Não haverá uma voz no fado mais homenageada do que Amália Rodrigues. Ainda assim, a chegada às lojas do disco Amália – As Vozes do Fado, esta sexta-feira, dificilmente fará alguém revirar os olhos e suspirar: “Mais uma?”. Ana Moura, Carminho, António Zambujo, Camané, Gisela João e Ricardo Ribeiro juntaram-se e dali nasceram 12 interpretações da mulher que deu de beber à dor. Celeste Rodrigues, irmã de Amália, fecha o álbum com chave de ouro.

Nada foi deixado ao caso nesta homenagem com cabeça, tronco e membros, idealizada pelo realizador luso-francês Ruben Alves. À cabeça surge logo a capa do disco, uma fotografia a partir do rosto da fadista esculpido pelo artista Vhils em calçada portuguesa, com a contribuição da Escola de Calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa. A obra, que nasceu de um convite de Ruben Alves, mora, desde o dia 2 de julho, numa pequena praça sem nome, que fica entre a Rua de São Tomé e a Calçada do Menino de Deus, em Alfama.

“Foi com a voz de Amália que eu percebi o que era ser português, o meu país de origem”, disse o realizador do filme “A Gaiola Dourada”, na inauguração. Aceitou o desafio da Universal Music de França e começou a reunir os membros, ou seja, os fadistas que mais gostava de ouvir.

Com a cabeça e os membros, ficou a faltar o tronco. Ou seja, a seleção das canções. Esse trabalho de direção criativa também foi feito por Ruben Alves. “Eu pensei muito nas músicas que cada um deles podia cantar e propus-lhes”, contou agora ao Observador. A primeira canção de Amália – As Vozes do Fado é “Com que Voz”, editada originalmente em 1970. 14 anos antes de Carminho nascer.

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O realizador selecionou as músicas “não por serem sucessos”, mas pelo que lhe transmitiam. A Ricardo Ribeiro pediu-lhe que cantasse a música que mais admira do repertório amaliano, “Grito”. “Foi ela que escreveu o poema e está lá tudo, sente-se uma vida inteira que passou”, disse.

Camané canta “Abandono”, Ana Moura tem “Maldição”, António Zambujo dá nova roupagem a “Estranha Forma de Vida” e Gisela João atira-se destemida a “Medo”. Há também “Instrumental”, momento a sós entre Ângelo Freire e a guitarra portuguesa.

“Quem dorme à noite comigo
É meu segredo,
Mas se insistirem, lhes digo,
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo”

Ouça 90 segundos da canção “Medo“:


Quando Ruben endereçou o convite aos fadistas, houve uma reação transversal. “Todos tinham medo de homenagear a Amália. ‘Amália não se canta’. Como assim? Tem de se cantar!”, recordou.

A somar aos fadistas portugueses há ainda combinações improváveis à primeira vista. Os sons quentes da cabo-verdiana Mayra Andrade fundem-se com António Zambujo na canção “Não Sejas Francesa”. O angolano Bonga faz parelha com Ana Moura para darem vida à alegre “Valentim”. Ricardo Ribeiro une-se ao flamenco do espanhol Javier Limón em “Maria La Portuguesa”, que Carlos Cano compôs para Amália.

A Carminho coube-lhe ter a seu lado Caetano Veloso, nome maior da música popular brasileira, e que no passado já arriscou cantar fados de Amália. Os dois interpretaram “Naufrágio”, com poema de Cecília Meireles e música de Alain Oulman.

Ouça 90 segundos da canção “Naufrágio”:


Cabeça, tronco e membros. E alma. Amália – As Vozes do Fado é uma homenagem feita de canções que têm sentimento e voz própria, mesmo com a forma e a identidade com que a fadista vincou tudo o que cantou.

Amália escreveu “Faz-me Pena”, mas nunca chegou a gravar este fado de despedida, que Ruben Alves escolheu para encerrar o disco. Para cantar o poema trágico convidou a fadista Celeste Rodrigues, irmã mais nova de Amália, uma antítese da irmã no que ao fatalismo diz respeito. “Quando pedi à Celeste que a cantasse, ela questionou a escolha. ‘Porquê uma música tão triste? Eu quero viver!'”, recordou o realizador.

Mas é mesmo pela voz de Celeste Rodrigues que se faz a despedida de um projeto que fazia falta.

“Adeus que chegou a hora
Há muito a venho esperando
E se por mim ninguém chora
Faz-me pena e vou chorando
Já vou embora
E se por mim ninguém chora
Faz-me pena e vou chorando”

Ouça 90 segundos da canção “Faz-me Pena”:

Depois do disco, Ruben Alves já tem novo projeto dentro do fado. “Estou a gravar um documentário sobre o fado, mas de forma mais alargada, incluindo como as novas gerações pegaram na canção”, disse. O realizador está neste momento a filmar com os fadistas e gente ligada ao fado. O documentário deverá estar pronto no final do ano.