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Capítulo I
O crime visto pelos olhos das vítimas
Às 4h da manhã de 16 de abril de 1997, o Meia Culpa, um conhecido bar de alterne da cidade de Amarante, estava prestes a fechar. Aquela era a hora legal para o encerramento, mas era comum que os últimos clientes só saíssem depois desse limite, e que as alternadeiras só fossem embora depois da distribuição das comissões da noite. À saída da discoteca, o porteiro, Fernando Silva, estava a despedir-se de um cliente. Ali perto, em pé no corredor estreito que dava acesso à porta, um outro homem, um francês chamado François Pauchan, preparava-se para pagar a conta com o seu cartão Premier Visa. No hall de entrada, que ligava ao interior da boite, estavam também Jú e Sisi (nomes profissionais), duas das alternadeiras que os tinham acompanhado durante a noite.
Assim que Fernando abriu a porta para deixar sair o cliente, foi violentamente empurrado por três homens encapuzados e armados, que esperavam no exterior do bar pelo momento certo para entrar. Assustados, o cliente e as duas mulheres começaram a recuar em direção ao interior do bar, forçados pelos homens encapuzados. O francês, que continuava no corredor, foi um dos primeiros a ser agredido pelos atacantes e deixou cair o dinheiro e o cartão que ia usar para o pagamento.
— Daqui ninguém sai! Tudo lá para dentro! — gritou um dos atacantes.
Como a confusão começou naquele pequeno corredor, no interior da boite ainda ninguém percebera o que se estava a passar. Encostado ao balcão, o empregado António Silva conversava com as alternadeiras Cris e Marina, que já tinham terminado o trabalho naquela noite. Do lado de dentro do balcão, Fonseca fechava os últimos pagamentos na máquina registadora enquanto conversava com Alberto, outro dos funcionários do bar. E, na cabine de som, o DJ, Elísio, ainda passava música, que só terminava quando saísse o último cliente.
Foi Cris quem viu um grupo de pessoas em pânico a vir do corredor de acesso à porta em direção ao interior da boite. À frente, Jú e Sisi; logo atrás, os dois clientes que se preparavam para sair; e, por fim, o porteiro. Atrás do grupo, três homens com a cara tapada por gorros tipo passa-montanhas ameaçavam clientes e funcionários com gritos, obrigando quem se encontrava no bar a dirigir-se para o canto oposto à entrada principal. Ali existia uma saída de emergência, mas era impossível usá-la: estava tapada com sofás e um espelho por dentro; e tinha sido chapeada por fora.
— Ides todos morrer fritos! — gritou um deles.
De imediato, com o espaço desimpedido e com os clientes e funcionários em pânico refugiados no canto, um dos homens pegou num bidão que trazia consigo e começou a despejar um líquido pelo chão e pelos sofás. O porteiro, que estava muito perto deles e também foi regado com o líquido, percebeu logo pelo cheiro que se tratava de gasolina. Mas, naquele momento, mais ninguém entendeu bem o que se estava a passar.
Para evitar que alguém tentasse interferir com os assaltantes, um deles disparou a arma que trazia consigo. Aqui, os relatos dividem-se: há quem garanta que só foi disparado um tiro neste momento, mas também há quem assegure que foram disparados pelo menos dois ou três. António Silva, o empregado que se encontrava ainda junto do balcão, diz que o tiro — ou os tiros — estilhaçou as prateleiras de vidro do bar.
Naquele momento, o porteiro, que ainda estava junto aos atacantes, pensou em fugir pela porta que dava acesso à garagem – e por onde conseguiram escapar Jú e Sissi, as duas alternadeiras que vinham com ele. Mas um dos assaltantes, que tinha uma caçadeira na mão, apercebeu-se desta tentativa e apontou-lhe a arma:
— Não penses em fugir, senão chumbo-te já as pernas.
[Veja aqui uma planta interativa do Meia Culpa. Passe com o rato nos pontos para explorar os diferentes locais:]
“Toni, vais morrer hoje!”
O som do tiro interrompeu os cálculos de António Almeida, um dos proprietários do Meia Culpa, que se encontrava num escritório anexo à boite a fazer as contas do fecho da noite. Preocupado que algum dos seus clientes estivesse exaltado e andasse aos tiros pela pista de dança, largou as contas e dirigiu-se apressadamente para o interior da boite, abrindo uma porta que dava para trás do balcão. Assim que entrou, sentiu uma arma encostada à sua cabeça e ouviu:
— Toni, vais morrer hoje!
Pareceu-lhe estranho. Desde que regressara da Suíça, onde tinha estado emigrado, praticamente ninguém lhe chamava “Toni”, mas sim “Almeida”. Imobilizado junto ao balcão e com uma arma apontada ao crânio, começou a desesperar. Não fazia ideia do que se estava a passar na boite, mas rapidamente percebeu que o problema não era nenhum cliente que tivesse bebido demais. À sua frente, viu um homem encapuzado com um bidão branco na mão a despejar um líquido, que concluiu ser gasolina. Viu ainda um terceiro homem a apontar um revólver a clientes e alternadeiras e a forçá-los a manter-se no canto oposto à porta principal, impedindo-os de fugir ou de atrapalhar o que estavam a fazer.
António Almeida observava, aterrorizado, enquanto os três homens que tinham invadido o bar se preparavam para lhe destruir o negócio. Estava a três metros de uma saída de emergência, e ainda se debateu com o atacante que despejava o combustível e que tentou regar-lhe a cabeça com o líquido. Apercebendo-se disso, Almeida esmurrou-o, atirando o bidão para longe. Evitou ficar com a cabeça ensopada em gasolina, mas não impediu que o combustível lhe escorresse pelo braço e pela perna direita.
Enquanto tentava limpar a gasolina do corpo, viu o homem que tinha acabado de regar o bar com combustível levar a mão ao bolso e retirar um pequeno isqueiro, que usou para pegar fogo. Recheado de materiais inflamáveis — dos sofás às cortinas –, a boite incendiou-se em poucos segundos. Almeida conseguiu meter-se pelo meio das chamas e fugir por uma porta de serviço, que dava para o hall comum do edifício Cristal Center, onde a boite estava instalada — o braço e a perna direita, que estavam molhados com gasolina, ficaram queimados.
Ainda teve o instinto de pegar numa mangueira de incêndios que existia no prédio e tentar deitar água para o interior do bar, mas as dores sobrepuseram-se e não aguentou. Sem ninguém que o ajudasse, uma vez que a confusão instalada o impedia de reconhecer quem andava a correr pelo prédio, dirigu-se para o exterior. Viu um carro que se aproximava e colocou-se no meio da estrada, para que o veículo parasse, e gritou, descontrolado:
— Leve-me para o hospital que eu estou todo queimado!
“Todos para o fundo!”
O mesmo tiro que alertou António Almeida acordou também Gaspar Pinto, um cliente que tinha adormecido no sofá no canto oposto à porta principal. Assim que abriu os olhos, apercebeu-se que os clientes fugiam para o local onde se encontrava ainda semi-acordado, pisando-se e pisando-o também. Sem entender o que se passava, Gaspar Pinto olhou para o centro da boite e viu um homem despejar um líquido pelo chão. Inicialmente pensou que era uma brincadeira, mas tudo lhe pareceu mais sério quando ouviu os gritos a ordenar às pessoas que se aglomerassem precisamente no local onde se encontrava.
— Todos para o fundo! — gritou um dos atacantes.
Gaspar Pinto, de 21 anos, era dono do café “Cantinho Jovem”, em Vila Boa do Bispo. Começava a trabalhar todos os dias às 6h da manhã e só parava quando fechava o bar às 2h. Por vezes, quando acabava mais tarde, ia a uma tasca em Marco de Canaveses comer qualquer coisa — mas naqueles dias, por altura da Páscoa, com muitos amigos emigrantes de férias em Portugal, era frequente acompanhá-los à boite no fim do dia.
Foi o que aconteceu a 16 de abril. Enquanto Gaspar Pinto lavava a loiça e se preparava para fechar a porta do “Cantinho Jovem”, um amigo que trabalhava fora do país disse-lhe que queria ir ao Meia Culpa. Exausto, Gaspar sugeriu-lhe que convidasse outras pessoas, mas sem sucesso. O amigo estava decidido a ir à boite, com ou sem companhia, mesmo que isso implicasse deslocar-se a Amarante numa “carriça”, uma pequena motorizada de três velocidades que não oferecia muita segurança.
Preocupado com o amigo, Gaspar aceitou ir, mesmo sem vontade. Chegaram ao Meia Culpa depois das 2h e Gaspar dirigiu-se instintivamente para aquele sofá do canto. Pediu uma Coca-Cola, recusou a companhia de uma alternadeira que se aproximou e acabou por adormecer mesmo ali. Até que o tiro o acordou.
Em poucos segundos, viu-se no meio de três dezenas de pessoas que procuravam refúgio naquela zona. Momentos depois já o bar estava envolto em chamas, que consumiam rapidamente os sofás, as cortinas e as madeiras do interior da boite. Procurando manter a calma, Gaspar tentou dirigir-se para a zona da pista, que, por ser de um material pouco inflamável, ainda não estava a arder. Foi nesse momento que as luzes do Meia Culpa se acenderam todas, para se apagarem poucos segundos depois, provavelmente devido a algum curto-circuito provocado pelo fogo intenso.
Esses segundos de luz foram suficientes para Gaspar perceber exatamente onde estava e para que lado era a saída. Foi também nestes segundos em que a luz esteve acesa que o empregado António Silva viu um dos atacantes com um revólver na mão a dirigir-se à porta principal. Os outros já teriam fugido, ou pelo menos já não havia sinal deles. O empregado começou então a correr naquela direção, mas acabou por cair pelo caminho, ao ser atingido por um tiro.
A porta de saída estava no campo de visão de Gaspar: só precisava de andar em frente pela pista. Primeiro obstáculo: a escuridão total que invadiu o bar assim que a luz falhou impediu-o de ver os sofás que estavam à sua frente. Caiu mal deu o primeiro passo, ficando também molhado com gasolina e começando a arder no instante seguinte. Com os olhos fechados para se proteger do fogo, foi avançando com as mãos a apalpar o balcão – que estava colocado na direção da porta.
A menos de três metros da saída, não aguentando mais suster a respiração, acabou por inspirar. Instantaneamente, caiu no chão. As cortinas e os sofás sintéticos, a gasolina e os plásticos que recheavam o bar em chamas provocavam fumos tóxicos irrespiráveis que o deixaram desorientado. A queda fez com que partisse uma das lentes dos óculos — foi através dessa lente partida que Gaspar viu uma claridade, que concluiu ser a porta por ter visto uma mulher desaparecer por lá. Num último esforço, arrastou-se, de gatas, até ao exterior do bar. Depois, mais ninguém saiu.
“Porque é que me fizeram isto?”
António Almeida nunca chegou a saber o nome do condutor que aceitou levá-lo ao hospital quando o viu, desesperado, no meio da estrada a pedir ajuda. Na entrada do hospital, Almeida só ouviu gritos. Era para lá que tinha sido levada a maioria dos feridos da boite, e foi lá que o empresário soube que tinham morrido mais de uma dezena de pessoas. Naquele momento, só se perguntava: “Porque é que me fizeram isto? Porquê?”.
Naquele dia, António Almeida passara a tarde a preparar o bar para que não faltasse nada à noite. Levantou-se por volta da hora de almoço, porque se deitava todos os dias às 7h da manhã, e desceu do sétimo andar do edifício Cristal Center, onde morava, até à cave, onde estava instalado o Meia Culpa. Abasteceu os balcões frigoríficos de bebidas e fez limpezas. Nada fazia prever que a noite pudesse acabar assim, mas a verdade é que já não era a primeira vez que o Meia Culpa era alvo de um fogo posto.
A boite tinha sido inaugurada um ano antes, a 1 de março de 1996. Até então, a noite de Amarante era dominada pelo Diamante Negro, a única discoteca do género na cidade. Pouco tempo depois, em agosto – a época alta, devido à grande afluência de emigrantes em férias – houve um incêndio no Meia Culpa. Alguém despejou gasolina por baixo da porta e pegou fogo ao bar, depois de toda a gente ter saído. “Nessa altura, estivemos fechados mais ou menos 15 dias. Em duas semanas recuperámos a casa e voltámos a abrir”, recorda António Almeida. Mas não sem um “grande prejuízo”, uma vez que a boite esteve fechada durante o período de maior procura.
Os problemas continuaram. Depois do incêndio, António Almeida começou a receber em casa cartas escritas com letras de régua com ameaças diretas. Diziam “que a nossa família ia ter problemas”, lembra hoje ao Observador. Mas nunca se chegou a saber quem as enviou, uma vez que a investigação não avançou. Nenhum destes episódios o assustou. Pensava tratar-se de alguém que o queria apenas intimidar. “Há muita gente que vive com ameaças e nunca lhe fazem nada.”
“O senhor vai ter calma!”
No exterior do Meia Culpa, encostado à parede a tentar acalmar-se, Gaspar Pinto só conseguia pensar no amigo que o tinha trazido à boite. Ainda deu dois ou três passos até ao interior, mas não resistiu ao fumo e às chamas intensas. Era praticamente impossível entrar ali – da porta saía uma larga coluna de fumo negro. Além disso, Gaspar nem sabia se o amigo ainda estaria no interior do Meia Culpa, uma vez que não o via desde o momento em que tinha adormecido no sofá. Decidiu, então, que o melhor era tentar chegar a um hospital rapidamente. Como ainda não havia bombeiros no local, preferiu pegar no seu próprio carro e dirigir-se ao único hospital que conhecia na região: o de Marco de Canaveses, perto de sua casa. No momento, nem lhe ocorreu que o hospital de Amarante ficava muito mais próximo dali.
Foi nessa altura que se apercebeu do estado em que estava. Levando a mão ao bolso para tirar a chave do carro, sentiu os dedos ficarem colados ao tecido das calças. Também a pele da cara começava a levantar e a doer. No percurso entre a pista de dança e a porta principal, tinha tropeçado e tocado em todo o tipo de objetos em chamas, ficando com queimaduras em várias partes do corpo.
Era urgente chegar ao hospital, mas não estava a ser fácil. Correu para o seu carro, um Toyota Corolla DX escuro que tinha importado da Alemanha, e tentou começar a conduzir. Dentro do automóvel, Gaspar viu uma mulher bater-lhe no vidro e desaparecer em segundos. Já não a encontrou e ainda hoje não sabe quem era ou o que lhe aconteceu.
Em desespero com as dores, arrancou. Já tinha percebido que ia ser muito difícil conduzir. Meteu a terceira, uma mudança que aguentou o caminho todo até Marco de Canaveses, para evitar ter de mexer na caixa de velocidades. Depois, pôs a mão direita no volante e a esquerda na manivela do vidro lateral, que abriu para deixar entrar ar fresco e aliviar as dores. Foi assim que fez o percurso de cerca de 18 quilómetros que separa o Meia Culpa do hospital de Marco de Canaveses.
Assim que chegou, teve de descolar a mão do volante. Para evitar piorar o seu estado, chegou ao portão do hospital e tocou à campainha com a cabeça.
— O senhor sente-se nessa cadeira, se faz favor! E vai ter calma! — ordenou-lhe a pessoa que o recebeu à entrada das urgências.
A sirene tocou “aos arranques”
Entretanto, na boite em chamas, de onde os três atacantes já tinham fugido, o porteiro conseguiu correr para uma das saídas de emergência e chegar ao exterior. Também Jú e Sisi, as duas alternadeiras que se encontravam junto da entrada no momento em que os atacantes chegaram, escaparam pela porta da cozinha com o gerente do bar, Manuel Amaral. As duas precipitaram-se pelas escadas do edifício Cristal Center até ao sétimo andar, onde Sisi tinha um apartamento. Sem saberem do paradeiro de ninguém, nem mesmo do proprietário António Almeida, telefonaram, desesperadas, para o outro dono da discoteca, Abel Varejão.
Varejão estava longe dali, em Baltar, no Delta Clube, um outro bar explorado pelos dois sócios. Aquela casa tinha sido inaugurada duas semanas antes e os dois decidiram que Almeida, por morar em Amarante, ficaria com a supervisão do Meia Culpa, enquanto Varejão, que habitava em Valongo, tomaria conta do Delta Clube. Ocasionalmente, trocavam de posto.
Ao telefone, Varejão ouviu a voz aterrorizada de Jú, que lhe contou ter acontecido uma tragédia horrível no Meia Culpa. Da chamada, o empresário só conseguiu perceber que uns homens tinham entrado no bar e que já poderia haver vários mortos. De imediato, largou o Delta Clube e colocou-se no carro, a caminho de Amarante, para tentar perceber o que se passara exatamente. Ia nervoso com a possibilidade de ter o bar totalmente destruído e de o encontrar cheio de mortos — desde o primeiro incêndio e das cartas anónimas, andava desconfiado do que a concorrência lhe poderia fazer.
Também o gerente do Meia Culpa, Manuel Amaral, estava nervoso. Tinha sido contratado para aquela boite logo na abertura, mas, pelo meio, saíra durante dois meses para trabalhar no Boina Verde, outro bar de alterne, na Lixa. Quando foi, levou algumas empregadas para lá; e, quando regressou para o Meia Culpa, trouxe de volta as que tinha levado e ainda mais algumas. A atitude, na altura, não agradou ao dono do Boina Verde. Conhecendo-o bem, Amaral temia uma eventual vingança — naquele momento, não sabia que o proprietário do Boina Verde era completamente inocente.
Em 1997, não havia turno da noite nos Bombeiros Voluntários de Amarante. Quem assegurava os serviços noturnos eram os homens que estavam no chamado ‘bairro dos bombeiros’, um conjunto de habitações junto ao quartel onde viviam muitos dos voluntários da corporação. Através de um sistema de campainhas, ligadas entre o quartel e essas casas, aqueles bombeiros eram acordados e tratavam de todas as emergências. Só se fossem necessários reforços é que a sirene tocava.
Foi o que aconteceu naquela noite. O alarme foi dado às 4h15, depois de terem recebido um telefonema de uma patrulha da GNR que tinha passado no Meia Culpa, e os primeiros meios saíram do quartel apenas três minutos depois. Às 4h22, a primeira equipa estava no local a combater o fogo – nesse momento, já Gaspar Pinto estava longe, a chegar ao hospital do Marco de Canaveses; já António Almeida estava num carro de um desconhecido a caminho do hospital de Amarante; e já Abel Varejão estava a ser alertado pelas duas alternadeiras para a tragédia.
Pouco depois, a sirene tocou “aos arranques”, como descreve Fernando Pereira, então bombeiro de terceira e hoje adjunto do Comando dos Bombeiros Voluntários de Amarante. Naquele dia, Fernando, que era mecânico de automóveis, tinha deixado a oficina onde trabalhava ao fim da tarde para ir jantar. Depois, foi, como de costume, até ao quartel dos bombeiros, onde ficou a jogar às cartas até perto da meia-noite, hora a que regressou a casa para dormir. Pela insistência do toque, Fernando percebeu que havia uma tragédia grave naquela noite. Pegou no carro e percorreu em poucos minutos os cinco quilómetros que separam a sua casa do quartel. Quando chegou, pegou numa ambulância e pôs-se a caminho.
A sirene também arrancou da cama o chefe Gonçalo Monteiro, que já estava mais perto da hora de se levantar. Na altura trabalhava por turnos a conduzir veículos especiais (de varrimento das ruas, por exemplo) na Câmara Municipal de Amarante e, como teria de se levantar cedo, deitava-se por volta das 22h. Apressou-se em direção ao quartel e encontrou o comandante, Artur Matias, prestes a seguir para a boite em chamas.
— Quer vir? – perguntou-lhe o comandante.
Gonçalo pegou num fato-macaco – na altura não havia equipamentos como os atuais, os bombeiros usavam fatos sem resistência ao fogo e capacetes só com uma viseira – e meteu-se no carro.
No interior do Meia Culpa já não havia ninguém vivo. Os feridos que, como Gaspar e Almeida, conseguiram sair dali já estavam a caminho dos hospitais pelos seus meios. Outros desesperavam no exterior da boite. Foi para estes a primeira atenção das equipas de socorro, que começaram a transportá-los para o hospital de Amarante. Naquela altura, as ambulâncias podiam levar duas pessoas de cada vez, mas Fernando admite que chegou a levar três pessoas em simultâneo, já que a corporação tinha poucas viaturas. Fez pelo menos três viagens de ida e volta entre o Meia Culpa e o hospital ao volante da ambulância.
Ao mesmo tempo, Gonçalo entrou no bar juntamente com a equipa de resgate. A temperatura no interior da boite era de tal forma elevada que a água do combate ao incêndio chegava a ferver. Sem proteção na zona da nuca, Gonçalo recorda a dor das gotas que lhe caíam no pescoço quando se baixava para recolher os cadáveres. O cenário era devastador: o interior do bar estava completamente negro, devido aos fumos libertados pelos sofás e pelos plásticos; por toda a parte, cadáveres. Uns debaixo dos sofás, outros em cima deles, muitos no chão junto à pista de dança e à porta de emergência que estava fechada.
A maioria dos cadáveres foram encontrados junto aos sofás do canto – os mesmos onde Gaspar Pinto dormia –, uma vez que foi lá que grande das pessoas procurou refúgio durante o ataque. Naquela noite, no total, morreram 12 pessoas: oito alternadeiras e quatro clientes. Um ferido morreria mais tarde, no hospital, elevando o número total para 13. Entre os clientes mortos estavam, além do amigo de Gaspar Pinto, o cidadão francês que foi abalroado no início do ataque e José Guedes, um famoso ex-jogador de futebol que tinha passado pelo Marítimo, Beira-Mar e Paços de Ferreira.
O “suspeito” errado
Abel Varejão, que tinha largado o Delta Clube depois do telefonema das alternadeiras, chegou finalmente ao Meia Culpa. O que viu deixou-o em choque: o bar totalmente destruído e os bombeiros a carregarem cadáveres para as ambulâncias. Apesar de saber que tinha concorrência naquele negócio, nunca encarara a possibilidade de lhe fazerem algo assim. Encontrou o gerente Manuel Amaral junto à entrada da boite e perguntou-lhe detalhes sobre o que tinha acontecido. Foi nesse momento que soube que três indivíduos encapuzados tinham entrado no bar, ameaçado clientes e funcionários, regado tudo com gasolina e deitado fogo ao interior.
Começou imediatamente a desconfiar de José Queirós, o dono do Diamante Negro. Varejão sabia bem que Queirós já tinha dito que um dia ainda iria fechar o Meia Culpa. António Almeida, que teve de ficar três meses no hospital a fazer curativos diários ao braço, à perna e às costas, não tinha essa desconfiança. “Sempre pensei que fosse alguém que nos quisesse intimidar por termos aberto um bar de alterne naquele prédio. O meu sócio sempre desconfiou que fosse ele [José Queirós], mas a mim nunca me passou pela cabeça”, comenta, 20 anos depois do massacre.
Extintas as chamas e levados os mortos e feridos para os hospitais, começou uma investigação policial que acabaria por identificar os culpados em menos de duas semanas. Mas os primeiros dias não foram fáceis. Gaspar Pinto, por exemplo, que entretanto foi transferido para o Hospital de São João, no Porto, foi alvo de um equívoco. Enquanto recuperava das lesões nas mãos, viu, pela televisão do seu quarto de hospital, que “um tal Gaspar Pinto, de 21 anos, da Alpendurada, era suspeito”. Desconfiava-se que era impossível ter sido capaz de conduzir 18 quilómetros com as mãos naquele estado. Foi interrogado pela Polícia Judiciária, que analisou o seu pequeno telemóvel Sony Ericson 888 à procura de comunicações suspeitas.
Rapidamente começaram os pedidos de entrevista ao “suspeito do massacre de Amarante”, como os jornais lhe chamavam nos dias seguintes. Aceitou falar com a RTP, na esperança de esclarecer tudo. Não resultou. No dia seguinte, apenas alguns excertos da entrevista foram transmitidos, com a indicação de que se tratava de uma entrevista exclusiva ao suspeito de Amarante. Furioso, Gaspar Pinto recusou todos os restantes pedidos da imprensa, aceitando apenas um outro, da TVI. Mas, antes, chamou o jornalista ao seu quarto:
— Olhe, se for para eu contar um relato do que aconteceu naquela noite e vocês passarem tudo, eu aceito. Se for para fazer o mesmo que fez um outro senhor que cá esteve antes de si, esqueça, eu isso não quero fazer – pediu Gaspar ao jornalista.
Chegaram a acordo e fez-se a entrevista. Mesmo com os esclarecimentos feitos, Gaspar continuava a ser considerado, por muitos, o principal suspeito. Uns dias depois, um familiar de uma das vítimas entrou pelo hospital em que Gaspar estava internado. Levava uma arma e só não o matou porque se enganou no andar e foi detido antes de o conseguir encontrar.
Capítulo II
O crime visto pelos olhos dos atacantes
Durante anos, o bar de alterne Diamante Negro dominou a vida noturna de Amarante. Propriedade de José Queirós, um empresário de 50 anos que abriu o seu primeiro estabelecimento nocturno ainda em Angola, passou pelos negócios do futebol com o Amarante FC e regressou à noite com a abertura da primeira boite da cidade — o Diamante Negro foi a única casa noturna até 1 de março de 1996, dia em que foi inaugurado o Meia Culpa, numa semi-cave à beira da nacional 15.
A concorrência não agradou a José Queirós, sobretudo porque muitos dos seus clientes experimentaram o Meia Culpa e fidelizaram-se ao novo bar. Queirós decidiu que tinha de fazer alguma coisa, e começou a pensar numa forma de destruir permanentemente a nova boite. O plano passaria por deixar o rival sem condições de reabrir. Queria pegar fogo à boite a partir do interior, destruindo-a por completo. Para isso, precisava das pessoas certas.
Numa noite no início de 1997, no Diamante Negro, Queirós foi ter com um dos seus clientes mais frequentes, um homem de 25 anos chamado Artur. Propôs-lhe que pegasse fogo ao Meia Culpa a troco de uma boa quantia de dinheiro – 500 contos no momento e mais 200 uns meses depois, caso se confirmasse que a boite não reabria. Artur disse-lhe que não se queria envolver no esquema e recusou a proposta.
Umas semanas mais tarde, em fevereiro do mesmo ano, numa outra noite no Diamante Negro, José Queirós insistiu. Prometeu-lhe, novamente, pagar muito bem pelo serviço e dessa vez teve uma resposta diferente: Artur comprometeu-se a organizar o plano e a arranjar os executantes.
Lembrou-se imediatamente de um conhecido seu que lhe pareceu ser a pessoa indicada para o trabalho. Tratava-se de César, um monitor de artes marciais do Porto, de 25 anos, que à noite era segurança numa discoteca. Os dois tinham-se conhecido oito meses antes, no café de que Artur era proprietário, mas não contactavam habitualmente. Em março daquele ano, tornaram a falar. Artur convidou-o a participar num plano para pegar fogo a uma boite em Amarante, garantindo que lhe pagaria bem.
Consciente de que não conseguiria fazer tudo sozinho, César decidiu pedir ajuda a um amigo, Filipe, que também era segurança na noite. Concluíram que precisavam de mais uma pessoa. Lembraram-se de Ricardo, um amigo comum que trabalhava como segurança no Porto. Ricardo também aceitou. Os outros ficariam com 200 contos e ele com 100.
Só faltava o carro
Para o plano funcionar, precisavam de um carro. Uns dias depois de formar a equipa, já na primeira semana de abril de 1997, Artur quis saber como estavam a correr os preparativos. Estava tudo pronto, mas só faltava o carro. Artur garantiu que iria tratar do assunto e, na noite seguinte, domingo, dirigiu-se ao Diamante Negro para informar José Queirós sobre o plano.
Artur pediu-lhe que alugasse um carro por três dias, uma vez que o plano seria executado na terça-feira seguinte. José Queirós recusou, para evitar ter o seu nome envolvido no processo, e deu 11 contos a Artur para que ele mesmo tratasse do aluguer. Mas ele também não queria que o seu nome aparecesse e, por isso, teve outra ideia: cobrar uns favores a Jaime, um jovem de 18 anos que também costumava frequentar o Diamante Negro e de quem se tinha tornado amigo há alguns meses. Há já semanas que o plano para o ataque ao Meia Culpa vinha sendo tema de conversa entre Artur e Jaime, nas noites que passavam juntos na boite de Queirós.
Jaime tinha-se apercebido da excelente relação entre Artur e Queirós, e aproveitou para beber de borla na boite durante meses. Apesar de não ter carta de condução, costumava pegar no carro da mãe para dar umas voltas por Amarante. Um dia, perdeu as chaves mas conseguiu pôr o automóvel a funcionar com uma ligação direta. Artur sabia desta habilidade e, por isso, achou que o rapaz lhe conseguiria arranjar um carro com facilidade.
Encontraram-se os dois na segunda-feira seguinte, num bar na Póvoa de Varzim. Artur pediu-lhe que arranjasse um carro até às 3h da manhã daquela noite. Jaime, consciente de que devia alguns favores a Artur, aceitou o pedido, mesmo sem saber em concreto o que estava a ser planeado. Depois, Artur falou também com um amigo de Jaime que estava com ele, chamado Octávio.
— Ajuda o Jaime, que ele depois diz-te o que é – disse-lhe, antes de desaparecer.
Os dois combinaram como iriam agir nessa noite: deveriam arranjar um carro para entregar a Artur, que lhes ligaria por volta da 1h30 da manhã para acertarem o local da entrega do automóvel. Só havia uma condição: o carro teria de ser potente, para conseguir arrancar rapidamente. Os dois jovens dirigiram-se à Maia e, quando lá chegaram, andaram às voltas pela cidade à procura de um alvo. Cerca da 1h30 da manhã, o telemóvel tocou. Era Artur, que queria saber como estava a correr o serviço e se já tinham um carro. Ainda não, responderam-lhe. Só meia hora mais tarde, quando passaram por uma garagem coletiva protegida por um portão eletrónico, é que decidiram avançar.
Depois de forçarem a entrada na garagem, tentaram arrombar um Peugeot 106 e uma Renault 4L. Como não conseguiram, detiveram-se junto de um Rover 213 verde. Forçaram a porta do condutor até caber um braço no interior e abriram a porta.
Depois, puseram o carro a trabalhar através de uma ligação direta e tiraram-no da garagem. Seguiram os dois até uma aldeia ali perto, onde ficaram à espera de um novo telefonema. Por volta das 2h30, Artur voltou a ligar, para lhes indicar que deveriam deixar o carro, com as portas destrancadas, numa rua em obras junto ao estádio das Antas. Disse-lhes ainda que estava a caminho de Amarante e convidou-os para, se quisessem, se juntarem a ele no Diamante Negro para beberem um copo. Aceitaram.
Deixando o carro na rua em obras junto ao estádio, seguiram rumo ao Diamante Negro, em Amarante, onde contaram a Artur, em pormenor, o que tinham acabado de fazer. Beberam whisky até depois das 4h da madrugada. Como estavam cansados e tinham bebido demasiado, os dois jovens decidiram não regressar à Póvoa de Varzim naquela noite. Estacionaram o carro da mãe de Jaime numa estrada de terra batida ali por perto e adormeceram. Ao fim da manhã, acordaram e dirigiram-se a um café no centro histórico de Amarante para comerem qualquer coisa na esplanada, mas acabaram por ser apanhados por um agente da GNR, que se apercebeu de que Jaime andava a conduzir sem carta. O carro ficou apreendido junto do posto e os dois tiveram de regressar ao Porto de comboio nessa noite.
Os preparativos
Quando se separaram, à saída do Diamante Negro, Artur seguiu numa direção oposta à de Jaime e Octávio, dirigindo-se ao Porto na companhia do seu amigo José, que habitualmente lhe dava boleia. Ia encontrar-se outra vez com César, à entrada da discoteca Swing, mas não o viu lá. Artur telefonou-lhe e combinaram encontrar-se junto a umas bombas de gasolina. Quando lá chegaram, Artur e José adormeceram dentro do carro.
Acordaram uns minutos depois, com César a bater no vidro. Artur saiu e disse a José que ficasse ali, porque a conversa não podia ser ouvida por ele. De seguida, meteu-se no carro com César e Filipe e os três foram até à zona do estádio das Antas ver o Rover. Depois de analisarem o carro ao detalhe, os dois pediram a Artur que o conduzisse para um outro lugar, mais discreto, noutra zona da cidade. Artur concordou e foram os três embora: César e Filipe à frente, no carro do primeiro; e Artur atrás, ao volante do Rover. Quando chegaram ao final da avenida, encontraram uma zona de árvores junto ao Centro Comercial Stop e deixaram lá o Rover, pronto para usar no dia seguinte.
Naquela noite, os três homens que iriam executar o ataque ao Meia Culpa encontraram-se em casa de César e distribuíram tarefas e armas, de que iriam precisar para garantir a fuga e amedrontar os clientes e os funcionários do bar. Combinaram também que seria Ricardo a despejar a gasolina e a incendiar o bar, mantendo um revólver guardado até precisar dele para fugir.
Antes de abandonarem a casa, decidiram os últimos pormenores. Com gorros pretos na cabeça, apenas com dois orifícios para os olhos e um para a boca, esperariam junto à porta do Meia Culpa, a partir das 4h da manhã. Para não serem identificados antes de entrarem, não iriam tocar à campainha — aguardariam que o porteiro abrisse a porta para algum cliente sair e aproveitariam esse momento para entrar. César seria o primeiro, para dirigir os clientes e funcionários para o centro da boite; seguir-se-ia Filipe, que estava encarregue de disparar a sua arma para assustar quem estava dentro do bar; por fim entraria Ricardo, com o bidão cheio de gasolina, e começaria de imediato a regar o chão da boite, enquanto Filipe lhe dava cobertura.
Como o Rover teria de ser posto em funcionamento através de uma ligação direta, o que significava que poderia ir abaixo durante o tempo em que ficasse parado no exterior do Meia Culpa, César pediu a um amigo, Álvaro, para ir com eles. Não lhe contaram o plano — disseram-lhe apenas que devia ficar no carro enquanto estivessem lá dentro e garantir que ele não se desligava.
Por volta das 2h30, dirigiram-se a umas bombas de gasolina e encheram o bidão com combustível, colocando-o dentro do Rover, onde foram postas também as armas. Álvaro encontrou-se ali com eles, mas não terá visto o interior do carro. O grupo saiu em três automóveis e seguiu para a Lixa, uma cidade próxima de Amarante, onde o plano iria começar.
O ataque ao Meia Culpa
Estacionaram os carros e entraram no Rover, todos de luvas. A viagem não demorou muito tempo. Cinco minutos antes das 4h já o grupo estava a parar o carro junto à estrada nacional 15, no topo da rampa que dava acesso às garagens onde o bar estava instalado. Álvaro ficou no veículo e os outros três desceram até à entrada da zona das garagens. Foi lá que se equiparam, para que Álvaro não visse nada.
Enquanto César e Filipe se posicionavam junto da porta principal do Meia Culpa, Ricardo estava a abrir o bidão da gasolina. Atirou a ponteira que selava o recipiente para um terreno abandonado ao lado do edifício e juntou-se a eles. Só precisavam de esperar que a porta abrisse.
Não precisaram de esperar muito tempo. Assim que a porta se destrancou, César empurrou-a, com a caçadeira apontada na direção do porteiro e de dois clientes que estavam prestes a sair. No hall de entrada estavam também duas alternadeiras, que obrigou a recuarem, com os três homens, até ao centro da boite. Um dos clientes estava a pagar a conta, com o seu cartão Premier Visa, quando o abalroou.
— Daqui ninguém sai! Tudo lá para dentro! — gritou.
Em poucos segundos, estavam os três no centro da boite. Filipe e César começaram a controlar a multidão. As pessoas juntaram-se no canto oposto à porta principal, numa zona de sofás. Quando se apercebeu de que havia gente a dirigir-se para uma porta de emergência que existia por trás do balcão, Filipe disparou um tiro contra as prateleiras onde estavam alinhadas dezenas de garrafas.
— Ides morrer todos fritos! — gritou um dos atacantes.
Poucos segundos depois, um homem, atónito, apareceu vindo de uma porta por trás do balcão. Um dos atacantes reconheceu-o de imediato: era António Almeida, o proprietário do Meia Culpa e concorrente de José Queirós. Aproximou-se dele, apontou-lhe a arma e disse-lhe:
— Toni, vais morrer hoje!
Já com o recipiente quase vazio, Ricardo começou a dirigir-se para a saída, despejando o resto da gasolina junto ao balcão, onde estava António Almeida. Nesse momento, Almeida derrubou-o, despejando o resto do combustível em cima dos dois.
Tinham passado poucos segundos desde a entrada dos três no bar e já estava a ser difícil controlar a multidão em pânico. Ricardo apressou-se então a agarrar o isqueiro que trazia no bolso e a pegar fogo à gasolina. As labaredas levantaram muito depressa, cercando em poucos segundos os clientes e os funcionários, que ficaram encurralados entre as chamas e as paredes do fundo. Os três atacantes puseram-se então em fuga, deixando o bar a arder atrás de si. Ricardo foi o último a sair, depois de largar o bidão da gasolina. Como foi ele a atear o incêndio, era o que estava mais perto das chamas. Na fuga, tropeçou e caiu ao chão, sendo rapidamente atingido pelo fogo, que lhe queimou as calças na perna direita. Conseguiu levantar-se e fugir, juntando-se aos outros dois, que já o aguardavam cá fora. Antes de sair, ao aperceber-se de que um dos empregados do bar estava a tentar fugir pela porta principal, disparou a arma que levava guardada no bolso, atingindo-o.
Já no exterior, os três regressaram ao carro. Arrancaram a grande velocidade e dirigiram-se para a Lixa, onde estavam os seus automóveis. Pelo caminho, retiraram os capuzes. Chegados à Lixa, deixaram o Rover abandonado. O destino combinado era a discoteca Swing, no Porto, onde ficariam até de manhã.
“Eu já levo as chaves”
O dono do Diamante Negro ouviu a sirene dos bombeiros. Era o sinal. Naquela noite, Artur tinha ido à boite de Queirós com o amigo José e saíra de lá, poucos minutos depois de a sirene tocar, com duas raparigas e foram para o apartamento delas, onde ficaram até por volta das 6h da manhã. Nessa altura, Artur telefonou a Queirós, que lhe tinha dado o seu número de telefone nesse dia.
— ‘Tá, eu levo já as chaves – disse Queirós.
“Chaves” era o nome de código para o dinheiro prometido por Queirós a Artur, que o dono do Diamante Negro usou para evitar que a sua mulher percebesse de que se tratava. O local combinado era a rotunda em que terminava a Avenida General Silveira, junto ao rio, mesmo em frente ao Diamante Negro. Já era de manhã, por volta das 7h. Artur foi no Citroen AX conduzido pelo amigo José. Pouco depois, chegou Queirós, num Volkswagen Golf azul. O dono do Diamante Negro fez-lhes sinais de luzes e eles seguiram-no. Os dois carros pararam 600 metros depois, num pequeno retiro na mata junto à estrada.
Queirós manteve-se dentro do carro, em silêncio. Artur saiu do seu carro e dirigiu-se ao Volkswagen do dono do Diamante Negro. Agarrou num maço de notas com os primeiros 500 mil escudos prometidos. Artur colocou o dinheiro dentro do casaco. Os dois não trocaram palavra.
Artur decidiu não tirar nada para si. Meteu-se no carro com o amigo e os dois seguiram até ao Porto, com o objetivo de entregar o dinheiro aos executantes. Àquela hora, César já deixara a discoteca Swing e estava em casa a dormir. Foi acordado pela campainha e veio à porta. Artur entregou-lhe o maço de notas, tal como o tinha recebido, e foi embora. Naquele momento, nenhum deles conhecia ainda as consequências do que tinham feito.
Quando chegou a casa, pouco depois, Artur ligou a televisão. Só nesse momento é que se apercebeu do que de facto tinha acontecido: um incêndio enorme destruíra por completo o Meia Culpa, provocando a morte de 12 pessoas e vários feridos. Não era disto que estava à espera: o plano era apenas destruir a boite, e àquela hora, a uma terça-feira, terá pensado, não deveria haver tanta gente no bar.
Duas horas depois, Ricardo apareceu em casa de César, que entretanto tinha voltado a dormir, e contou-lhe tudo o que tinha visto na televisão. Chamaram Filipe, que apareceu pouco tempo depois, e descreveram-lhe o resultado do que tinham feito na noite anterior. Também eles terão ficado surpreendidos com aquelas consequências.
Entretanto, Artur telefonou a César para marcar um encontro com os três, para a hora de almoço, em Esposende. Os executantes estavam preocupados e Artur tentou acalmá-los, apesar de também ele se sentir apreensivo. Logo após o almoço, dirigiu-se à Póvoa de Varzim para procurar Jaime, o jovem a quem tinha encomendado o roubo do Rover, para se assegurar que ele não dizia nada a ninguém.
Ao chegar lá, não o encontrou. Só falariam mais tarde nesse dia, no mesmo café na Póvoa de Varzim onde lhe tinha pedido para roubar o carro. Nessa conversa, avisou-o de que não devia dizer nada a ninguém. Jaime ficou assustado.
César, Filipe e Ricardo foram trabalhar normalmente. Os três não voltaram a ser contactados por Artur e limitaram-se a ir acompanhando os desenvolvimentos da investigação através dos jornais.
Depois de conversar com Jaime, Artur foi até ao Diamante Negro para tentar falar com Queirós. Precisava de saber o que fazer perante a forma como as coisas se tinham desenrolado e queria pedir os 200 contos adicionais que lhe tinham sido prometidos – era desse dinheiro que planeava retirar 150 mil escudos para si. Mas não o encontrou.
Decidido a falar com o dono do Diamante Negro, Artur regressou à boite na noite seguinte. José Queirós continuava a não estar lá, mas tinha deixado um recado a um dos seus funcionários para que Artur fosse levado a sua casa. O empregado da boite transportou-o numa carrinha até à vivenda onde Queirós estava isolado desde que soube do que tinha acontecido no Meia Culpa.
Entraram para a cozinha, onde encontraram Queirós nervoso. O empregado saiu e ficaram apenas os dois, em silêncio. Artur começou a falar e foi de imediato interrompido por Queirós, que lhe fez sinal para estar calado. Temia que a casa estivesse sob escuta. Queirós, ainda de robe, foi levar Artur de novo ao Diamante Negro, regressando rapidamente a casa. No caminho, não conversaram: Queirós receava que o carro também estivesse a ser escutado.
Só conseguiram falar no dia seguinte, quando Artur regressou pela terceira vez ao Diamante Negro e encontrou Queirós à porta. Disse-lhe ao ouvido que precisava dos 200 mil escudos. O dono da boite perguntou-lhe, também ao ouvido, se havia algum problema. Artur respondeu que não. A conversa terminou ali, uma vez que chegaram naquele momento dois homens que ficaram a falar com o dono do Diamante Negro.
Queirós não teve mais nenhum contacto com Artur. Durante dez dias, eles, os três executantes e os dois jovens que roubaram o Rover mantiveram-se discretos. Se o plano era simplesmente desaparecerem na escuridão, não conseguiram: o elevado número de vítimas mortais motivou imediatamente uma investigação policial sem precedentes.
Capítulo III
O crime visto pelos olhos da polícia
Às 8h da manhã de quarta-feira, 16 de abril, Fernando Negrão estava em casa, em Setúbal, a acabar de se arranjar. O telemóvel do diretor nacional da Polícia Judiciária tocou e do outro lado da linha estava João Ferreira Pinto, responsável pela diretoria do Porto. Tinha uma notícia terrível para lhe dar: algumas horas antes tinha havido um crime em Amarante que provocara “mais de uma dezena de vítimas”.
Fernando Negrão ficou “preocupadíssimo”. Apressou-se e, ao fim de dez minutos, já estava no carro, juntamente com o guarda-costas e o motorista. Enquanto fazia os cerca de 40 quilómetros em direção a Lisboa, foi ouvindo os noticiários da rádio sobre o fogo no Meia Culpa. Quando chegou ao seu gabinete na sede da PJ, pegou outra vez no telefone e ligou a Ferreira Pinto. “Não havia mais detalhes, as notícias eram as mesmas”, lembra hoje Fernando Negrão ao Observador. Para o tranquilizar, o responsável do Porto explicou que já havia pessoas da Judiciária no terreno.
Realmente, os agentes estavam em Amarante há algumas horas. O alarme fora dado pela GNR — mas por acaso. Naquela madrugada, por volta das 3h, o posto da Guarda de Amarante recebeu um telefonema a denunciar uma troca de tiros à porta do Diamante Negro, a mais antiga boite da cidade. Foi enviada uma patrulha de três militares à avenida General Silveira, perto do rio Tâmega, onde se encontrava a discoteca, e recuperaram três balas. O proprietário do bar, José Queirós, disse-lhes que um homem tinha disparado contra a porta e depois fugira num jipe.
Decididos a encontrar o carro, os militares fizeram uma ronda pela cidade. E tomaram uma opção óbvia: como existia na zona uma outra boite — o Meia Culpa — acharam que o melhor seria passarem também por lá. Atravessaram o rio e seguiram pela nacional 15 até ao edifício Cristal Center. Chegaram às 4h05. Em vez de um jipe, viram um incêndio e “muitas pessoas a gritar e em pânico”. Telefonaram imediatamente para os bombeiros e chamaram a Polícia Judiciária do Porto.
O telemóvel dos agentes da PJ que estavam de prevenção naquela madrugada tocou pouco depois. Foram logo para Amarante elementos da secção de Homicídios e da brigada de Fogo Posto. Depois de analisarem o local do crime, alguns agentes dirigiram-se a uma garagem anexa ao Hospital de Amarante, onde estavam os corpos. Chocaram de frente com uma dificuldade inesperada: para tentar adiantar o trabalho da polícia, alguém decidira despir os cadáveres e colocar as roupas num amontoado. O objetivo era ajudar, mas o resultado foi dificultar a identificação das vítimas.
Os agentes começaram a procurar testemunhas. No Hospital de Amarante, por exemplo, estavam quatro feridos. Entre eles o porteiro do Meia Culpa, Fernando Silva, que contou alguns pormenores, mas falhou o essencial: não tinha muita coisa para dizer sobre os atacantes. No Hospital de Santo António, no Porto, estava internado António Silva, que fora baleado no Meia Culpa. Depois de pedir autorização ao médico, o agente da PJ interrogou-o — e o sobrevivente contou-lhe detalhadamente o que tinha visto no interior da boite. A seguir, a Judiciária foi ao Hospital de São João, onde interrogou Gaspar Pinto, que tinha sido transferido para lá, e ao Hospital da Prelada, onde estava um dos proprietários da boite, António Almeida. À porta do Meia Culpa, um outro agente viu duas pessoas a falarem com jornalistas e identificou-as para poderem ser ouvidas mais tarde.
Ainda a 16 de abril, a polícia foi procurar um casal que estava a fazer distribuição de pão na zona do crime, perto das 4h da manhã. Essas testemunhas terão visto, a 100 metros de distância, dois vultos que vinham a correr da direção do Meia Culpa. Mas não foram especialmente úteis: nenhum deles se lembrava de qualquer característica física dos homens.
A muitos quilómetros de distância, em Lisboa, Fernando Negrão continuava preocupado: “Nunca me saiu da cabeça aquilo que tinha acontecido em Amarante”. Mesmo quando estava a trabalhar noutros assuntos, o diretor nacional da PJ manteve sempre a televisão do seu gabinete ligada. E pediu às suas secretárias que acompanhassem os noticiários nas rádios para, se ouvissem qualquer informação nova, o avisarem. Às 17h, hesitou: “Vou telefonar outra vez ao diretor do Porto, ou não?”. Sentado no sofá, olhou novamente para a televisão, onde estava a dar uma reportagem sobre Amarante já com mais dados sobre o número de mortos, e começou a achar que era preciso fazer mais qualquer coisa. “Aquilo estava a provocar um alarme social muito grande. E percebi que iria provocar um alarme social muito maior. Estávamos perante um crime quase inédito”.
Fernando Negrão saiu da sede da PJ, meteu-se no carro e seguiu para Setúbal. Durante a viagem, pensou: “Eu tenho que fazer alguma coisa, mas tenho que fazer da forma mais discreta possível”. À porta de casa, despediu-se do motorista e do guarda-costas, garantindo-lhes que não voltaria a sair. Subiu, pegou numa mala com roupa para alguns dias e telefonou ao director da PJ do Porto. Quando João Ferreira Pinto atendeu, informou-o que decidira ir ter com ele e que devia demorar cerca de duas horas e meia na viagem. Pouco depois das 18h, entrou no seu Audi A4 verde e, sozinho, acelerou para a auto-estrada.
Quando chegou ao Porto, Fernando Negrão entrou em contacto com o comandante-geral da GNR para abrir uma linha de comunicação com a Guarda, que seria importante para a investigação. E reuniu-se com os homens da PJ. Explicou-lhes os seus planos: “Eu estou aqui e só saio daqui quando este crime estiver resolvido”.
Dois gorros e pistas falsas
Na manhã do dia seguinte, quinta-feira, Artur Pereira, subdiretor da PJ do Porto, estava em Lisboa quando João Ferreira Pinto lhe telefonou. Acabara de chegar ao Centro de Estudos Judiciários e preparava-se para entrar numa reunião de uma comissão que estudava uma eventual alteração ao Código de Processo Penal — mas já nem passou da porta. Foi chamado de regresso ao Porto para liderar diretamente a equipa de investigação.
Logo que entrou na sede da Judiciária, cruzou-se com o responsável pela secção de Homicídios, que começou imediatamente a dar-lhe detalhes sobre o que estava a ser feito. A polícia, lembra hoje Artur Pereira ao Observador, “andava porta a porta a tentar localizar todas as pessoas” que pudessem saber algum detalhe do que se passara — a altura dos atacantes, por exemplo, ou se tinham algum sotaque peculiar que pudesse ajudar a identificá-los. Na manhã de dia 18, por exemplo, dois agentes foram ao Instituto de Medicinal Legal do Porto procurar mais testemunhas, que pudessem estar lá para saber de amigos ou familiares mortos. E seguiram depois para o Hospital da Prelada, para interrogarem feridos. No mesmo dia, a PJ pôs três pessoas sob escuta, incluindo o dono do Diamante Negro, José Queirós.
Entretanto, começavam a aparecer outras provas. Dois dias antes, a 16, um militar da GNR telefonou à PJ a avisar que estava um gorro preto de malha, estilo passa-montanhas, na berma da estrada que liga a Lixa a Felgueiras. Um agente da Judiciária meteu-se no carro e foi fotografar o local e recolher o gorro. Ao fim de poucos minutos, chegou nova informação: tinha sido encontrado um segundo gorro, no centro da Lixa, a cerca de um quilómetro do primeiro. Também apareceu um bidão de plástico, que poderia ter sido usado para transportar a gasolina. Todos estes objetos foram mandados para o Laboratório de Polícia Científica a 18 de abril. Dias depois, enviar-se-iam alguns cabelos encontrados nos passa-montanhas.
A polícia seguiu todos os caminhos clássicos: fez buscas nas casas de vários suspeitos, pediu a facturação detalhada dos seus telemóveis e solicitou o acesso às suas contas bancárias. Mas nada disto trouxe pistas decisivas.
Outra prioridade era descobrir a bala que tinha sido disparada dentro do Meia Culpa. Durante vários dias, o interior da boite foi visto ao milímetro, na tentativa de encontrar o pequeno projéctil, no meio de dezenas de garrafas partidas e de mobília destruída. Apareceu, mas foi relativamente inútil: estava tão amassado que era impossível dizer com exactidão qual a arma de onde tinha saído.
Pelo meio, surgiram ainda, como sempre acontece, várias pistas falsas: a indicação de que o crime poderia estar relacionado com tráfico de droga, por exemplo; ou a sugestão de que um dos autores do ataque estaria em fuga para Espanha. Tudo erradíssimo. A polícia ainda perdeu algum tempo a analisar o comportamento de Gaspar Pinto. O facto de ele ter procurado ajuda no Hospital de Marco de Canaveses, quando o de Amarante estava mais perto, era estranho. Além disso, alguns dos melhores condutores da PJ tentaram fazer o trajecto entre o Meia Culpa e o hospital no mesmo curto período de tempo que tinha levado a Gaspar Pinto, mas não conseguiram. Mas rapidamente perceberam que ele era apenas mais uma vítima.
Nas instalações da secção de Homicídios da PJ do Porto, as conversas não paravam. Sem provas concretas, os investigadores tentavam fazer deduções lógicas. Artur Pereira lembra o raciocínio da altura: “Uma das questões que se coloca no início é ‘Porquê?’. Porque é que teria acontecido isto? Quem estava interessado nisto? Essa é sempre uma das linhas. E a hipótese de ser uma vingança de um concorrente esteve imediatamente em cima da mesa”.
Havia dois concorrentes do Meia Culpa que chamaram a atenção da polícia. Um, a boite Boina Verde; outro, o Diamante Negro. A PJ investigou os dois e percebeu que a solução estava no segundo. Ainda não tinham nenhuma prova concreta, mas avançaram. “Para já, não temos mais nada, mas vamos seguir por aqui. Vamos seguir por aqui e ver o que é que há”, recorda Artur Pereira.
Andaram assim, às escuras, durante dias. “Nestes momentos temos que disparar em todas as direções mas, acima de tudo, temos que disparar para a rua”, lembra João Morgado, na época um dos agentes que investigava o caso. Foi isso que fizeram: havia cerca de 50 homens no terreno todos os dias, a fazer perguntas, perguntas e mais perguntas. De acordo com Gil Carvalho, na altura agente e hoje coordenador do Departamento de Investigação Criminal de Braga, os contactos com pessoas que trabalhavam na noite foram decisivos para o processo.
Tudo isto foi sendo feito até que, a 25 de abril, mais de uma semana depois do crime, o trabalho cruzou-se com a sorte.
Os miúdos do Rover
Eram 20h de sexta-feira e Artur Pereira estava a chegar à porta de casa quando o telemóvel tocou. Era o responsável operacional pela GNR do Porto com uma novidade. Um miúdo chamado Octávio tinha chegado ao posto de Vila do Conde acompanhado pela mãe porque estava preocupado com uma notícia que vira na televisão. O rapaz contou aos militares que, alguns dias antes, tinha furtado com um amigo um carro que, supostamente, deveria ser utilizado por uns “boxistas do Porto” em qualquer coisa ilegal que ele desconhecia. Agora, via nas notícias que os suspeitos do massacre do Meia Culpa eram, precisamente, uns “boxistas do Porto” — e, por isso, começara a perguntar a si próprio se as duas coisas estariam relacionadas. “Isto interessará alguma coisa?”, perguntou o militar da GNR ao subdiretor da PJ do Porto.
Claro que interessava. Artur Pereira entrou em casa e saiu logo a seguir. Foi direto ao posto da Guarda em Vila do Conde, para falar com o miúdo. Quando chegou, ainda teve que esperar: o rapaz estava a ser ouvido pelo comandante. Seguiu-se meia hora de espera ansiosa. Estava a dar um jogo de futebol em directo, o Marítimo-FC Porto, mas Artur Pereira nem conseguia olhar para a televisão. Estava “em pulgas”. Quando finalmente conseguiu falar com o miúdo, ele repetiu-lhe a história toda. No final, o subdiretor da PJ do Porto perguntou-lhe qual era a marca do carro que eles tinham furtado. Resposta: um Rover 213 SE.
“Alto!”, pensou Artur Pereira. Já não restavam dúvidas: havia mesmo ali qualquer coisa. Aquela informação sobre o carro era importante. Logo no dia do crime, a polícia tinha sido alertada para o aparecimento de um Rover 213 SE de cor verde. O carro estava abandonado numa rua da Lixa, com os vidros abertos, a porta do condutor amolgada e sinais de ter sido alvo de uma ligação direta. Detalhe importante: estava parado a meio caminho entre os locais onde tinham aparecido os dois gorros. A polícia descobriu que o automóvel fora furtado na madrugada de dia 15, numa garagem da Maia, e mandou-o analisar, à procura de impressões digitais. Não encontrou nada — e o Rover ficou ali, ligado ao processo mas sem uma função útil evidente. Até agora. Ao ouvir o depoimento do miúdo, Artur Pereira percebeu que, muito provavelmente, acabara de descobrir o carro usado pelos atacantes do Meia Culpa.
O subdiretor da PJ do Porto agarrou-se ao telefone para começar a chamar mais agentes a Vila do Conde. Eram 22h e o passo seguinte seria encontrar o amigo que convidara Octávio a participar do furto. O miúdo explicou-lhes onde ele costumava parar e foram procurá-lo em vários cafés de Vila do Conde, mas não o encontraram. Restava irem a sua casa. Num automóvel, os homens da PJ estavam a discutir se deviam bater-lhe à porta quando, subitamente, ele apareceu. Apanharam-no imediatamente e levaram-no para dentro do carro. Jaime assumiu o furto do Rover e confirmou que esse tinha sido o carro utilizado no ataque ao Meia Culpa. O roubo fora encomendado por alguém que ele conhecera há algum tempo e a quem devia alguns favores. O processo tinha sido simples: ele e Octávio viram o carro numa garagem da Maia e foram deixá-lo a uma zona das Antas — e não sabia mais nada.
Para a polícia, isto era curto. Quem era esse amigo? Onde é que ele estava? Como é que o podiam encontrar? Jaime mostrou ter imensas dificuldades em identificá-lo — estava aterrorizado com a possibilidade de uma vingança. Artur Pereira tentou acalmá-lo: com eles, estava seguro. Finalmente, surgiram algumas informações. Dois nomes: o homem que lhe pedira para furtar o Rover chamava-se Artur e costumava andar à boleia com um amigo chamado José. Depois, um carro: os dois deslocavam-se num Citroen AX branco com uma característica distintiva — tinha uma bola de reboque na traseira. E por fim um local: talvez pudessem encontrá-lo numa localidade na zona de Esposende.
“Saiu-nos o Totoloto”
Já passava das 23h quando chegaram a Esposende à procura do carro. As ruas estavam desertas: não passava ninguém e não se via em lado nenhum um Citroen AX branco. Não havia nada que pudessem fazer ali. Os agentes da Judiciária levaram os dois miúdos para o Porto, mas, antes, Artur Pereira enviou alguns homens para Amarante. Pediu-lhes que procurassem o carro descrito por Jaime. Deviam seguir um método simples: começar nas imediações do Diamante Negro e ir alargando o círculo aos poucos.
Não foi preciso alargar muito. “Saiu-nos o Totoloto”, lembra hoje Artur Pereira. Bem perto da boite de José Queirós, os agentes da PJ encontraram um Citroen AX. Primeiro detalhe: era branco. Segundo detalhe: tinha uma bola de reboque na traseira. Terceiro detalhe: incrivelmente, tinha uma pequena placa no tablier com o nome do proprietário.
Agora, bastava ter paciência e esperar. O plano inicial era aguardar que Artur saísse da boite e deixá-lo entrar no carro — se fosse detido perto do Diamante Negro, alguém se poderia aperceber e alertar eventuais cúmplices. Surgiu uma complicação: quando finalmente apareceu, Artur não vinha sozinho. Além do amigo, estava acompanhado por duas mulheres. Os agentes da PJ decidiram não fazer nada no imediato. Seguiram o Citroen AX até um bloco de apartamentos, deixaram os quatro entrar e ficaram mais um bocado à espera. Pelas 6h30, Artur e o amigo saíram novamente, agora sem mais ninguém com eles. A polícia avançou e levou Artur para o Porto.
Faltavam agora os autores materiais do crime. Como os três trabalhavam na noite, o mais provável era estarem em casa àquela hora da manhã. Saíram três equipas da sede da PJ com as moradas deles e foram buscá-los um a um.
Por fim, o mandante. O objetivo era detê-lo de forma pacífica. Por isso, o agente João Morgado bateu-lhe simplesmente à porta e convidou-o a ir até ao Porto. Não se passava nada de mais, garantiu-lhe: o objetivo era apenas esclarecer todas estas confusões, desde os tiros à porta do Diamante Negro até aos acontecimentos no Meia Culpa. Para tranquilizar José Queirós, até lhe disse que se lembrava bem de, nos tempos em que estivera em Angola, ouvir falar da boite que José Queirós abrira em Carmona, chamada precisamente Diamante Negro. Desta forma, convenceu-o a sair de casa.
Naquela manhã, o diretor nacional da PJ, Fernando Negrão, chegou à sede da Judiciária no Porto e, ao pisar o amplo hall de entrada do edifício, viu os detidos sentados em cadeiras, algemados — é uma imagem que nunca mais esqueceria. Seguiu em frente e subiu a enorme escadaria que levava ao primeiro andar.
Estava feito. Desde a primeira pista sólida, às 20h da noite anterior, até à última detenção tinham passado pouco mais de 12 horas.
Epílogo
O que lhes aconteceu
O medo de ser reconhecido na rua, aliado às memórias que os bares e os espaços fechados lhe traziam, impediram Gaspar Pinto de abrir o seu “Cantinho Jovem” durante perto de dois meses. Acabou por ser a população de Vila Boa do Bispo – de onde era natural o amigo que morreu na boite e onde estava instalado o café – a convencê-lo a voltar ao negócio. Foi também naquela altura que Gaspar começou um novo trabalho: a importação e venda de carros, num stand em Alpendurada, Marco de Canaveses. Pelo meio, tem-se dedicado aos ralis, sendo já um dos pilotos mais premiados da região norte.
Ao contrário de Gaspar, que apesar de ter ameaçado processar todos os que o tinham considerado suspeito preferiu não avançar com nenhuma queixa, os proprietários do Meia Culpa começaram de imediato a preparar-se para uma batalha judicial, que previam longa. Logo na manhã do dia 16 de abril, por volta das 10h, quando ia para o seu escritório de advogados junto à rotunda da Boavista, no Porto, Adriano Santos ouviu na TSF a notícia de um grande incêndio numa discoteca em Amarante. Ficou consternado, uma vez que também era natural de Amarante. Pouco depois, recebeu um telefonema de Abel Varejão a pedir que representasse a empresa em tribunal. Aos 32 anos, advogado há apenas cinco, Adriano Santos ficou entusiasmado por estar num processo tão aliciante como aquele, em que se iriam discutir indemnizações elevadas e provavelmente penas máximas por homicídio.
Mas o processo revelou ser ainda mais difícil do que o esperado. Logo no início, o advogado teve que emitir comunicados diários a desmentir o que vinha escrito nos jornais. “Passados dois dias, os ‘culpados’ estavam identificados. Seriam os meus clientes, com problemas de tráfico de droga e de lenocínio”, recorda Adriano Santos, destacando que nem António Almeida nem Abel Varejão estavam confortáveis com aquela situação. “O Almeida tinha duas filhas, aquilo que ele queria era preservar a família. Depois, tinha saído de lá queimado, e ainda hoje tem stress pós-traumático. O Abel, por outro lado, era uma pessoa mais calma”, sublinha. Seguiu-se um longo processo que viria a culminar, um ano depois, com a condenação de todos os envolvidos a penas máximas de prisão — exceto no caso dos dois jovens acusados pelo roubo do Rover, que foram condenados a um ano de prisão com pena suspensa.
Além das penas de prisão, os culpados foram condenados ao pagamento de um total de 423 mil contos às famílias das vítimas, aos feridos e aos proprietários do Meia Culpa. A 1 de junho de 1998, dia em que a sentença foi lida pela juíza Maria da Conceição Bucho e pelo juiz António Gama, no tribunal de Penafiel, a sala de audiências estava cheia. O local teve de ser examinado por uma brigada de minas e armadilhas antes da leitura da sentença e a GNR de Penafiel mobilizou cerca de 50 militares para garantirem a segurança do edifício naquele dia.
Com 194 páginas, o documento demorou uma hora e meia a ser lido; no fim, quando as penas foram anunciadas, a multidão que se encontrava no interior do tribunal reagiu com fúria, pedindo a morte dos condenados, obrigando a juíza a mandar evacuar a sala.
Na sentença, o coletivo de juízes concluiu que “Queirós agiu porque, pura e simplesmente, não tolerou a existência, em Amarante, de um estabelecimento semelhante ao seu”, chegando mesmo a afirmar que, “em Portugal e em tempos de paz, não há notícia de tão horrenda matança de seres humanos”. “Todo o desenrolar da operação foi rodeado de uma violência bárbara, delirante, inaudita e gratuita, elucidativa de requintes de malvadez e de uma firme e intensa determinação criminal”, escreveram os juízes.
José Queirós ainda tentou argumentar que não tinha conhecimento de que a porta de emergência ao fundo da boite não estava operacional, pelo que, quando elaborou o plano, sempre considerou que as pessoas pudessem escapar. Mas o tribunal não acreditou, destacando que “a argumentação de Queirós não tem o mínimo suporte no confronto com os factos provados” e que “o facto de a porta não estar a funcionar em nada contribuiu para a morte de 13 pessoas e ferimentos em mais de uma dezena”.
Entre o dia da detenção e a leitura da sentença, os acusados estiveram em prisão preventiva no estabelecimento prisional de Paços de Ferreira. Nesse ano, o país assistiu, em direto na RTP, a um momento insólito: José Queirós casou-se, no interior da prisão, com a sua companheira, Paula, que tinha ficado a gerir o Diamante Negro. O casamento teve direito a todos os formalismos, incluindo um longo vestido de noiva que Paula Queirós levou para a prisão.
O casal viria a separar-se pouco tempo depois, e José Queirós, antes um dos homens mais ricos de Amarante, ficou sem nada. O casamento tinha sido celebrado com comunhão geral de bens e, no momento do divórcio, Paula ficou com todo o património de Queirós, deixando o ex-marido sem capacidade financeira para pagar as indemnizações a que fora condenado. Até hoje, os familiares das vítimas não receberam nada.
Daquela sentença resultaram vários recursos: dos advogados dos condenados, que pediam ao Supremo Tribunal de Justiça que reduzisse as penas; e do próprio Ministério Público, que considerava que a pena de Artur devia ser de apenas 20 anos, por este ter colaborado com a investigação. A decisão do Supremo seria conhecida menos de um ano depois, a 20 de janeiro de 1999: todos os recursos foram negados, exceto um, o relativo à pena de Artur, que foi reduzida para 20 anos.
Quanto a António Almeida, teve de passar três meses no hospital. Durante esse tempo, todos os dias às 7h da manhã era sujeito a tratamentos dolorosos e chegou a receber enxertos de pele na perna e no braço. Enquanto esteve internado, questionou-se diariamente sobre as motivações de quem tinha cometido aquele crime. Quando se veio a provar que tinha sido José Queirós, o dono do Diamante Negro, a mandar pegar fogo ao Meia Culpa, António Almeida ficou incrédulo. “Conhecia o indivíduo, sabia que ele era de mau carácter, que era uma pessoa má, mas nunca pensei que fosse capaz de me ter mandado fazer isto, de ter mandado incendiar a nossa casa”, afirma hoje ao Observador.
O Meia Culpa tornou a abrir alguns meses depois, após um investimento de mais de 15 mil contos por parte dos proprietários. Completamente renovado, tornou-se num dos primeiros espaços noturnos à prova de fogo em Portugal, mas viria a fechar pouco tempo depois devido a imposições de horário do Governo Civil, que obrigava a que o bar fechasse à meia-noite. Já o Diamante Negro, depois da prisão de Queirós e do desaparecimento de Paula, que foi trabalhar para outra cidade, foi alienado em hasta pública, e ainda chegou a pertencer aos donos do Meia Culpa durante algum tempo. “Foi como um exorcismo para eles”, considera o advogado Adriano Santos.
Em 2007, César, Filipe e Ricardo falaram pela primeira vez em público sobre o massacre. Numa entrevista à revista Única, do Expresso, os três executantes admitiram a responsabilidade, mas defenderam que o seu objetivo nunca foi matar ninguém. “Somos culpados do que lá fomos fazer. Ponto final. A questão é que queríamos inutilizar um bar, não queríamos matar 13 pessoas”, afirmou Filipe. César concordou: “As mortes foram a consequência do incêndio. Está no processo, atestado por peritos do Instituto de Medicina Legal, que as pessoas morreram asfixiadas” e, por isso, “a figura típica a aplicar devia ser a de crime de incêndio agravado pelo resultado e não homicídio qualificado”.
Os três executantes, juntamente com José Queirós e com o intermediário, Artur, foram presos no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira. Todos, à exceção de Artur, entraram na prisão para cumprir a pena máxima. Os detidos tiveram a possibilidade de sair após dois terços da pena. Foi o que aconteceu com Artur, que deixou a prisão em outubro de 2010; com Filipe, que saiu em outubro de 2014; e com César, que deixou a prisão em 2015. Ricardo deveria ser o próximo a sair em liberdade. Segundo o Jornal de Notícias, terá sido libertado a 24 de abril.
A 10 de maio, o Tribunal de Execução de Penas do Porto concedeu liberdade condicional a José Queirós, que só cumpriria cinco sextos da pena a 27 de fevereiro de 2018. Em declarações à Agência Lusa antes dessa decisão, o advogado Pedro Miguel Carvalho afirmara que o seu cliente “não é inocente nestes atos, mas nunca mandou ninguém cometer estes crimes em concreto”: “O senhor Queirós reconhece que errou, reconhece que mandatou determinados indivíduos para dar uma lição, mas nunca naquelas circunstâncias e naquelas condições.”
O único absolvido em todo este processo foi Álvaro, o homem que tinha sido chamado apenas para garantir que o Rover não se desligava. O tribunal absolveu-o por considerar que não conhecia o plano para destruir o Meia Culpa. Estava em prisão preventiva desde 27 de novembro do ano anterior.
O ataque ao Meia Culpa foi um dos golpes que acabaram em definitivo com a vida noturna de Amarante, antes tão popular, garante hoje António Almeida. Atualmente a viver e a trabalhar em Espanha, o antigo dono do Meia Culpa só lamenta que tudo tenha acabado desta forma. “Eu podia estar muito bem na vida financeiramente. Na altura dava para todos, o negócio em Amarante dava para todos”, comenta. “Amarante teve vida, era das cidades do norte de Portugal que tinha mais vida, mas perdeu muito com o incêndio no Meia Culpa. Hoje, Amarante é bom para dormir. Já não é nada.”