“Obtive no Carvalhal de Óbidos, onde há uma torre fidalga a que ela pertenceu: é de latão, e tem a toda a volta o seguinte letreiro: ESTE PRETO HE DE AGO(stinho) a DE LAFETA DO CARVALHAL DE OBIDOS. Como este objecto escalda as mãos quando se lhe toca! Que vilipêndios não traduz! A que lágrimas não deu origem! Ao Sr. Jacinto dos Santos, do Carvalhal, mestre-serralheiro e atual dono da torre, é que se deve a posse da coleira.”
(Leite de Vasconcelos, Diretor do então Museu Etnográfico Português, 1908)

A coleira encontrada por Leite de Vasconcelos em Óbidos, em 1908, no fundo falso de um armário, tem sido uma das escassas provas da existência de Escravatura no Portugal Continental. Ela traz a inscrição “Este preto é de Agostinho de Lafetá do Carvalhal de Óbidos” e encontra-se exposta no Museu de Arqueologia. José Saramago dedica-lhe algumas passagens no seu livro “Viagem a Portugal”(nos subcapítulos “Era uma vez um Escravo” e “Dizem que é Coisa Boa”), sobre as “coleiras de escravos”, nos quais o autor diz em relação à coleira do Carvalhal ser a “prova de um grande crime” e que estas valem “milhões e milhões de contos, tanto como os Jerónimos aqui ao lado, a Torre de Belém, o palácio do presidente, os coches por junto e atacado, provavelmente toda a cidade de Lisboa”.

O Sr. João, no seu artigo intitulado “Joacine e a coleira”, publicado a 24 de Junho de 2024 no jornal Observador, expõe as suas ansiedades sobre aquilo que considera ser uma agenda “woke”, lugar onde insere as minhas considerações sobre a coleira do Carvalhal, pois eu considero que esta deve ter melhor enquadramento histórico no museu onde se encontra, que vá para além da mera descrição técnica.

O Sr. João faz uso do insulto gratuito ao longo do seu artigo e o jornal Observador aceita e publica-o, o que continua a deixar-me perplexa depois do tanto que já vi e vivi com os media nacionais: diz que sofro de “emotividade em excesso” – imagino que por ser mulher – e chama-me de ignorante apesar de partilharmos o mesmo grau académico.

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O Sr. João diz que pessoas woke como eu parecem acabados de sair do jardim-escola por tentarem promover debates sobre a história colonial portuguesa, por questionarem o modo como a mesma é transmitida, e pasme-se, por quererem recontá-la sem omitir as violências perpetradas contra os povos subjugados e espoliados.

João tem acesso aos media, podendo escrever textos facilmente sem censura. Eu não tenho esse privilégio em Portugal. Fui transformada em pessoa com ideias perigosas, como a da descolonização do conhecimento e da cultura; o anti-racismo e o feminismo interseccional que procura não excluir ninguém da luta pela igualdade.

O texto do Sr. João é revelador da sua falta de relevância mediática mas este quer a todo o custo vender o seu pão, usando a farinha dos outros. A sua farinha interessa a poucos, tal como o seu nome. Na verdade, a sua dedicação à minha pessoa e ao meu pensamento já tem alguns anos (em vários artigos e entrevistas) e chega até a comover-me a sua atenção. Deveria, se calhar, agradecer-lhe, embora saiba que quando me cita e coloca o meu nome no título do seu texto, o Sr. João quer na verdade é lucrar, procurando vender a preta que não lhe pertence.

Precisava ainda de entender em que qualidade escreve o Sr. João, se na de romancista ou na de historiador, para poder responder-lhe condignamente, se em termos da ficção ou dos factos.

Mas sinto que devo-lhe um pedido de desculpas por não me serem nada indiferentes as pesadíssimas e desumanizadoras coleiras colocadas nos pescoços de pessoas escravizadas, ou grilhetas, correntes e até mesmo máscaras, como a de Flandres, que impediam estas pessoas de falar e de comer, punindo-as e animalizando-as na época colonial. Na verdade, apesar de historiadora, faço questão de não fingir despir-me daquilo que sou, uma filha do continente africano – alvo da maior desumanização e extrativismo da História – de onde saíram forçadas milhões de pessoas, traficadas para outros continentes. Sinto dores e empatia. E também sinto na carne e na minha cor de pele as heranças deste tempo.

Quando afirma “Joacine quer, à boa maneira woke, que a emotividade substitua a racionalidade, e que os estremecimentos da alma tomem a vez da lucidez e da objectividade. Joacine ainda não terá percebido que o conhecimento histórico não se adquire nem se transmite com base na emotividade.” Faz-me alguma pena porque um dos segredos mais bem guardados na academia é a de que a ideia de objetividade, imparcialidade e neutralidade do conhecimento científico são falácias totais – e precisam ser combatidas.

Foi também por ser demasiado emotiva que a figura de “Anastácia” – mulher escravizada no Brasil do século XVIII – data da coleira de Carvalhal – cuja litografia é a de uma portadora da máscara de Flandres e de uma coleira de metal – me interpela tanto e de tantas formas que criámos agora um centro de estudos e intervenção decolonial com o seu nome. Visitem e apoiem o centro. Obrigada!

Queria pedir ao Sr. João que escutasse um pouco mais – como pedi a uma historiadora há tempos – mas no seu caso, tenho receio que esmoreça. Resta-me pedir-lhe mais respeito e alguma cautela, porque não é pela quantidade de livros e romances que se mede a sua pertinência no panorama historiográfico nacional. Aliás, somos ambos irrelevantes. O Sr. João por mostrar que apesar de todas as condições criadas continua a não dar uma para a caixa e eu porque não tenho caixa disponível onde colocar as minhas indagações. É lidar com calma, Sr. João.