Título: As Caldas de Bordalo
Autora: Isabel Castanheira
Editor: Arranha-Céus
Páginas: 317
Preço: 45 €
ISBN: 978-989-99141-4-8

capa livro Caldas de Bordalob

A recente colocação de réplicas em grande porte de algumas das peças cerâmicas mais carismáticas de Rafael Bordalo Pinheiro em pontos estratégicos do centro histórico das Caldas da Rainha — uma iniciativa a elogiar, em todos os aspectos — vem de novo chamar a nossa atenção para “o caso” da Fábrica de Faianças que, após conveniente périplo europeu de aprendizagem e actualização técnica, o incansável desenhador criou em 1883-84 nos arredores daquela localidade, vendo os seus trabalhos apreciados pelos nossos reis e sucessivamente premiados a oiro em grandes exposições internacionais. Com a aparente facilidade de um risco, elevou o ceramista como profissional e mestre de ofício a um plano nunca antes atingido no país. Há poucos dias, Querubim Lapa, 90, reconhecia a influência técnica de Bordalo Pinheiro nos seus canjirões antropomórficos de 1956.

Em 2005, ano do centenário da morte de Rafael, o Museu de Cerâmica daquela cidade procurou reanimar essa tão singular herança artística, promovendo exposições e a edição de pequenas réplicas. E depois que a Visabeira se empenhou na salvaguarda da fábrica e dos seus moldes e chamou a si uma bem sucedida moda revivalista das cerâmicas bordalianas — atiçando até a criação contemporânea, inclusive a brasileira, a partir de motivos e protótipos originais —, o foco centrou-se ainda mais na figura inconfundível deste irmão de Columbano, que teve o seu primeiro estudo de algum relevo apenas em 1978: o livro de José Augusto França Rafael Bordalo Pinheiro, o Português Tal e Qual — de resto, diga-se, reimpresso ipsis verbis quase três décadas depois, em 2007.

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E embora o artista tenha sido abordado sob tantas perspectivas quantas a poliformia dos seus talentos e criações — foram-lhe dedicados, por exemplo, Faianças de Bordalo (Irisalva Moita e José Meco, 1985), O Teatro n’A Paródia de Rafael Bordalo Pinheiro (Virgínia Lopes, 2005), Caricatura em Portugal: Rafael Bordalo Pinheiro, pai do Zé Povinho (João Medina, 2008), Ópera e caricatura no Teatro de São Carlos (Luzia Rocha, 2010) —, a verdade é que, com Bordalo nas Caldas de Isabel Castanheira (2014), ele é agora pela primeira vez reivindicado como um “artista caldense” (sic), em louvor do impulso que deu à indústria local mais relevante, que seu filho Manuel Gustavo aliás prosseguiu, de 1905 a 1920. Todavia, o seu interesse artístico por barro não foi tardio: ao Mundo, Rafael reconheceu em 1903 que se habituou “a modelar” em casa do pai.

Este não é apenas um livro amoroso que tem como base um punhado de crónicas impressas desde 2005 num também afamado jornal regional, a Gazeta das Caldas. É ainda obra concebida por Miguel Macedo, um designer formado coincidentemente na reputada escola de artes gráficas daquela cidade, e que, com humor próximo do homenageado, realizou uma paginação com especial requinte técnico-visual, tirando máximo partido de dezenas e dezenas de desenhos de Rafael, extraídos aos magazines que ele dirigiu e produziu quase a solo. E como se não bastasse, e caso muito raro entre nós (finalmente, um editor que sabe e escreve), é o próprio publisher da Arranha-Céus — a variante invertida da editora Abysmo —, João Paulo Cotrim, que dirigiu a Bedeteca de Lisboa, organizou uma Fotobiografia de Rafael para o Museu Bordalo Pinheiro (2005, 236 pp.), e expôs obras dele pelo menos duas vezes, a deixar-nos nas páginas de abertura deste livro palavras de grande louvor e afecto pelo redactor-desenhador de O António Maria, A paródia, A berlinda, Os pontos nos is, e muito mais, sem dúvida um génio fora de série no nosso meio artístico de finais do século XIX, cuja complexa e extensa trama de referentes estético-culturais resiste ainda a ser captada inteiramente.

Isabel Castanheira organizou o seu escrito folhetinesco como “viagem pedagógica” à presença de Rafael Bordalo nas Caldas da Rainha, e também das Caldas na sua obra gráfica — com ele dentro, como quase sempre fez —, desde a inauguração do caminho de ferro em 1887, em que ele aparece a lançar foguetes ao lado dos notáveis locais numa folha de Os pontos nos is (p. 27), até ao projecto de uma hilariante “estátua equestre ao conselheiro Pim[entel]”, administrador do hospital termal (p. 251). Entra na sede da Associação Comercial e Industrial que Rafael ajudou a fundar e presidiu em 1902, para nos mostrar o quadro de Taraio que retrata o artista rodeado das suas figuras cerâmicas, vai ao belo parque da cidade ver o busto dele feito por Teixeira Lopes em 1927, passa pela antiga sede do município e pela antiga fábrica Pano Americano para apontar os medalhões com a efígie dele, visita o hotel Madrid onde ele pernoitava antes de construir residência própria, passa pela Rua Nova, que cedeu o nome a Rafael Bordalo Pinheiro (onde há placa toponómica idêntica à do largo com o seu nome em Lisboa), e desce ao “cemitério velho” para testemunhar as sepulturas de vários familiares do artista, uma irmã e três sobrinhos.

Mas no seu passeio pela cidade a cicerone esclarecida também vai apontando nas fachadas dos edifícios os azulejos produzidos na fábrica bordaliana (inclusive as do bairro operário), o algeroz com andorinhas numa praça, os azulejos na estação ferroviária, a pia baptismal da igreja de Nossa Senhora do Pópulo que Rafael transpôs para cerâmica, os azulejos de gafanhoto no fontanário do parque de merendas, ou no coreto, a monumental Paixão de Cristo no Museu José Malhoa, ou os azulejos pé de galo na escola primária, recriados pelo mestre para o pavilhão português para a exposição universal de Paris, em 1889.

Também não esquece — nem podia esquecer — quão determinante foi Ramalho Ortigão para propagandear o trabalho da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, curiosamente com um artigo inicialmente publicado no Rio de Janeiro, ou o parque das cerâmicas e loja apensa às oficinas fabris e à residência do artista. Um depósito das loiças seria aberto na Avenida da Liberdade, em Lisboa, tendo sido visitado pela família real e comentado pelo jornalista Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias.

O empreendimento industrial nas Caldas da Rainha não foi um mar de rosas económico (longe disso), mas sobressai claramente na obra de Bordalo Pinheiro pela filiação ao movimento estético de William Morris e pelo seu empenho na formação técnica do operariado (em linha, de resto, com o que sua irmã Maria Augusta fez com as bordadeiras de bilros). Ele não quis apenas transpor para o barro a galeria de figuras humanas e animais que animavam a sua obra litográfica, ou divertir-se construindo jarras monumentais que “desafiavam a gravidade”. Algo mais teria de estar em jogo numa actividade que o ocupou durante duas décadas e até à morte, como demonstra a sua precoce cumplicidade com o rei-consorte D. Fernando II, “o rei-artista”, aliás um dos principais subscritores para a construção da fábrica caldense.

Bordalo, que a si próprio se retratou nas mais diversas circunstâncias nos “palcos de papel” a que se refere Cotrim, só modelou em barro um único auto-retrato, e em miniatura (aparece sentado numa asa de uma jarra de 40 cm de altura, criada para homenagear o seu médico Feijão, e que este livro inesperadamente não refere). Mas deixou-nos sem dúvida um catálogo de pequenas obras de arte decorativa que encantam ainda hoje, e conservam entre nós artefactos desse artista invulgar, amigo certo dos animais e implacável crítico dos humanos.