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No Teatro S. Luiz está em cena um jogo para aprender quanto vale a desobediência

Este artigo tem mais de 1 ano

"É preciso ensinar a desobediência", afirma Marta Carreiras que criou uma peça que é um torneio. Neste palco decorrem os "Jogos de Obediência", modalidade que tem cada vez mais jogadores e adeptos.

Esta peça faz parte do projecto "Memória e Holocausto" e é um tríptico que começou em 2017, com a "Pedro e o Capitão", de Mario Benedetti
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Esta peça faz parte do projecto "Memória e Holocausto" e é um tríptico que começou em 2017, com a "Pedro e o Capitão", de Mario Benedetti

Esta peça faz parte do projecto "Memória e Holocausto" e é um tríptico que começou em 2017, com a "Pedro e o Capitão", de Mario Benedetti

Na linha da partida já se perfilam os jogadores. O jogo é simples: vão sendo feitas perguntas, quem obedece dá um passo em frente, quem desobedece dá um passo a trás. Naturalmente que quem obedece mais, mais vezes avança, mais depressa se move em direção à meta; quem desobedece vai recuando e vai-se distanciando da possibilidade de alguma vez vencer o jogo. Os vencedores, os que conquistam o poder, a glória, os aplausos são, portanto, aqueles que se prestaram sempre a dizer “Sim” e os derrotados os que disseram “Não”. A estes está reservada a sombra, a ostracização, o desprezo, a solidão, quando não pior.

Este é apenas um dos dos muitos “Jogos de Obediência” que se apresentam no palco da sala-estúdio Mário Viegas, no teatro S.Luiz, na nova peça de Marta Carreiras que se estreou na sexta-feira, dia 3 e fica até 19 de junho. Jogos que todos nós aprendemos a jogar desde a infância, que jogamos desde sempre, mas que por isso mesmo é preciso questionar. “Porque é que não se ensina a desobedecer?”, é a pergunta que a encenadora deixa, em conversa com o Observador.

Integrado no projeto “The Holocaust and Modernity: violence and obedience in present societies”, financiado pela FCT — Fundação para a Ciência e Tecnologia, o espetáculo faz parte de um “tríptico sobre a Obediência” que Marta Carreiras e Romeu Correia iniciaram, em 2017, com a obra “Pedro e o Capitão”, de Mario Benedetti, e prosseguem agora com estes jogos que “não se focam nos desobedientes como Aristides Sousa Mendes, mas nos obedientes como os alemães e todos os outros que, silenciosamente, aceitaram o extermínio dos judeus, nos que dizem sempre ‘Sim'”, explica a encenadora, que transformou literalmente a sala do teatro num campo de jogos, onde todos — atores e público — se tornam jogadores, cúmplices, obedientes.

A obediência é sempre o outro nome para submissão. Os vencedores dos jogos sociais são quase sempre os obedientes

Estelle Valente

A ideia de mostrar como os regimes de poder, adestram os corpos para os melhor os moldar e para mais facilmente eliminarem os focos de desobediência através da ideia do jogo e não da tortura, por exemplo, mostra com bastante clareza como funcionam as sociedades atuais, onde o poder já não se impõe pela violência explicita sobre o corpo (como os suplícios da Idade Média, ou os asilos do século XIX), mas através de formas subtis, doces, mas capilares, logo a partir da infância, mas com especial ênfase nos adolescentes: desde o consumo de objetos para ser aceite em grupos, às dietas, à rejeição de tudo o que não é celebrado pelos media, pelas redes sociais, à imitação e ao culto das celebridades e do seu “lifestyle”, a inculcação da necessidade de “vencer” ou “enriquecer” como os grandes sentidos da vida e que mataram, nas novas gerações, as grandes ideologias que atravessaram o século XX, por exemplo.

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“Se a adolescência é o tempo de rebeldia, ela também é o tempo em que as personalidades se consolidam e nascem os germes da obediência e da desobediência”, diz a encenadora. Por isso, a construção desta peça passou pela realização de dois workshops, um em São Teotónio, no Alentejo, com filhos das comunidades migrantes que trabalham nas estufas agrícolas, e outro em Marvila, Lisboa. “Eles ajudaram-nos a perceber que as circunstâncias exteriores contribuem muito para forjar e inculcar uma atitude obediente. Os mais pobres terão sempre mais a perder se e quando desobedecem. Os que vêm de classes mais altas, os que estão mais próximos dos centros de poder, têm mais autoconfiança para desobedecer. A vida dos seres humanos não tem muito espaço nem luar para se exercer fora de contextos de regras, protocolos, acordos, consenso. Onde quer que nos encontremos, estamos sempre a encaixar uma forma qualquer pré-determinada e fazemo-lo sem pensar sequer”, afirma Marta Carreiras.

Obedecer ou morrer

A cada espectador destes “Jogos de Obediência” é pedido que coloque uns auscultadores. Todos obedecem. Há uma voz que nos acolhe (Ivo Canelas) e representa a “Instituição” que organiza os jogos. Quatro atores/jogadores perfilam-se. Vão jogar até à morte se preciso for. Uns aguentam a sede, o absurdo, a injustiça, a desumanidade. Raramente desobedecem, embora o seu corpo reaja, por vezes em sentido contrário: tem sede, está cansado, começa a vacilar, perde a orientação. Mas ninguém desiste. A representante da “Instituição”, que é uma espécie de apresentadora de TV, torna-se a pouco e pouco mais déspota e os jogos mais violentos. Mas quem disser, como Bartleby, “preferia não o fazer”, corre o risco de morrer sozinho, esquecido, encostado a um muro ou um dia acordar e ter um processo em tribunal sem nunca saber porquê, como Josef K.

Quatro jogadores jogam durante uma hora e meia uma panóplia de jogos que são uma metáfora da sociedade contemporânea

Estelle Valente

A verdade é que cada um tem as as suas razões para obedecer. Os jogadores nunca estão em situação de igualdade, não há bons e maus, fortes e fracos. Também não há os que são sempre obedientes, nem os que são sempre desobedientes. Tal como o poder, a obediência, que é o outro nome para submissão, vai mudando. Por isso os vencidos também se tornam tantas vezes os vencedores. Porque, como escreveu Nietzsche em “A Genealogia da Moral”, a História está sempre a desafiar os sujeitos, e promete-lhes também o prazer da vitória ou do sangue, ganhos, privilégios, aceitação. E também há sempre quem consiga perverter as regras e fazê-las voltarem-se contra os dominadores. Os indivíduos também têm em si uma capacidade de lutar contra a lassidão, a fraqueza, a insegurança, as várias formas de domínio e violência. Isso encontra-se desde os monges ascetas que abandonavam tudo para se internarem nas florestas, aos movimentos de religiosas que cortaram com as instituições católicas, no século XII, e formaram comunidades autónomas nos campos, como as Beguinas, na atual Bélgica, por exemplo. Outras vezes é o próprio corpo ou a mente, e isto é mostrado na peça, que se revolta impedindo o jogador de continuar em jogo. O crescimento das doenças mentais e suicídios entre adolescentes é, segundo muitos psiquiatras e psicólogos, não mais que uma reação “de desobediência” a um sistema que os obriga a estar sempre em jogo, isto é, a responder sempre “Sim” a novas e velozes solicitações.

Este espetáculo não é sobre aqueles que desobedecem, mas obre aqueles que continuam a jogar o jogo. Às vezes por não terem condições para dizer ‘Não’, às vezes por falta de instrumentos para identificar o sistema como produtor das suas vontades e desejos, às vezes por cansaço ou exaustão, às vezes por desistência, por medo, por relações de pertença a um grupo ou a um império, às vezes porque não sobra mais nada” [Marta Carreiras]

A peça, de cunho fortemente político, nasce num tempo em que as gerações se educam para baixarem a cabeça em direção a um ecrã, o corpo, a coluna vertebral curva-se na posição do escravo. Levantar a cabeça e questionar um professor, por exemplo, é hoje “um gesto de grande coragem”, diz Marta Carreiras, muito crítica da Escola como grande produtora de uma massa de obedientes, apesar de, ao mesmo tempo, reconhecer que “desobediência não se ensina, ela vem ter connosco”.

“Jogos de Obediência” é uma peça obscura, que nos remete inevitavelmente para a desumanização, A Banalidade do Mal, concetualizada por Hannah Arendt, mas é uma gesto artístico e cultural certeiro e inteligente, ao colocar no palco esta questão fundamental das sociedades humanas: “O problema não é a desobediência, o problema é a obediência” (Howard Zinn).

Jogos de Obediência põe em cena seis atores: Cuca M.Pires, Madalena Almeida, Rosinda Costa, Rui M.Silva, Vitor d’Andrade, Sílvia Filipe e Ivo Canelas (na voz off). O texto e a dramaturgia é de Raquel F. que dá voz a uma panóplia importante de desobedientes como Kafka, Camões, H.Melville, José Mário Branco, Maria Velho da Costa, Beckett, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Helena Almeida.

A peça fica em cena até dia 19 de junho no Teatro S. Luiz, em Lisboa, com os seguintes horários: de 3 a 19 de junho 19h30; domingos às 16h. Até 9 de junho com sessões para escolas às 14h30. A peça tem a duração de 1 hora e 30 minutos.

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