Natalie Laura Mering não é deste mundo. Ou, pelo menos, não é deste tempo. Sabemos que ela existe, que está viva e a editar discos, sabemos que nasceu em 1988, mas não é certo que esteja neste planeta ou que se mova no mesmo plano temporal que nós. E basta ouvir um par de canções do mais recente disco, And In the Darkness Hearts Aglow — por exemplo, as duas primeiras, “It’s not just me, it’s everybody” e “Children of the empire” — para sabermos que ela não está na era do twerk, do reggaeton, existe noutra esfera, em que a Los Angeles de finais de 60s, inícios de 70s, foi transposta para o futuro.

Foi sempre assim, mesmo antes da mudança radical de som que ocorreu em 2016, com Front Row Seat to Earth, antes da explosão de criatividade de Titanic Rising (2019), que a colocou quase no mesmo patamar que Angel Olsen ou Sharon van Etten, para mencionar as duas colegas de geração que são consideradas as rainhas da folk mesmo já não fazendo propriamente folk. Em The Outside Room, o disco com que, em 2011, Mering se estreou sob o nome Weyes Blood, e em The Innocents (o segundo, de 2014), ela parecia cantar como uma Buffy Saint-Marie alucinada, possuída por um qualquer espírito antigo e trágico: as suas canções, esparsas e minimais, conjugadas com a teatralidade da sua voz soavam medievais e austeras, como se cantadas por uma mulher abandonada junto a um penhasco na exata altura em que dos céus caiu uma borrasca.

Logo ali, no início, Mering era tão intensa, possuía uma linguagem tão própria, que uma parte do culto que então nasceu nunca lhe perdoou o cinemascope dos discos seguintes – ainda há quem viva intensamente aqueles dois discos iniciais, quem prefira a austeridade, a seriedade quase caricatural daquela voz a tudo o que se seguiu. E compreende-se: o mundo criado por Mering nesses discos reduz-se quase a matérias de coração contadas do ponto de vista de quem carrega uma tragédia desconfiando que ela própria causa a dita tragédia – era um mundo de romantismo excessivo e encantador (se por encanto nos referirmos ao fascínio que há em assistir a alguém auto-consumir-se).

[“It’s Not Just Me, It’s Everybody”:]

Front Row Seat to Earth foi o primeiro sinal de que a bússola musical de Mering começara a apontar para outras paragens: o número de instrumentos e arranjos aumentava, a paleta de cores arriscava sair do cinzento nublado, a voz soava mais natural, as canções tornavam-se mais complexas mas, simultaneamente, chegada ao refrão ela parecia estar disposta a arriscar  em melodias pop – o que quase parecia uma heresia em quem antes cantava como se fosse uma das irmãs Brontë num dia de má escrita.

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Os americanos têm uma expressão para discos como Titanic Rising (que se seguiu a Front Row Seat to Earth): “game changer”. Titanic Rising não mudou a indústria (é demasiado esquisito para isso), mas mudou a carreira de Mering e mudou as nossas expectativas acerca do que um disco pode ser: se fosse cinema era cinemascope, tamanha é a sua paleta de cores e a intensidade das mesmas – e não era um só género, ia da distopia ambiental ao dramalhão mais choroso passando pelo slasher movie.

É falta de imaginação dizer isto num disco repleto de metáforas e imagens cósmicas, com canções com nomes como “Andromeda”, mas pelo menos ficamos dentro do tema: Titanic Rising era uma galáxia inteira, sempre em expansão, canções de seis minutos com várias canções lá dentro, depressões que desabrochavam em euforia, as cores todas a afundar num buraco negro, os mais sumptuosos arranjos, pop, psicadelismo e um armazém cheio de sintetizadores vintage a responder à pergunta “até onde se pode levar esta canção?”, tema após tema. Era um disco de criança que durante anos só brincou com um pião e um dia deu por si numa loja de legos, atirou para o lixo os livrinhos com indicações de montagem e descobriu que tinha um talento desmesurado para encaixar peças que supostamente não deviam encaixar.

[“Grapevine”:]

Dar seguimento a discos assim é um problema suficiente para causar ansiedade ao mais sereno dos humanos: como é que se consegue ser mais imaginativo do que a vez em que se se foi mais imaginativo do que nunca? Como é que se inventam melodias com curvas mais sinuosas depois de se ter criado uma dezena de melodias que podiam ter servido de traçado ao mais inusitado dos rallies? Como é que ganhamos a nós próprios depois de termos dado o nosso melhor?

A solução para este tipo de problemas, não raro, é olhar de outro ângulo – em vez de tentar bater o feito anterior, mudar de campeonato. Para quê tentar fazer melhor bacalhau do que o do Natal passado quando podemos simplesmente comer polvo? Para quê tentar bater a Natalie Laura Mering de 2019 no jogo que a Natalie Laura Mering jogava quando há uma Natalie Laura Mering de 2022, novinha em folha?

Ao desvario de Titanic Rising, Mering contrapõe agora canções calmas, quase baladas – no sentido em que as canções de Joni Mitchell e de Laura Nyro eram baladas, mesmo sendo canções complexas e repletas de melodias inesperadas e de ângulos agudos. Partindo quase sempre do piano (embora a guitarra surja, ocasionalmente, como principal instrumento rítmico), Mering baixou a velocidade e olhou para dentro, sem se esquecer de adornar as canções quando a oportunidade surgisse.

Não é propriamente um regresso ao passado, porque a voz está mais próxima da naturalidade de Titanic Rising do que The Innocents, embora tematicamente se aproxime desse universo; mas também não é uma recusa completa de Titanic Rising, porque os arranjos continuam a conferir a estas canções (calmas e lentas, na essência) uma grandiosidade que não lhes adivinhamos ao início.

[ouça “And in the Darkness, Hearts Aglow” na íntegra através do YouTube:]

Qualquer exemplo serviria para justificar os parágrafos anterior, mas peguemos em “Grapevine”, que começa lenta, só guitarra acústica e voz, e vai adicionando sinos, cordas e até o que parece ser uma flauta sintetizada no refrão; ou na magnífica “Hearts Aglow”, que parte de uma melodia simples e lindíssima de órgão e vai devagar e devagarinho antes de acrescentar elementos que não esperamos (ou cujo efeito não antecipamos), como um estalar de dedos ou simples coros, que fazem sobressair as melodias lindíssimas – em particular a conjugação do que parece ser um cravo com o estalar dos dedos.

Isto nota-se logo em “It’s not just me, it’s everybody”, a abertura, canção clássica ao piano, quase sibilada e tão subtil nas suas variações melódicas que às primeiras escutas quase a desmerecemos; nota-se em “Children of the empire”, também ao piano, depois dedilhado de guitarra, cordas, magníficas cordas, sinos, e no refrão uma pausa, coros e (de novo) estalar de dedos, e ainda mais coros a seguir.

Nenhum destes elementos, nenhum destes arranjos é exagerado, não sentimos – como em Titanic Rising – que o universo vai expandir a uma velocidade brutal – os arranjos estão lá para sublinhar o que já lá estava, para realçar uma emoção, para nos situar de forma mais precisa na geografia emocional da canção. E a isto, a esta precisão no uso da caixa de ferramentas, chamamos – à falta de melhor expressão – talento.

Tal como Joni Mitchell, ou Laura Nyro ou Judee Sill antes dela, Mering fez um disco virado para dentro, que não chama a atenção para si mesmo e nos obriga a parar para ouvir com atenção – um disco de come down, de ressaca, de dor de cabeça depois da festa da noite anterior, de reflexão. É um disco de queda, mas a boa notícia é que as quedas de Mering são melhores que as subidas do resto da humanidade.