[alerta spoiler: este texto tem informação sobre os espectáculos que continuam no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, até dia 8 de junho]

Sim, foi dos pré-funerais mais divertidos em que já estive. Até porque é muito raro poder homenagear o morto ainda em vida. Mas, como espectáculo per se, digamos que “Last Time to See me Before I Die” não é exatamente de morrer a rir.

O setup foi incrível; o payoff nem tanto. Um título genial, anos de espera, uma pandemia a adiar uma e outra vez o espectáculo e a testar os limites da piada em epígrafe: ainda veríamos John Cleese antes de morrer? Antes de eu morrer, quero dizer, porque ele está ótimo. E as folhas do calendário a caírem de 2020 para 2021, de 2021 para 2022, e uma pessoa a medir a tensão e os açúcares e a ordenhar o que resta de álcool gel nos dispensadores à porta das lojas, outrora perseguidos como o graal e agora abandonados como cabines telefónicas perdidas na evolução.

Finalmente, o encontro. Mais datas extra anunciadas. No plano original, eram duas (salvo erro); acabaram por ser seis. Diz-se que, aqui mesmo ao lado, em Espanha, não se consegue esgotar a sala (e uma das primeiras piadas do espectáculo parece apontar isso mesmo); aqui, faz-se à meia dúzia de coliseus quase todos esgotados. “Bom, não estava à espera da inquisição espanhola!” Certo. Talvez seja disso. Se tivessem feito a piada com a portuguesa, teríamos provavelmente esgotado os bilhetes ainda mais cedo.

“Last Time to See me Before I Die” tem duas partes: uma que tem graça, mas já tínhamos visto; outra que nunca tínhamos visto, mas que não tem muita graça.

John Cleese, dos Monty Python: o melhor é rir até ao fim, o nosso e o dele

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Na primeira, John Cleese faz algumas piadas lendo o maior teleponto alguma vez contemplado na história: um ecrã gigante do tamanho do camarote presidencial, cuja luminosidade nas costas do público é impossível de ignorar. Bem sabemos que todo o espectáculo é ilusão, mas é importante, diria, que se faça pelo menos um esforço por enganar a plateia. Sabemos que é mentira, mas gostamos de pensar que àquela pessoa ocorreu mesmo aquela piada, naquele momento, diante daquele público. Poder ler, segundos antes, tudo o que vai sair da boca do artista, bastando para isso fazer um ligeiro virar de pescoço, não é, convenhamos, o contexto mais favorável a partir o coco a rir.

Dissemos que foi um funeral divertido? Correcção: foi um testamento, uma herança. “Last Time to See me Before I Die” é, provavelmente, o mealheiro que Cleese deixa aos filhos, netos, mulher e ex-mulheres – e à casa de sonho em Maiorca. Não há material original. As piadas da primeira parte servem, fundamentalmente, para lançar excertos de sketches de “Monty Python’s Flying Circus”, ou de “Monty Python e o Cálice Sagrado”, ou de “Um Peixe Chamado Vanda” e que a promotora do espectáculo nem sequer se deu ao trabalho de traduzir e legendar (de 2019 para cá, não devem ter tido tempo). Quem conhece, conhece; quem não conhece, fica sem conhecer, porque a qualidade do áudio de gravações da BBC dos anos 70 não sai propriamente cristalina do sistema de som do Coliseu dos Recreios.

A segunda parte é a que não tem muita piada, mas, curiosamente, é a que salva a noite. O senhor Cleese, com a ajuda de um assistente, responde de facto às perguntas que, durante a primeira parte, foi solicitando ao público que enviasse para o endereço de correio electrónico que lhe paira quase todo o tempo sobre o metro e noventa e seis, numa solução cenográfica que também deixa muito a desejar. Isto é, de repente, aqui estamos nós uma hora à conversa com uma das mais lendárias figuras da história da comédia. E ela responde a sério e nada preocupada em agradar. Sobre o Brexit, sobre os ingleses, os franceses, os alemães, os judeus, a única piada que sabe sobre os portugueses, que talvez seja sobre os brasileiros, sobre Cascais, sobre a mulher e as ex-mulheres, sobre humor.

Na soma, é impossível dizer que não foi bom. Não foi incrível, não foi inesquecível – nem perto disso. Mas não é todas as segundas-feiras que se pode estar duas horas à conversa com um dos nossos heróis. E ele respeitar suficientemente a sua e a nossa inteligência para não nos tratar com paternalismo.

A virtude de “Last Time to See me Before I Die” é a de nos lembrar que o humor serve, primeira e fundamentalmente, para nos ajudar a lidar com o absurdo. O absurdo da morte, da vida, da doença, da perda, da tragédia, da efemeridade, da guerra, da violência, da desumanidade. Rimos porque precisamos de nos libertar da tensão do medo. É por isso que não há temas proibidos. É por isso que os temas supostamente proibidos são os que mais fazem rir.

“Mr. Cleese, na sua opinião, os Monty Python seriam possíveis hoje? Teriam espaço na televisão pública britânica, um colectivo de humoristas composto por seis homens brancos?” Foi a pergunta que mandámos para questions@johncleese.com. Não chegou a ser lida. Pode ser que, logo, alguém a volte a fazer.