Corria agosto de 2013 quando o condutor passou naquela portagem. Se não tivesse deixado passar o prazo de cinco dias, a contar 48 horas depois, teria pagado 24 euros. Como não o fez, um ano e meio depois apareceu-lhe uma coima de 1.234 euros para pagar, acrescida de 76,50 euros de custos. E não foi o único. Desde novembro de 2012, quando a Autoridade Tributária começou a aplicar coimas a quem não pagar as portagens instaladas nas antigas SCUT, que os dramas se têm multiplicado. Há quem não possa concorrer a um concurso público ou receber o reembolso do IRS porque tem uma dívida às Finanças. E há empresas insolventes com milhares de euros para pagar em portagens.
Algumas situações que, nas palavras do presidente da Associação Portuguesa de Direito do Consumo (APDT), passavam ao lado dos deputados das bancadas parlamentares do PSD, PS e Bloco de Esquerda que o receberam na última sexta-feira. “Eles não tinham noção da gravidade da situação”, disse Mário Frota ao Observador. Nas mãos levou um conjunto de propostas que passam por suspender o atual sistema de pagamento de portagens das antigas SCUT e afastar do processo a Autoridade Tributária Aduaneira. A ideia é acabar com um sistema que consideram completamente “rudimentar” e que traz “consequências desastrosas na esfera de cada um”, diz Mário Frota.
Antes de se deslocar à Assembleia da República, Mário Frota pediu a um advogado que elaborasse uma ação popular de forma a por termo a uma situação que considera “gritante”. Mas não escolheu ao acaso. A APDT quis que fosse Pedro Marinho Falcão a redigir o documento – o advogado que conseguiu que o tribunal administrativo de Mirandela lhe desse razão. Contactado pelo Observador, Pedro Marinho Falcão, explicou que este sistema de pagamento de portagens tem trazido vários “inconvenientes”.
“Uma pessoa singular que não paga a portagem e paga, depois, uma coima dez vezes superior. E uma pessoa coletiva paga 20 vezes mais. Estas coimas chegam a ter custos administrativos de 300 euros”, diz o advogado.
Significa isto, explica, “que a lei estabelece uma desproporcionalidade que é inconstitucional”. Consequentemente, “há cidadãos com casas e ordenados penhorados. Empresas perto da insolvência por que valor da coima é exageradíssimo”, disse o advogado que, no seu escritório no Porto, já recebeu centenas de casos idênticos.
Em Lisboa, a advogada Fabiana Pereira não tem recebido tantos casos, mas os que lhe chegaram são igualmente dramáticos. Nalguns, segundo disse ao Observador, os condutores nem sequer são notificados pelas concessionárias, são notificados diretamente pelas Finanças.
“Ou seja, empresas privadas usam os mecanismos do estado para cobrar este tipo de valores e estão em vantagem em relação a outras empresas”, acusa Fabiana Pereira.
Na havendo notificação por parte da concessionária não é, sequer, dada oportunidade ao condutor de se defender e indicar se foi, de facto, ele que passou naquela portagem. Por outro lado, há notificações que nem sequer dão informações precisas da hora e do local da passagem, não podendo o condutor confirmar se, de facto, a coima se refere a si. Entretanto, explica a advogada, o processo segue, depois, para as finanças que espoleta dois processos: um de contraordenação (por falta de pagamento da portagem), outro de execução fiscal (que comporta o custo inicial da portagem, mais os custos administrativos como fotocópias e cartas).
“Se apanhamos o processo numa fase inicial, basta uma reclamação para as Finanças, mas há casos que já só é possível recorrer ao tribunal e pagar custas da justiça. São a maior parte”, disse a advogada.
Os valores sobem ainda mais pelo facto de cada passagem numa portagem significar um processo e, por isso, novos custos administrativos e novas custas judiciais. Daqui haver condutores com dívidas de milhares de euros às costas. Além destes valores, e isso é também contestado na ação popular entregue no tribunal administrativo do Porto a 6 de fevereiro, existem os valores ditos de referência das portagens – que em termos de distâncias não coincidem de SCUT para SCUT.
Mesmo os mais atentos não estão livres de uma multa. É que o sistema de pagamento não assume imediatamente a dívida da portagem. A lei diz que assume só a partir das 00h00 do dia seguinte, os Correios recomendam que conte 48 horas. Se não, dá-se o caso de ter uma viagem de ida para pagar e não ter mais valores em dívida, porque a viagem de regresso ainda não entrou no sistema. Por outro lado, quando entra no sistema e está já fora de prazo de pagamento via multibanco ou CTT, também nada pode fazer. É obrigado a esperar pela notificação que já lhe traz mais custos.
“Gerando-se situações incomportáveis para utilizadores diários das rodovias que se veem confrontados com a falácia de todo o sistema, podendo estar a liquidar passagens posteriores quando passagens anteriores podem não estar ainda liquidadas”, lê-se na ação popular.
Todos estes detalhes foram já denunciados à comissão europeia, para que se pronuncie sobre a legalidade deste sistema de pagamento de portagens. O Observador enviou um conjunto de questões a uma concessionária, à Ascendi, e ainda não obteve qualquer resposta.
O que diz a ação popular
– Apesar de existirem leis a estipularem quais são as SCUT e quais os valores das portagens, não foram criados “mecanismos” que permitam a cobrança manual desses valores. E não existe qualquer informação ao condutor de como deve pagar.
– A falta de pagamento da portagem origina uma multa passada pelas Finanças com custos e encargos associados.
– Os valores estipulados violam os princípios da igualdade, legalidade e proporcionalidade previstos na Constituição. Exemplo disso é que se cobra o mesmo valor para distâncias diferentes.
– Todas as alternativas de cobrança, como é o caso da aquisição de um dispositivo eletrónico, comportam “encargos excessivos” para o consumidor. Mesmo o pós-pagamento implica o pagamento de uma taxa administrativa. E até aqui há “ilegalidade”, por haver “dupla tributação”: o IVA relativo à portagem e o IVA relativo às taxas administrativas
– As taxas administrativas deviam ser referentes a franquias postais ou comunicações telefónicas, por exemplo, mas a entidade administrativa faz duplicar esses valores tantas vezes quantas forem as passagens verificadas. Por exemplo, uma notificação refere-se à obrigação de pagamento de portagens em oito pórticos, logo o custo administrativo é multiplicado por oito. Mas é só uma notificação.
– Quanto ao processo de contraordenação, a lei prevê que a coima não seja inferior a 10 vezes o valor da portagem não paga, “podendo uma taxa de portagem de valor diminuto ascender a valores exorbitantes”.
– O próprio Tribunal Constitucional tem reconhecido liberdade ao legislador na fixação de montantes de coimas ressalvando “a flagrante desproporcionalidade”.
– Não devem ser usados mecanismos do Estado para cobrar dívidas às concessionárias.
– Há pequenas e médias empresas e particulares que não estão a conseguir pagar estas coimas.
– Conclui-se pelo pedido da declaração da ilegalidade e a consequente nulidade das normas que fixaram a introdução de portagens nas SCUT.