A nossa vida social já não é no café, nos bancos de jardim, nas esquinas das ruas. É no Facebook. O nosso álbum de fotografias já não é de papel e cartão é feito de bytes e está no Instagram. Os namorados já não se procuram nas festas, procuram-se no Tinder. As notícias já não se leem em papel, leem-se na internet. As reuniões e conferências já não precisam da nossa presença, só da nossa imagem via Skype. Também já não é necessário sair de casa para ir às compras. Elas fazem-se online. Nem faz falta ter uma espingarda e sair para o bosque para dar azo aos nossos milenares instintos de caçadores. Caçam-se Pokemons no ecrã do smartphone.

Já reparou quanto do seu dia é passado em frente a um ecrã? Experimente contar o tempo desde que abre a porta do prédio e espreita a imagem da vídeo vigilância, passando pelo telemóvel, caixa multibanco, televisão, computador pessoal, mupis publicitários, cinema… É toda uma nova realidade feita de pequenas máquinas que nos proporcionam uma vida fora do nosso corpo concreto. O filósofo francês Gilles Lipovetsky faz um retrato cirúrgico desta era civilizacional que vive sob o imperativo da leveza e da desmaterialização. O livro, das edições 70, intitula-se, precisamente, Da Leveza: Para Uma Civililização do Ligeiro e, numa linguagem simples e clara, traça as grandes linhas e os paradoxos trágicos deste novo tempo que estamos a poder testemunhar.

Da Leveza:para uma civilização do ligeiro, Gilles Lipovetsky, Edições 70, 19.90 euros (Ensaio)

Da Leveza:para uma civilização do ligeiro, Gilles Lipovetsky, Edições 70, 19.90 euros (Ensaio)

Este verão o fenómeno do jogo Pokemon Go, tem criado muitas discussões sobre o poder de atração da realidade virtual, sobretudo nas novas gerações. Curiosamente uma boa parte dessas discussões acontecem no Facebook e no Twitter, ou seja, quem argumenta e vocifera contra ou a favor do jogo e dos seus supostos malefícios está tão mergulhado dentro de um ecrã e de uma realidade virtual como os jogadores. É, portanto, uma discussão tão inútil quanto aquelas que se tinham no século XIX quando surgiram as primeiras máquinas fotográficas e havia quem afirmasse que elas roubavam a alma dos fotografados. Hoje rimos dessa ingenuidade como daqui a 100 anos os nossos bisnetos se vão rir das nossas angústias face ao digital. Não há nada a fazer. Esta revolução já nos engoliu:

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Ouvimos música de todo o mundo por meio de aparelhos leves como o ar. Vemos filmes em tablets que cabem no bolso. Microelectrónica, microbiótica, microcirurgia, o infinitamente pequeno impõe-se como a nova fronteira da inovação e do progresso (…). Da cloud computing às biotecnologias, dos nano-objetos aos aparelhos de alta tecnologia, do culto da magreza à alimentação light, dos desportos com prancha, às técnicas de relaxamento, das tendências de moda às industrias do entretenimento, é através de uma multidão de dispositivos heteróclitos e multiformes que evolui a revolução hipermoderna do ligeiro.” (Da Leveza, p.17)

Como explica o filósofo, que é um dos principais pensadores mundiais sobre as sociedades contemporâneas (é dele também o livro que marcou os anos 80, A Era do Vazio), este tempo só se explica pela inter-relação entre o culto da leveza e o desenvolvimento da tecnologia. As máquinas cada vez mais leves que inventamos destinam-se a responder ao nosso desejo intima de leveza que se expressa em todas as áreas da nossa vida cultural, económica, política, amorosa, sexual.

Esse desejo ontológico de leveza é antigo. Conta-se na história de Ícaro e nas suas asas de cera, nos tapetes voadores das Mil e Uma Noites, na poesia, no bailado. Mas só a partir da segunda metade do século XX, quando as evoluções na medicina, na economia e na economia, no consumo, deram a uma grande parte da população uma vida mais longa, mais tempo livre, mais capacidade de consumo para ter objetos que facilitam a vida quotidiana, é que o imperativo da leveza tomou conta de todos os aspetos da vida.

Pokemon Go, os caçadores deixaram os bosques e foram para os ecrãs

Pokemon Go, os caçadores deixaram os bosques e foram para os ecrãs

A existência regulada por leis divinas e por densos laços comunitários tornou-se feita de escolhas individuais. A vida familiar, amorosa e sexual passou a obedecer a regras informais. A educação rejeita o peso da disciplina, a rotina das relações amorosas procura a leveza das paixões voláteis. As viagens são a leveza que se contrapõe ao trabalho. Os corpos querem-se magros e leves. Sobretudo querem-se jovens. A tecnologia e a medicina não param de procurar máquinas, cirurgias e medicamentos que respondam a este desejo.

Como explica Lipovetsky, nas últimas décadas a grande demanda da indústria, da tecnologia e da medicina tem sido encontrar formas de responder ao desejo humano de leveza, e o digital, ao anular o espaço e o tempo, é o corolário dessa busca. Uma resposta que vai alterar profundamente as condições de vida das sociedades e que todos os dias alcança novos patamares como mostra este artigo publicado aqui no Observador.

Mais pequeno, mais rápido, mais leve: as novas utopias

O computador que, em 1969, colocou Neil Armstrong e Edwin Aldrin na Lua, tinha a mesma capacidade de cálculo que o smartphone e iPhone que hoje guardamos no bolso. O primeiro computador eletrónico pesava, em 1946, 80 toneladas. Mas em 1981 o primeiro computador pessoal da IBM já só pesava 20 quilos. Hoje um iPad pesa menos de 500 gramas.

A invenção do transístor, dos circuito integrado em silício e dos microprocessadores permite que os chips diminuam de tamanho mais ou menos de dois em dois anos. Cada vez mais a dimensão dos componentes eletrónicos se aproxima do tamanho de um átomo. A busca humana já não é o grande, mas o nano, o micro, o mini. Cada vez mais leve e cada vez mais conectado. Tudo deve estar ligado e sobretudo todos devemos estar ligados. A pressão para deixarmos de ter e de ser matéria é total. A Cloud Computing já nos permite guardar tudo “as nuvens”: livros, CD, emails, documentos de trabalho, faturas da eletricidade, agendas de contactos. O papel vai desaparecendo, tal como os arquivos materiais de todas as espécies. Mesmo o nosso arquivo principal, a memória, vai sendo afetado por todas as bengalas tecnologias que lhe arranjaram. É o tempo “da pura evanescência” escreve o filósofo.

Iniciado com o walkman, este processo [de mobilidade total] acentuou-se consideravelmente com os terminais móveis, o telemóveis, os microcomputadores, netbooks, smartphones, tablets. A combinação de objetos leves e internet criou um novo paradigma de leveza (…). A leveza hipermoderna é a possibilidade de estar simultaneamente em vários locais, intervir à distância seja onde for que se encontre, de ter acesso a a tudo em toda a parte, sem condicionalismos de tempo ou de espaço. O nómada conectado impõe-se como a figura central da leveza hipermoderna” [Da Leveza, p. 134]

A nossa migração do real para o digital, a nossa vida mais ou menos ficcionada nos ecrãs onde nos penduramos, como em janelas, para ver o admirável mundo novo das redes sociais é, na verdade, algo que há muito estava em marcha, como mostra este livro. Lipovetsky diz mesmo que estamos a tornar-nos “proletários dos ecrãs”: quer porque o trabalho da maioria de nós passa inevitavelmente por um ecrã, quer pela nossa dependência crescente dos mesmos.

A aceleração tecnológica, a quantidade de informação produzida nos media, na internet, estão a alterar totalmente a nossa perceção do tempo e do espaço. “Tudo está destinado a desaparecer”, diz Lipovetsky. Dos produtos que consumimos, aos comportamentos que temos, às causas que abraçamos. Da literatura, às artes plásticas tudo parece obedecer à lógica da moda. O tempo lento foi substituído pela “tendência”. Os indivíduos já não sonham com a liberdade, nem com um mundo melhor. Sonham com a leveza manifesta no imperativo da felicidade. A felicidade individual tornou-se a grande utopia das sociedades hipermodernas alimentada pelo “omniconsumo”, pela “atração fatal pelo novo”. A gravidade, o trágico inerentes à condição humana são esquecidos, como que superados, pelo consumo.

LONDON - JULY 10: In this photo illustration a girl browses the social networking site Facebook on July 10, 2007 in London, England. Facebook has been rapidly catching up on MySpace as the premier social networking website and as of July 2007 was the secondmost visited such site on the World Wide Web. Started by 22 year old Harvard dropout Mark Zuckerberg, the website is responsible for 1% of all internet traffic and is the sixth most visited site in the USA. (Photo Illustration by Chris Jackson/Getty Images)

A nossa vida social passa cada vez menos pelo espaço real/material e cada vez mais pelo digital/imaterial

O consumo que, por sua vez, exibe ele mesmo uma panóplia de ofertas light, que materializam e alimentam a sociedade da leveza: dos ginásios que prometem responder à lipofobia, às religiões “à la carte” que prometem redenção, purificação, bem-estar, sem ser preciso muito sacrifício, das viagens turísticas organizadas em agências, à arquitetura em vidro e design minimalista até às feiras internacionais de arte contemporânea abrilhantadas por modelos, jet-set e festas luxuosas. Como escreve o filósofo, o homem hipermoderno “perdeu o sentido de aventura” e tem na boca um único adjetivo:”é interessante”, uma fórmula que, segundo ele, é “imprecisa, vaga, pouco profunda (…) uma relação leve, de emoções fugazes, sem peso real sobre a existência”.

Quanto pesa a leveza?

( JUSTIN TALLIS/AFP/Getty Images)

As promessas de felicidade e leveza trazidas pelas novas tecnologias têm um peso considerável na vida social e individual

No seu livro A Insustentável leveza de Ser, o escritor checo Milan Kundera falava nos mistérios e na ambiguidade que existem nos opostos peso-leveza. O que hoje é leve torna-se quase inevitavelmente pesado amanhã e o que é pesado pode adquirir uma súbita leveza. Assim também, neste ensaio, Lipovetsky procura mostrar alguns dos paradoxos desta nova configuração do mundo. Assumindo que vivemos um tempo extraordinário onde a qualidade de vida da maioria das pessoas não pára de aumentar, onde o sofrimento físico e as doenças são cada vez mais superáveis, o autor aponta “uma leviana queda no superficial” como um dos grandes males da atualidade.

Assim tal como Ícaro que, na vertigem de voar mais alto, derreteu as asas e caiu no mar, também busca da leveza está ligada a muitos sofrimentos emocionais. Da angústia de não ter um corpo magro, ao pavor da solidão paralelo ao culto das paixões voláteis, até à educação sem autoridade e disciplina (vistos hoje como coisas pesadas) que estão na origem de um número crescente de suicídios e doenças mentais entre os jovens adultos, há todo um lado negro da sociedade que quer a todo o custo a felicidade. O aumento das depressões, da toma de medicação psicotrópica, são outro dos aspetos paradoxais da sociedade onde todos querem estar conectados pelo digital mas livres de laços sociais e afetivos profundos.

O desvanecimento das fronteiras entre a esfera pública e a privada, a vigilância tipo Big Brother feita pelos gigantes respigadores da Big Data (empresas que capturam os vestígios da nossa vida pessoal deixada na internet) até a uma acumulação crescente de detritos sólidos, provocada pela construção das máquinas leves, são a moeda com que pagamos a nossa vida virtual. “Por detrás da imaterialidade dos bytes está ainda a materialidade do carvão (…) calcula-se que a tecnologias da informação e da comunicação consumam 10% da produção mundial de energia (…) se a Cloud fosse um país estaria em quinto lugar no consumo de energia (…) o imaterial é pesado”, defende Lipovetsky.

E numa conclusão, tão inquietante como todo o ensaio, o filosofo escreve:

A revolução da leveza continua a avançar, mas não conseguimos encontrar harmonia nas nossas vidas: não nos torna felizes (…). Nunca tivemos tantas possibilidades de viver levemente, mas, no final, a alegria de viver não aumenta” (Da Leveza, p.332)