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Super Bock em Stock: entre Ana Moura e Sudan Archives, a Avenida bailou

Este artigo tem mais de 1 ano

Em duas noites de festival no centro de Lisboa, foi preciso escolher para conseguir reencontrar méritos, reconhecer desafios vencedores e descobrir coisas que nunca tínhamos ouvido.

No Capitólio, Ana Moura demonstrou que o álbum "Casa Guilhermina" é muito mais do que um conjunto de novas canções, é uma afirmação rara de vontade criativa
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No Capitólio, Ana Moura demonstrou que o álbum "Casa Guilhermina" é muito mais do que um conjunto de novas canções, é uma afirmação rara de vontade criativa

Fotos: Super Bock em Stock

No Capitólio, Ana Moura demonstrou que o álbum "Casa Guilhermina" é muito mais do que um conjunto de novas canções, é uma afirmação rara de vontade criativa

Fotos: Super Bock em Stock

O que precisamos na vida é de amor e carinho, a paz, o pão, a habitação, algo para a ressaca – e, eventualmente, um DJ irónico a abrir o concerto, um DJ em camisas de cavas, que passa música (chamemos-lhe) romântica, eurodance e remixes de Born Slippy, dos Underworld, enquanto distribui rosas pelo público e repete a palavra “Top” de forma entusiasmada vezes sem conta.

Em meia-dúzia de anos, David Bruno passou de quase anónimo que produziu temas do Conjunto Corona (editados apenas na net) e tinha um projeto paralelo de canções eletrónicas românticas com sabor a anos 80, todas dedicadas de alguma forma a Gaia, ao sub-mundo de classe menos que média de Gaia, um projeto que – tal como Corona – só editava na net, para pôr o Coliseu dos Recreios a mais de meia casa, na primeira noite do Super Bock em Stock, o festival que quer obrigar as pessoas a serem saudáveis, de modo a conseguirem andar duas noites seguidas para cima e para baixo rumo às várias salas onde decorre, perto da Avenida da Liberdade, em Lisboa.

Essas canções, como “Mesa Para Dois no Carpa”, eram quase minimais: uma batida, um par de samples (o dos trompetes é perfeito), e uma letra que é uma homenagem irónica ao galifão tuga:

“Mesa para dois
hoje é no carpa
Passamos no MacDrive depois
Entretanto levo-te ao Oásis
Suite no Tropicana para os dois”

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Ao início, a maior parte das canções era um longo instrumental e, no fim, a mesma quadra repetida três ou quatro vezes. Com o tempo, Bruno foi refinando a escrita, adicionou a guitarra mágica de Marquinho, que debita azeite a uma velocidade estonteante, pilhou nos sintetizadores à “Miami Vice”, teve um mini-êxito com “Interveniente Acidental”, o dueto com Mike El Nite, fez um disco sobre a emigração (cheio de amor por quem abandona o país à procura de melhor sorte). É, aliás, a esse disco que ele vai buscar “Doucement”, um tema sobre os perigos da condução louca, cuja letra é “Écoute bien/ vien doucement/ faite attention com o camiã/ porque eles vêm tolos em contramã”.

De alguma forma algum público, não tanto que lhe permita tornar-se um êxito mainstream, mas o suficiente para ser uma figura de culto, revê-se nas canções dele, naquela portugalidade malandra, porque toda a gente tem um avô, um primo que fala assim ou esteve nas situações descritas. De alguma forma, as pessoas reconhecem que, ao roubar frases soltas e histórias de cambalachos, Bruno conseguiu criar uma linguagem única, imediatamente reconhecível, em que o chunga é elevado a arte.

David Bruno no Coliseu dos Recreios e os Bala Desejo no Cinema São Jorge estiveram em destaque na primeira noite do festival

Fotos: Super Bock em Stock

Ajuda também que ele se tenha tornado num exímio mestre de cerimónias, aquele tipo de figura que sabemos que nos está a dar tanga mas cuja tanga adoramos (“Demasiado gentis, vocês são demasiado gentis”, repete ele, sempre que agradece ao público, e agradece muito), o que se nota até nas inusitadas dedicatórias que faz – a dada altura pede palmas para todos os restaurantes que ainda servem refeições em travessas de alumínio, depois dedica a magnífica “Lamborghini na roulotte”, que ele nunca gravou em disco e toca apenas em concerto, a quem se dá ao trabalho de ir aos concertos.

Dizia no início que o que precisamos na vida é de amor e carinho, a paz, o pão, a habitação, algo para a ressaca – e foi exatamente um problema com o pão (ou um atraso monumental de um serviço de entrega de comida, que foi parar a outro prédio por engano) que provocou que, no sábado, eu chegasse ao Coliseu quando Porridge Radio já tinha acabado, o que me impede de verter os elogios que tinha previsto. Felizmente, amigos viram o concerto e confirmam que sim senhor, foi um ótimo concerto, de uma das melhores bandas de indie rock da atualidade, servida pela ótima voz de Dana Margolin, que infelizmente só conheço dos discos. Na ausência de (como se diz na televisão) pormenores de reportagem, fica o conselho: os dois últimos discos (Every Bad, de 2020 e Waterslide, Diving Board, Ladder to the Sky, deste ano) valem muito a pena.

O que também vale a pena é Bala Desejo, que encheram o São Jorge na sexta, graças a três vozes (duas meninas e um menino) e uma conjugação musical que parece ir beber à bossa, ao forró, ao tropicalismo e até a alguma pop dos anos 80. De facto, quase todas as canções soam àquela altura nos anos 1980 em que, de Caetano a Rita Lee, todos os músicos brasileiros descobriram simultaneamente o comércio e os sintetizadores (e as baterias sintetizadas). Bom, esta descrição não faz jus à imaginação da banda: “Muito só”, por exemplo, começa como balada entre a bossa e o doo wop à Beach Boys e vai subindo e subindo, com uma guitarra wah wah em fundo – nada disto é propriamente previsível.

Desde há uns anos que Portugal anda de novo apaixonado pelo Brasil e é razoavelmente impressionante que tanta gente tenha enchido o São Jorge e dançasse e conhecesse todas as letras das canções de uma banda que, à distância, poderia assumir-se como praticamente desconhecida por cá. Mas eles (ou elas, se preferirem) merecem todos os louvores, não só pela presença em palco como pelas canções, como a admirável “Passarinha”, ou pela imaginação que os leva a misturar ferrinhos, teclados, samba, refrões ora brega ora delicados.

O caso de amor com o Brasil continuou no dia seguinte, com Céu – embora o mais correto seja dizer que já havia começado, visto que Céu não só faz discos há algum tempo como é uma das responsáveis por este amor português pelo Brasil. E com razão: com a sua voz extraordinária ela não precisa de muito para chamar à atenção – basta-lhe baixo, bateria e guitarra e de resto ela resolve tudo com a garganta. As suas canções herdam da melhor tradição da Música Popular Brasileira, mas têm um toque de sofisticação e contemporaneidade que as impedem de serem apenas recuperações de géneros antigos. Num par de canções (“Teimosa”, com um grande refrão, e “Malemolencia”) Céu foi simplesmente extraordinária e merecedora de cada um dos aplausos.

Sofisticação e contemporaneidade podiam ser adjetivos usados em relação a Casa Guilhermina, o mais recente disco de Ana Moura, que marca uma viragem na carreira da fadista – ela não renega o fado, não é isso (aliás, a sua voz continua a ser fado), mas cruza-o com uma série de sub-géneros musicais africanos e latinos, e se por norma estas experiências têm tudo para correr mal, no caso convém tirar o chapéu (que não tenho, mas ainda assim), porque Casa Guilhermina sabe exatamente quando usar cada átomo de uma batida, onde ser mais fado e onde ser mais dançável, onde colocar a guitarra portuguesa, onde brincar ao reggae, onde fazer ouvir a voz de Ana.

Não é fácil criar um disco assim, tão arriscado, tão inovador, que vai a todos os lados que lhe apetece sem nunca perder o chão – e não é fácil fazer uma viragem destas quando se tem uma carreira tão longa e não foi fácil entrar no concerto de Ana, que encheu até abarrotar o Capitólio, ao ponto de haver uma fila enorme à porta. Também não é fácil transportar este disco para o palco e manter alguma unidade com o passado mais clássico, mas ela soube fazê-lo, num belíssimo concerto que serviu para assinalar a enorme vitória que é Casa Guilhermina, um disco sem medo de nada.

Porridge Radio no Coliseu, Obongjayar e Sudan Archives no Capitólio: três das atuações marcantes da noite de sábado

África também serviu de inspiração a Obongjayar, músico nigeriano sediado em Londres, cujo som recorda um pouco Fela Kuti, não pela duração das canções mas pelo pendor político e pelo afro-beat omnipresente na bateria. Munido de uma guitarrinha funky, um baixista capaz de debitar notas em barda e um baterista inventivo, Obongjayar soltou o seu vozeirão rouco que ecoou por um Capitólio a meia casa – não foi um mau concerto, antes pelo contrário, mas talvez pela proximidade ao afro-beat e a Fela Kuti (e sim, eu sei que é uma comparação injusta) fiquei com a sensação de que ainda falta ali alguma coisa para se alcançar a explosividade que aquelas canções merecem.

Festivais como o Super Bock em Stock obrigam a escolhas: ver só 20 minutos deste concerto para poder ver 40 de outro, perder aquele para assistir a este. Os nomes não costumam ser tão conhecidos como os de um Primavera ou de um Alive e por vezes acontecem coisas destas: alguém diz que devíamos ver o concerto de Sudan Archives, e a decisão foi tomada assim, no momento, porque me deu na telha.

E que bela decisão porque (e depois de ouvir o disco estou em condições de o afirmar com ainda mais certeza) estamos perante uma imensa surpresa: um moço nos beats, Brittney (Denise Parks, que é Sudan Archives) a cantar e a tocar violino e a apresentar Natural Brown Prom Queen e que concerto e que disco: isto r’n’b, mas não o r’n’b meloso habitual; cada beat parece entrar no sítio errado, criando pausas, tempos incomuns, as melodias de violino são sempre inesperadas e as melodias de voz são sempre inspiradas. Natural Brown Prom Queen é um disco extraordinário e Brittney – vestida com um body mínimo, de tanga, a fazer twerk de rabo virado para o público enquanto tocava violino e cantava – também o foi.

Há alguma proximidade ao imaginário de Kelsey Lu, que também mistura instrumentos clássicos (o violoncelo) com pop (no sentido lato), mas talvez Lu se abeire de mais géneros diferentes enquanto Brittney, além de um admirável bom gosto na escolha dos beats, é uma melodista de exceção.

Tem sempre de haver uma surpresa, um concerto de alguém que não conhecíamos para um festival destes valer a pena. Ora muito bem: e valeu.

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