Ia a primeira metade do concerto a meio quando começaram a ser projetadas nos ecrãs gigantes fotografias dos Pink Floyd em início de carreira. Syd Barrett era o mais fotogénico, aquele cuja beleza tinha qualquer coisa de fazer prender o olhar. Estava também Roger Waters, alto, de feições mais abruptas, o cabelo negro e escorrido. A corte, entrou um plano de Waters com o cabelo grisalho, com os traços do rosto suavizados pela idade. Estava a ser captado em direto por uma câmara a circular junto ao palco. Passado e presente sobrepuseram-se nesta homenagem que Waters teve necessidade de fazer ontem ao colega e amigo (e igualmente fundador e dissidente da banda) no primeiro de dois concertos de Waters em Lisboa, integrados naquela que se assume como a digressão de despedida do músico e ativista de 79 anos, a “This Is Not a Drill Tour” (Isto Não é uma Simulação).

Cantava-lhe, a Barrett, “Wish You Were Here”:

“Hot air for a cool breeze?
Cold comfort for change?
Did you exchange
A walk-on part in a war
For a lead role in a cage?”

[Ar quente por uma brisa fresca?/ Conforto frio por mudança?/ Trocaste/ Um pequeno papel numa guerra/ Por um papel principal numa jaula?]

Já quase no fim do espectáculo, apareceu nos ecrãs uma outra fotografia, a da própria família de Roger Waters: os pais, o irmão mais velho ao colo do pai e ele, bebé. O pai era aviador na força aérea britânica e morreu em combate durante a II Guerra Mundial tinha Waters cinco meses. “Esta dedico-a ao meu irmão, que morreu no início do ano.” Os apontamentos autobiográficos, a passagem do tempo e a ideia de fim entrelaçaram-se de forma muito orgânica e coerente nas intervenções que pautaram todo o desenho narrativo deste concerto: o da denúncia – das injustiças étnicas, económicas, de género, de sexo, institucionais. Toda a arte de Roger Waters é política.

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Waters é conhecido por ser um ativista acérrimo e nas projeções feitas nos ecrãs, dispostos em cruz por cima do palco a 360 graus, nem Barack Obama escapou. Tal como Ronald Reagan ou George W. Bush, a cara do primeiro presidente negro norte-americano aparecia vandalizada com letras garrafais a dizer “criminoso de guerra”: “normalizou o uso de ataques com drones”, lia-se. Já Trump e Putin foram colocados na mesma imagem, com a palavra “Acredita” a denotar seguidismo. Conhecido pela sua posição polémica relativamente à ocupação da Palestina por Israel, Rogers tem denunciado a responsabilidade que considera haver por parte da NATO em todo o desenrolar dos acontecimentos ligados à invasão da Ucrânia e esta foi uma forma cuidadosa de não cair na armadilha de entrar por caminhos pantanosos.

O concerto, pensado e cronometrado com pontualidade britânica, começou logo por ir direto ao assunto, sem quaisquer rodeios. Em voz off, com o apoio de legendas projetadas nos ecrãs, Waters disse de imediato: “Se está a pensar vir aqui só para ouvir músicas dos Pink Floyd e não quer saber das minhas posições políticas, vá-se f#**, vá antes beber para o bar”.

A seguir, passaram imagens impressionantes de uma cidade cujos edifícios estavam descarnados. Pareciam edifícios-fantasma, esqueletos desprovidos de qualquer carne, de vida. Nos passeios, muitas pessoas encontravam-se imóveis, iluminadas apenas pelos raios da trovoada. E ouviu-se: “hello, is there anobody in there” [“olá, está aí alguém?”], no início de “Comfortably Numb”, de The Wall. Seguiu-se “The Happiest Days of Our Lives” e logo um dos hinos com que os Pink Floyd presentearam a história da música — um clássico das reivindicações juvenis: “We don’t need no education/ We don’t need no thought control” [“Não precisamos de educação/ Não precisamos que nos controlem o pensamento”].

Ao longo de todo o concerto, Waters viria a intercalar clássicos dos Pink Floyd com temas compostos durante a sua carreira a solo. Um deles foi escrito durante a pandemia. Chama-se “The Bar”. Aqui, o músico britânico reiterou a importância de não nos isolarmos, de nos virarmos para o outro, de ouvirmos o que todos têm a dizer. Em vez de recear, abraçar o que o outro tem de diferente. “É o melhor que se pode fazer”, disse.

Neste espectáculo, aproveitou também para falar do seu próprio esgotamento nervoso, em que começou a ver os objetos todos “muito pequeninos”. A propósito de Barrett, e em ligação à sua própria história, referiu: “Quando perdes alguém que amas, isso lembra-te de que isto não é uma simulação”. A vida é bem real. E atirou-se a “Shine On You Crazy Diamond”. Os músicos tocavam de forma irrepreensível, o som estava imaculado, os vídeos projetados e a arte gráfica tinham uma linha estética bastante cuidada. As imagens projetadas em tempo real de Waters a atuar, a preto e branco, pareciam uma sequência de fotografias tiradas pelo brasileiro Sebastião Salgado. O espectáculo é total. Os falsetes que desapareceram ao músico de 79 anos foram compensados pelas vozes secundárias em palco. Nada foi deixado ao acaso. Era tudo demasiado perfeito. E foi aqui que a voz já rouca, já cansada, de Waters fez mais sentido: humanizou a perfeição.

A homenagem a George Orwell e ao conto A Quinta dos Animais foi uma das convidadas da noite. Animals, o décimo álbum de estúdio dos Pink Floyd, foi editado em 1977. De repente, uma ovelha insuflada gigante começou a passear-se pelo espaço aéreo da Altice Arena, aos trambolhões. Nos ecrãs, passava um turbilhão de ovelhas, como se fosse uma video-instalação de Damien Hirst. Turbilhão que se estendeu a comprimidos, fetos, gafanhotos, balas, porcos, pistolas, tudo num rodopio frenético e sempre a caírem. A dada altura, lê-se: “O Supremo Tribunal nada mais é do que um braço do Nacionalismo Cristão”, seita religiosa nascida nos Estados Unidos, ligada à extrema-direita e que assina BlackSheep no Twitter.

A seguir ao intervalo, foi a vez de um porco insuflável, qual zeppelin, invadir os ares do pavilhão. Tinha inscrito “Roubem aos pobres/ Deem aos ricos”, de um lado, e “Que se f*#dam os pobres”, do outro. O público — a casa estava cheia — manifestava-se perante as provocações já conhecidas de Waters, mas foi sempre ordeiro, a fazer questionar o quanto daquelas reivindicações levariam verdadeiramente para casa.

A seguir, Waters entrou vestido com uma gabardina preta de cabedal, óculos escuros à aviador, uma braçadeira com uma derivação do símbolo fascista do machado, o martelo. Nas projeções, exércitos vermelhos de martelos marchavam de forma veemente. E aqui as reminiscências à estética da vanguarda soviética não são inocentes. Das SS nazis a qualquer modelo de ditadura, toda a forma de opressão é alvo de crítica por parte de Waters. Não há direitos para uns, há direitos para todos, podia ler-se a dada altura, apoiado pelas cores do arco-íris.

Waters também não se esqueceu de Chelsea Manning e Julian Assange, a quem agradeceu a fuga e a divulgação de ficheiros secretos militares, vídeos que mostravam que os drones norte-americanos tinham matado por engano dois repórteres de imagem da Reuters e vários civis, no Iraque, em 2007. “Ocupação e direitos humanos não coexistem”.

Caíam de novo notas de dinheiro nos ecrãs, como que caídas do céu, relógios, sapatos Louboutin, bíblias, jatos (a lembrar o movimento Abolir Jatos, em nome do ambiente), mais fetos, tanques, executivos com cabeça de porco, mais dinheiro. A banda sonora que se seguiria era demasiado óbvia: outra vez os Pink Floyd, com “Money”, acompanhada pelo som do dedilhar de baixo sobejamente conhecido, tocado por Waters, e pelo barulho de caixas registadoras numa azáfama a abrir e fechar.

Já quase no fim, um aviso sério, ilustrado com um vídeo em desenho animado. Um homem vai a conduzir numa estrada que atravessa uma floresta, radiosa, verdejante, e de repente pára o carro. Sai e olha para um clarão. É uma luz tão forte que depressa o atravessa, a ele e à floresta, e deixa tudo em brasa, até se desfazer em cinza. Waters falou do Relógio do Juízo Final, um relógio simbólico criado em 1947 pelo Boletim dos Cientistas Atómicos, da Universidade de Chicago, em que a chegada dos ponteiros à meia-noite significará a destruição do planeta por uma guerra nuclear. Waters lembrou que ficámos recentemente a apenas 90 segundos da meia-noite. Nunca o perigo da destruição esteve tão iminente.

Mas Roger Waters não quis acabar sem esperança. Ou não teria motivo para esta sua forma de luta. Por isso, voltou ao bar em palco, representado pelos músicos a rodearem o piano. Beberam todos um gole de Mezcal, fazendo um brinde ao público. Lembraram o poder do diálogo, da confraternização, da alegria. Enquanto eram nomeados os músicos, um a um, o grupo passeou-se em fila indiana a toda a volta do palco, como se estivessem a passear pelo trilho de uma floresta. A corte, acabou a música, acabou a imagem, acenderam-se as luzes do pavilhão.