativo. E a sua marca própria é a de um apelo intuitivo e de uma riqueza semântica, totalmente ausentes das linguagens neutras artificiais, capazes de sugerir, de solicitar, pela suspensão e pela duração, o salto para outras latitudes da imaginação.

É preciso acabar com a visão negativa do silêncio? É preciso lutar por um direito ao silêncio?
Não se trata de querer defender, muito menos impor, uma cultura do silêncio pelo silêncio. Somos animais de fala, e é preciso articular o pensamento, as intuições, as emoções (também, e sobretudo) pela linguagem, pelas muitas linguagens expressivas de que dispomos. Com este livro procuro apenas trazer a primeiro plano algo que anda muito arredado do mundo-da-vida e da própria criação contemporâneos: a ideia de que o silêncio é uma componente essencial da expressividade humana (e não só, muitas vezes também da animal), e de que há uma longa tradição da cultura do silêncio que chega até alguns dos melhores do nosso tempo. É o que pretendo sugerir a certa altura, ao dialogar com a poesia de Fernando Echevarría:

“Há uma mais-palavra na palavra.
É ela que abre a um maior silêncio,
pairando para lá das razões da razão,
oficiando em coros plenos de harmonia,
cultivando um desapego
que envolve num halo o pensamento”