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“A língua portuguesa precisa de uma descolonização”: prémio Camões para Paulina Chiziane, que aprendeu a escrever "na areia do chão"

Este artigo tem mais de 6 meses

Foi-lhe atribuído em 2021, recebeu-o esta sexta-feira em Lisboa. Um prémio Camões entregue à primeira mulher negra (e dedicado a todas as outras) que, através da escrita, "reinventa o mundo".

“O que é escrever bem em língua portuguesa? Não sei. Sei que quando escrevo devo mostrar quem sou, negociando a minha identidade como mulher, como negra e como africana", disse Paulina Chiziane
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“O que é escrever bem em língua portuguesa? Não sei. Sei que quando escrevo devo mostrar quem sou, negociando a minha identidade como mulher, como negra e como africana", disse Paulina Chiziane

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“O que é escrever bem em língua portuguesa? Não sei. Sei que quando escrevo devo mostrar quem sou, negociando a minha identidade como mulher, como negra e como africana", disse Paulina Chiziane

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Paulina Chiziane recebeu esta sexta-feira à tarde, dia 5 de maio, no Antigo Picadeiro Real, em Lisboa, o Prémio Camões, que lhe foi atribuído em 2021. O diploma foi entregue pelo presidente do júri e professor de literatura brasileira Carlos Mendes de Sousa, pelo primeiro-ministro português António Costa e ainda pelo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva. Na ocasião, a primeira autora moçambicana a publicar um romance no seu país, relembrou a condição de ser “uma mulher negra a receber esta distinção”, agradeceu aos seus leitores e defendeu que “o autoconhecimento dos povos africanos é uma chave para o sucesso”, mas também para o diálogo com outros países.

“Sou negra, sim. E depois?”, começou por interpelar a escritora, num discurso aplaudido e assertivo. “Venho de lugar nenhum, aprendi a escrever na areia do chão, utilizei o primeiro par de sapatos com dez anos e aqui estou. Eu sou.” Aos 67 anos, Paulina Chiziane é a terceira personalidade moçambicana distinguida com o Prémio Camões, depois de José Craveirinha (1991) e de Mia Couto (2013), numa entrega que aconteceu 10 dias depois da cerimónia de entrega do Prémio Camões a Chico Buarque, vencedor em 2019, que decorreu no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra. A cerimónia coincidiu com o Dia Mundial da Língua Portuguesa, efeméride que serviu para a autora de Balada de amor ao vento (1990) falar da língua portuguesa como “uma herança humana” da qual sente orgulho, mas que precisa de ser descolonizada.

Para quem veio do chão, estar aqui, diante do Governo português, do Governo brasileiro, do corpo diplomático e distintas personalidades é uma coisa que me comove. Caminhei sem saber para onde ia, mas cheguei a algum lado, a este prémio”, sustentou, entre os agradecimentos.

O maior de todos, disse, é para os seus leitores, espalhados pelos diferentes países onde se fala português, mas também do resto do mundo. Paulina Chiziane aproveitou a cerimónia para relembrar ainda dois aspetos que devem marcar o trabalho de um escritor: a originalidade e o sentido de afirmação. “Se queres ser alguém na vida e no mundo deves afirmar os teus passos e deixar marca, para que todos digam ‘por aqui passou alguém’”.

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Foi isso que tentou fazer quando começou a escrever, nunca deixando de se interrogar sobre o que era escrever bem em português. “O que é escrever bem em língua portuguesa? Não sei. Sei que quando escrevo devo mostrar quem sou, negociando a minha identidade como mulher, como negra e como africana.” A escrever como sabe, a autora falou ainda da importância do autoconhecimento, no qual a língua deve ser uma ferramenta para construir uma ligação entre povos.

Para nós africanos, os rastos da nossa história foram apagados, estamos à deriva e não sabemos bem quem somos, por isso somos facilmente manipulados. O autoconhecimento deve ser a chave para o sucesso”, sublinhou.

Na defesa dos povos marginalizados, Chiziane alertou para o uso dessa afirmação e desse conhecimento que se deve alargar ao próprio continente: “Africanos recordem-se e descubram o vosso caminho, porque é possível chegar a algum lugar”.

“A língua para ser nossa precisa de uma descolonização”

Na altura da atribuição do prémio, o júri, que elegeu por unanimidade a escritora moçambicana, justificou a escolha com a “sua vasta produção e receção crítica, bem como o reconhecimento académico e institucional da sua obra”. O júri referiu também a importância que Paulina Chiziane dedica nos seus livros aos problemas da mulher moçambicana e africana, e sublinhou o seu trabalho recente de aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e outras artes.

Paulina Chiziane entre o primeiro-ministro, António Costa (à direita) e o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva (à esquerda)

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De regresso ao seu discurso desta sexta-feira, Paulina Chiziane sublinhou a importância do verbo “ser” e do verbo “ter”. “Quando digo ‘eu sou, tu és, nós somos’, falo de uma filosofia africana onde ‘eu sou, porque tu me conheceste. Imediatamente estou a falar de fraternidade”, explicou, acrescentando, no entanto, que “ao longo de séculos, no regime colonial” o que perdurou foi a conjugação “eu sou, tu não és”. O mesmo, realça, sucedeu com o verbo ter, na conjugação de “eu tenho, tu não tens”. A guerra e o conflito surgiram por isso mesmo, relembrou. Ainda assim, a autora de Sétimo Juramento (2000) e Niketche: Uma História de Poligamia (2002) defendeu que a língua portuguesa é uma herança que também a transformou e que lhe trouxe um outro empoderamento.

Eu sou negra, eles são brancos, então somos diferentes, mas somos amigos. Herdamos esta língua nas circunstâncias da história, mas é por isso mesmo que também convido os outros a aprender as nossas línguas”, sintetizou.

Recordou como existem ainda hoje palavras presentes no dicionário com um significado pejorativo como “catinga”, “matriarcado” ou “palhota”. Esse trabalho de análise e correção está por fazer, realça. “A língua portuguesa para ser nossa precisa de uma limpeza e de uma descolonização”, afirma. “Este prémio para mim mostra que é chegada a hora de construir um mundo do amanhã em paz, um mundo onde a conjugação desses verbos será feita de forma correta e humana, para que a língua portuguesa seja de todos”, completou.

António Costa: “É a partir desta língua partilhada que nos reencontramos”

Na entrega do “mais alto e simbólico prémio da língua portuguesa”, o primeiro-ministro António Costa começou por falar da importância da língua, “a 4.ª a nível mundial” que hoje é também “motivo de celebração e valorização dos povos que a falam”. Sobre a atribuição a Paulina Chiziane, destacou a essência “na escrita das histórias do seu povo, cuja inspiração começa quase sempre por nascer à volta de uma fogueira”. Tal como Camões, o governante destacou o papel de todos aqueles que escrevem de forma inovadora, “contra uma visão estática da língua” e que assim definem os seus novos limites, num processo de constante atualização. “Sendo a mesma língua ela é falada e escrita de forma diferentes, dando voz a uma diversidade de geografias, visões de mundo, cultura, sensibilidade, experiências individuais e coletivas.”

Essa riqueza, diz, foi transposta por Paulina Chiziane nos seus livros, sobretudo por “transmitir aos seus leitores, a força da tradição oral e da sua própria cultura”. A língua ganha assim novas possibilidades e expressividade linguística, num exercício de liberdade que não olha a hierarquias impostas.

Paulina Chiziane pertence a uma geração de escritores moçambicanos que emergiram num período pós-independência, e estamos num momento em que o Prémio Camões nos relembra como há 50 anos, em nenhum dos nossos dois países, era possível falar ou escrever em liberdade. Portugal vivia em ditadura e Moçambique, e vários países africanos, viviam sob o jugo do colonialismo. Duas opressões gémeas que monopolizam um combate comum, antifascista e anticolonialista, que deram força a uma libertação conjunta. E é a partir desta língua partilhada que nos reencontramos.”

Sobre a literatura de Chiziane, António Costa explicou que na sua escrita está um lugar “de pacificação pessoal e coletiva, que corresponde uma necessidade de representar a identidade e a cultura do seu país. Foi a primeira mulher a publicar um romance no seu país e é a primeira mulher negra a receber o Prémio Camões e por isso devemos saudar o júri.

O primeiro-ministro falou ainda das temáticas nos livros de Paulina Chiziane, nomeadamente da importância das tradições ancestrais, da condição da mulher, das diferenças entre o norte e o sul do país que bem espelha, bem como da poligamia – como marca presente em Moçambique –, que se revela como tratado sobre o lugar ocupado pelas mulheres nas sociedades atuais. Na mesma linha, e numa breve declaração feita em vídeo, ministra da Cultura brasileira, Margareth Menezes, falou de Paulina Chiziane como uma autora potente e pioneira, “através de uma obra revolucionária”. “É um momento simbólico em que, pela primeira vez, temos uma escritora negra a receber este prémio”, destacou.

Carlos Mendes de Sousa: “Paulina Chiziane reinventa o mundo”

Instituído por Portugal e pelo Brasil em 1988, e entregue pela primeira vez no ano seguinte, o Prémio Camões é o galardão de maior prestígio da língua portuguesa. De caráter anual, presta homenagem a um escritor que, pela sua obra, contribua para o enriquecimento e projeção do património literário e cultural de língua portuguesa.

O júri da 33.ª edição do Prémio Camões foi constituído por Jorge Alves de Lima (Brasil), Raul César Gouveia Fernandes (Brasil), Teresa Manjate (Moçambique), Ana Maria Martinho (Portugal), Carlos Mendes de Sousa (Portugal) e Tony Tcheka (Guiné-Bissau). Na ocasião, o representante português, Carlos Mendes de Sousa, começou por falar da potência transformadora que as palavras de Paulina Chiziane trouxeram para o domínio da literatura portuguesa, nomeadamente da reação da escritora ao saber da distinção. “Chiziane disse ‘venho de lugar nenhum, venho do chão (…) o reconhecimento para alguém que vem de lugar algum é, sem dúvida, uma inspiração para uma geração seguinte”.

Com António Costa e com o presidente do júri do prémio Camõs, Carlos Mendes de Sousa

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Para o docente, há no encantamento das palavras da galardoada e que “justo é dizer que Paulina Chiziane escreve como fala”. “Dir-se-á que voz e escrita brotam do mesmo chão, onde vislumbrmos a essencial pertença à cultura bantu, à voz de África, que na sua voz ecoa”, sublinha, realçando que a escritora chega até nós vinda de um lugar de origem que não esqueceu nos seus escritos, que está na sua língua materna e que só depois se encontrará com a língua portuguesa.

E é na língua portuguesa que Paulina Chiziane reinventa o mundo, fazendo dela uma ressoante casa polifónica, onde ecoam as línguas maternas”, sustenta.

Acima de tudo isso, Carlos Mendes de Sousa destaca o facto de Chiziane se reconhecer como uma contadora de histórias, mas que esse o elo de ligação com os seus leitores.

Aos 67 anos, Paulina Chiziane é hoje detentora de uma obra vasta. Publicou o seu primeiro romance, Balada de Amor ao Vento, em 1990, depois da independência do país, que é também o primeiro romance publicado de uma mulher moçambicana. Ventos do Apocalipse, concluído em 1991, saiu em Maputo, em 1993, como edição da autora e foi publicado em Portugal, pela Caminho, em 1999, antecedendo Balada de Amor ao Vento, em Portugal, pela mesma editora, em 2003. Da sua obra fazem igualmente parte As Andorinhas (2009), Na mão de Deus e Por Quem Vibram os Tambores do Além (2013), Ngoma Yethu: O curandeiro e o Novo Testamento (2015), O Canto dos Escravos (2017), O Curandeiro e o Novo Testamento (2018).

Após receber a distinção, Paulina Chiziane dedicou o prémio às mulheres, considerando que o seu trabalho ainda é subvalorizado. Alguns dos seus livros foram publicados em Portugal e no Brasil, e estão traduzidos em inglês, alemão, italiano, espanhol, francês, sérvio, croata. Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze, Moçambique, em 1955. Estudou Linguística em Maputo. Atualmente, vive e trabalha na Zambézia. É a 26.ª personalidade a receber o Prémio Camões e uma escritora cuja obra continuará a recontar a cultura moçambicana.

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