Aperto de mão firme, tom de voz baixo, discurso pausado. Elif Shafak fala-nos sobre política, feminismo e direitos humanos, mas evita regressar ao episódio de 2006 – quando o livro “A Bastarda de Istambul”, agora traduzido para português, a levou a tribunal sob a acusação de insulto à identidade turca. Caso em que acabou absolvida.

Vamos ao encontro da escritora num hotel do Chiado, às cinco da tarde de uma terça-feira. Elif Shafak chegou a Lisboa de manhã e está há horas numa maratona de entrevistas para promover o polémico livro. Nele aborda uma das feridas da sociedade turca, o genocídio arménio.

Nascida há 43 anos em Estrasburgo, cidade francesa onde o pai estava a terminar o doutoramento, foi criada em Ankara apenas pela mãe e pela avó materna. Mas viajou sempre muito — Espanha, Alemanha, Jordânia, EUA, Inglaterra –, por ser filha de uma diplomata. Doutorou-se em Ciência Política, chegou a dar aulas, mas hoje é escritora a tempo inteiro. Vive entre Londres e Istambul.

Dizem que é a escritora que mais livros vende na Turquia. É verdade?

Os meus livros vendem bem, mas também há muitas cópias piratas, por isso nunca sabemos os números certos. Serei uma das mais lidas, sim.

Como é que consegue ter tantos seguidores se critica tanto a sociedade turca?

A Turquia é uma sociedade muito polarizada, cada pessoa com que se fala tem uma opinião diferente. Há quem diga que eu deveria criticar ainda mais, outros dizem que critico demasiado. Há um mês, um jornal pró-governamental publicou artigos a acusar-me de fazer parte de um “lobby” internacional de literatura. Dizem que esse “lobby” escolhe certos escritores em certos países para os usar como críticos dos regimes.

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Como é que comenta?

A acusação é perfeitamente irracional. Quem critica é sempre acusado de falta de patriotismo e de ser um instrumento do Ocidente, já estou habituada. Tento apaziguar as críticas, porque toda a gente na Turquia anda muito zangada…. Há muitas fações e não quero pertencer a nenhuma. Se o governo faz coisas corretas, devo poder elogiar, tal como faço com a oposição. Não me sinto próxima de ideologias, prefiro a minha individualidade.

Não toma posição na divisão clássica da política turca, entre kemalistas e conservadores?

Não sou nem uma coisa nem outra. Sou uma democrata, mas prefiro que me consideram acima de tudo uma escritora.

É por ser estrangeirada que se sente livre para criticar a sociedade turca?

Viajar muito teve efeitos na minha personalidade e na minha escrita, sem dúvida. Sempre me senti dentro e fora. Sempre estive suficientemente próxima para observar e suficientemente distante para poder analisar. É uma posição muito confortável para um artista, para uma escritora, mas é também uma posição isolada, na qual me sinto muito sozinha.

Porquê?

Porque não pertenço a nenhum grupo, não pertenço a nenhuma identidade coletiva da Turquia. E não gostaria que nenhuma fação ganhasse muito poder, porque o poder inebria. Sempre quis ser uma pessoa individual, não quero outra pertença que não seja essa. Por ironia, ao escolher esta posição acabo por conseguir leitores de todas as origens e contextos. Nesta solidão, tenho muitos companheiros. Tenho leitoras que usam lenço islâmico, conservadores, liberais, esquerdistas, feministas, curdos, turcos…

Quais são, no seu entender, os principais problemas da Turquia?

Há muitos. O autoritarismo é um deles. Não temos uma adequada separação de poderes. A liberdade de expressão e o pluralismo nos média são muito importantes para uma democracia madura. Na Turquia não temos evoluído nessas matérias, até temos recuado na liberdade de expressão e na liberdade de imprensa.

Os jornais, por exemplo, não dão voz a diferentes correntes de opinião?

Há alguns anos davam mais, hoje temos dezenas de jornalistas que perderam o trabalho, que foram obrigados a mudar de funções, outros aguardam julgamento ou estão presos. Toda a gente sabe que aquilo que se escreve, se não for favorável ao poder, pode trazer problemas.

Já teve problemas por dizer este tipo de coisas em entrevistas?

Acho que o intelectuais e os escritores de qualquer país devem poder falar contra aquilo que está mal.  Não quer dizer que não se goste do nosso país, pelo contrário, é por se gostar que queremos que ele seja melhor. Acima de tudo, entendo que os escritores da Turquia não podem dar-se ao luxo de ser apolíticos. O mesmo é verdade para escritores do Paquistão, do Egito ou da Nigéria.

Como têm tempo de antena, os intelectuais devem sentir-se obrigados a falar, é isso?

Não é uma obrigação, mas se nos preocupamos com as pessoas, com o passado, o presente, a justiça e a injustiça, não podemos dizer que a política não nos interessa, que o importante é a arte. A política faz parte da vida, embora a criatividade e arte da narrativa sejam o que mais conta para mim. Nos meus livros há temas políticos e há muitas perguntas. Interessa-me mais fazer perguntas do que dar respostas. Devemos poder fazer perguntas de forma livre, a resposta depende de cada leitor.

Fala muitas vezes nos direitos das mulheres. Considera-se feminista?

Diria que sou uma pós-feminista. Tenho enorme respeito pelo feminismo, mas estou interessada na evolução. Quero pegar na herança do feminismo e renová-la.

Porque é que é necessário renovar o feminismo?

Porque temos, neste novo século, questões que o feminismo dos séculos XIX e XX não entendia ou não abordava. É normal. O feminismo fez um excelente trabalho a aprofundar assuntos que dizem respeito às mulheres, mas não fez um excelente trabalho em termos de apoio a gays, lésbicas, bissexuais e transexuais ou no entendimento sobre a construção da masculinidade. O feminismo não teve em conta as diferenças entre mulheres de etnias ou contextos culturais diversos.

Algumas ideias feministas parecem ter aprofundado a distância entre homens e mulheres, e ao mesmo tempo deixaram as mulheres insatisfeitas com o seu papel social. Concorda?

Entendo o argumento. As mulheres precisam também de autocrítica, precisamos de desassossegar o feminismo, de o aprofundar, porque as mulheres também têm tido o seu papel no aprofundamento do sistema patriarcal, as mulheres podem ser a suas piores inimigas, elas também jogam o jogo. Infelizmente, em sociedades tradicionais, as mulheres que se tornam matriarcas das famílias acabam por oprimir as mais novas, especialmente as noras. Precisamos de quebrar estes padrões. As mulheres criam os filhos como pequenos sultões da família. Na Turquia muitas mães tratam os filhos de forma privilegiada em relação às filhas. Quem é que ensina isto aos homens? As mães, sobretudo.

Há pouco referiu-se ao relativismo cultural. Onde é que começa  e acaba? Devemos criticar o uso de burca no Irão ou o facto de as mulheres na Arábia Saudita não poderem ter carta de condução?

Não devemos escolher os extremos, são sempre perigosos. O relativismo cultural extremo permite dizer que a excisão feminina pode ser praticada. Não pode. Se formos para outro extremo, acabamos a dizer que todas as pessoas devem vestir-se da mesma forma. E não devem. Onde está o meio? É importante defender valores universais que vão ao encontro das pessoas. Esses valores são os direitos humanos, os direitos das minorias, os direitos das mulheres, os direitos dos homossexuais, a liberdade de expressão, a liberdade de imaginação. Parece-me errado que as mulheres da Arábia Saudita não possam conduzir.

Porque é que fala em liberdade de imaginação?

De uma mulher escritora que vem do mundo muçulmano espera-se que escreva sobre mulheres muçulmanas. Ou seja, reduz-se a imaginação do autor à sua identidade. Não gosto disso. Quero escrever sobre tudo, desde que me sinta próxima dos temas.

O problema que teve em tribunal, em 2006, por ofensas à identidade turca, foi um problema, claro, mas será que também lhe permitiu tornar-se mais conhecida?

Quando o livro saiu na Turquia eu já era bastante conhecida. De livro para livro, o número de leitores tem aumentado. Mas com este caso, tive maior repercussão internacional. Tive muitas reações negativas, mas também senti muita afeição do público.