A cantora australiana Lisa Gerrard faz este sábado em Espinho a primeira apresentação mundial do álbum “Burn” e encara a sua estadia em Portugal para preparação da respetiva digressão como “um ato de Deus” inspirador, como disse à Lusa.

Conhecida sobretudo como vocalista dos Dead Can Dance e intérprete do tema principal do filme “Gladiador”, a artista lançou “Burn”, com Jules Maxwell, em maio de 2021, mas, devido à pandemia de covid-19, vinha resistindo a retomar a vida de palco.

O convite do festival Misty Fest para sete concertos em Portugal no final de novembro propunha uma residência artística no Auditório de Espinho para conceção do formato do novo espetáculo e, logo à chegada a essa cidade costeira do distrito de Aveiro, a cantora percebia que fizera bem em aceitar e dava por si a “adorar” a experiência.

“Acho que vir para cá foi um ato de Deus. Eu estava a sentir-me tão deprimida e triste — nem sei porquê, são só sensações estranhas que temos — mas vim para este sítio, cheguei ao oceano e, ao ver as ondas a rebentar tão agressivamente contra as rochas, não consegui pensar em nada mais inspirador. Foi como um batismo, algo maravilhoso”, contou Lisa Gerrard.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Com espetáculos marcados em Espinho, Lisboa, Porto, Guarda, Figueira da Foz, Braga e Portalegre, a artista entrará agora num ritmo que contrasta com o do recolhimento motivado pela pandemia de covid-19 e aborda o tema com cautela.

“Nem sempre gosto de dizer isto porque sei que aquela fase não foi positiva para toda a gente, mas, para mim, houve realmente muitas coisas boas a sair da covid. Pude ficar em casa — e é preciso compreender que eu já não fazia isso há uns 35 anos! Adorei ver as quatro estações numa só sucessão, estar com os meus animais e a minha filha, ter tempo para eles e para mim”, justificou.

Lisa Gerrard encara essa pausa, aliás, como “um período de cura e purificação”, atendendo a que é ‘performer’ “desde os 12 anos”. Foi nessa idade que começou a destacar-se pelo timbre peculiar da sua voz contralto, que já deu origem a dezenas de álbuns a solo ou em parceria, participações em cerca de 50 filmes e prémios internacionais como um Globo de Ouro.

“Esse período de recolhimento foi realmente uma experiência fantástica e tive de me arrancar daquele conforto. Lutei contra este regresso e pensei que devia é ficar em casa, mas, obviamente, Deus ainda quer mais tempo para me castigar”, diz, com uma gargalhada súbita.

Logo depois, esclarece que não é pela música ou pelo palco que se sente punida: “É pelos aeroportos, por não poder dormir, pelas coisas para as quais, à medida que envelhecemos, já não temos resiliência”.

“O grande problema” nessa hesitação, continuou a artista, é que, embora o seu corpo de 61 anos não retire prazer das questões logísticas, ainda vibra com a ribalta. “Quando chegas ao palco, a energia não diminuiu por estares mais velha. A energia, a excitação e a elação são exatamente as mesmas — só o velho Cadillac é que já não é tão cinco estrelas”, explicou, ainda a rir-se.

O esforço de abandonar a bonomia doméstica deve, portanto, cumprir um objetivo altruísta e, antes de rumar ao Dubai para cinco meses de trabalho com Hans Zimmer, Lisa Gerrard propõe-se ser, também ela, um instrumento de cura. “Vemo-nos como enfermeiros do universo. Saímos de casa para ‘dar’, porque esta música é para ‘dar’. Não nos consideramos semideuses — vemo-nos antes como alguém a quem foi dada a capacidade ou a paixão para fazer isto de forma a que outros também possam encontrar o seu santuário”, defendeu.

A cantora identifica o mesmo espírito protetor no álbum que gravou com Jules Maxwell e cujo título, significando “queimar” ou “arder”, tem implícito um sentido de destruição com vista à renovação e à criação de uma nova energia.

“No contexto aborígene da Austrália, queimar coisas e ficar no meio do fumo é limpar desgostos, dor, bactérias, tudo isso. A música também tem um significado assim abstrato nas nossas vidas, permitindo-nos percorrer o arquivo do nosso tecido emocional para selecionar coisas que normalmente não enfrentamos e resolvê-las”, argumentou.

O disco “Burn” reflete assim uma opção por estados de alma mais positivos: “É apanhar ramos e queimar tudo o que nos retém ou desgasta. É eliminar tudo isso e criar novos caminhos para a frente. É o que fazemos com a música — construímos algo em que os outros podem procurar refúgio, fora do horror da mediocridade, do plástico, dos centros comerciais, da política, das religiões; criamos algo que proporciona consolo aos outros através da nossa alma, da nossa máquina de amor, da nossa máquina de liberdade, da nossa capacidade de impedir que nos definam e sistematizem”.