A Amazon (sim, a Amazon; agora é também produtora de filmes) lançou este ano uma celebrada versão cinematográfica do romance The Man in the High Castle de Philip K. Dick, em dez episódios para televisão (mas o que é hoje “para televisão” – fora a “caixa” – na era do cord cutting – a renúncia aos canais “generalistas” ou temáticos, hertzianos, via satélite ou por cabo, em favor da compra direta de “conteúdos” à carta?)

Philip K. Dick é um escritor que alcançou já, entre outras, a glória de uma sigla imediatamente reconhecível: PKD (supõe-se, pelo menos, que é o que supõe o editor de uma das reedições recentes de alguns dos seus livros, em que a sigla domina as capas). PKD é há muito o que se chama um escritor “de culto”: fervorosos e, até, ilustres admiradores mas pouco reconhecimento geral e financeiro em vida. Mais ou menos ignorado até morrer fora dos círculos especializados da mal chamada “ficção científica” (em que recebeu vários prémios), chegou-lhe depois de morto aquilo a que Jonathan Lethem, chamou, num artigo de 2002 na revista Bookforum, a sua “recente e epidémica canonização”. Jonathan Lethem é um dos seus fãs número um (passe a contradição; mas percebem com certeza o que estou a dizer). Foi este galardoado escritor, o autor de Motherless Brooklyn, que apresentou também uns anos depois a edição de nove dos seus romances em dois volumes da prestigiosa “Library of America” (Novels of the sixties e Five novels, publicados em 2007 e 2008).

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Philip K. Dick viveu entre 1928 e 1982 – uma capicua

PKD viveu no século XX entre os anos 28 e 82 (uma capicua). Teve a vida típica de um “escritor maldito”. “Forçado das letras” – escreveu muito; muito do que escreveu e, sobretudo, publicou foi porque “precisava do dinheiro”, que nunca abundou. À sua morte tinham saído mais de três dezenas de livros seus, romances, contos e diversas colaborações. Em vida, drogas, loucura e morte – como dizia o cartaz de tempos que já lá vão; aflitivos – mesmo aflitivos – apertos financeiros, paranóia, alucinações; a sombra, sempre a pairar, de um precoce diagnóstico de esquizofrenia. Miséria, atribulações sentimentais e familiares (cinco casamentos), uma lista infindável de amigos mortos “prematuramente”.

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Teve em 1974 o seu “dia triunfal”: uma experiência “mística” que o marcou para sempre. Nesse mesmo ano foi também recebido como um herói em França, onde teve a sua “interessante experiência de ser famoso” – PDK dixit. (Ainda se fará o balanço do lustre intelectual, da atenção e do respeito que muita da cultura “popular” americana deve aos franceses: são incontáveis os cineastas e escritores americanos “marginais” que bem poderiam dizer, como o realizador cego do Hollywood Ending de Woody Allen, “Thank God for the French”, “graças a Deus que há franceses”).

PKD tem herdeiros hoje prósperos graças, sobretudo, à venda de direitos de autor de vários dos seus romances ou contos para adaptação ao cinema ou à televisão, direitos que foram de quase zero até perto do infinito, o modesto mas calmante infinito de alguns milhões de dólares. Em 1982, “Blade Runner” (“Perigo Iminente”), de Ridley Scott, foi a primeira, e brilhante, versão cinematográfica de uma obra sua e foi ela que acabou por trazê-lo à ribalta “global” que o eludira até então. Dick ainda acompanhou a preparação desse filme mas já não assistiu à estreia. Outro “fã número um” de PKD, Lawrence Sutin, conta bem e sucintamente a história da sua vida e da sua obra na introdução a The Shifting Realities of Philip K. Dick, Selected Literary and Philosophical Writings, uma antologia de 1995.

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O livro custa 17,76 euros

The Man in the High Castle é um romance de “história alternativa”: retrata um mundo em que a Alemanha e o Japão ganharam a Segunda Guerra Mundial e partilham como potências ocupantes o que antes eram os Estados Unidos da América.

É costume os outros mundos futuros, passados ou sem tempo, imaginados pela maior parte dos escritores de ficção científica não serem propriamente idílicos; são mesmo muito frequentemente aquilo a que se dá o nome de distopias, visões terríveis, o contrário do que se entende normalmente por utopias, que são modelos positivos, pelo menos na confiada visão dos autores (duvido que alguém gostasse de viver na República de Platão ou na Ilha da Utopia de São Tomás More, criador do termo e mártir católico da tolerância protestante). As distopias têm quase sempre, além do seu aspeto meramente lúdico, um intuito pedagógico presente, a partir de experiências passadas ou presentes projetadas nas suas facetas mais aterradoras numa perspetiva cautelar. “Se acham este mundo mau, deviam ver alguns dos outros”, como escreveu PKD (numa palestra de 1977).

E se…

A ficção da “história alternativa”, do “e se …”, partilha normalmente esse pessimismo; proliferou em anos mais recentes na “ficção científica” – mas não só – atraindo mesmo gente que não é do ramo como Robert Harris (Fatherland, a Alemanha torna a ganhar a guerra), Len Deighton (SS-GB, a Alemanha ganhou a guerra e ocupou a Grã-Bretanha), ou até, upa, upa, Philip Roth em The Plot Against America (Franklin D. Roosevelt perde as eleições para o germanófilo – sempre a Alemanha! – Charles Lindbergh), para não falar de projetos aparentados como o da Submissão, de Michel Houellebecq, mais do domínio da futurologia imediata.

Um dos pioneiros do género no século XX foi outro escritor de ficção científica, Ward Moore, em Bring The Jubilee, de 1953 (o Sul venceu na Guerra Civil americana). É um dos poucos livros de “fc” que ainda guardo. No domínio dos historiadores profissionais o exercício tem tentado muita gente e recebe o nome mais severo de história contra-factual ou “virtual”, como lhe chama, por exemplo, Niall Ferguson, organizador de uma colectânea com esse mesmo nome: Virtual History. (Em Portugal, já agora, num registo humorístico, Campos Monteiro fez nos anos 20 do século passado a sua perninha de “história alternativa” em Saúde e Fraternidade, invenção satírica de uma suposta implantação da República Soviética em Portugal e subsequente revolta e restauração da Monarquia, contada por imaginários historiadores dos anos 90; e mais recentemente “Diogo de Andrade” romanceou em Alvorada Desfeita (2009), com razoável verosimilhança histórica, a hipótese de um 25 de Abril que falha. São curiosidades.)

[Veja aqui outros livros de História virtual]

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The Man in the High Castle, de 1962, é considerado um dos melhores romances de um autor cuja obra é reconhecidamente irregular e nem sempre de grande distinção literária. Mas que gira sempre em torno de grandes questões do foro filosófico e especulativo: quem somos, de onde vimos, para onde vamos, o que é a verdadeira realidade, até que ponto é de fiar a nossa consciência, quantas possíveis realidades podem existir simultaneamente num perene presente, ou a fatalidade de dimensões trágicas da mortalidade dos homens (questão “transposta” para os falsos humanos de “Blade Runner”), etc.

Reconhecido leitor e intérprete dos gnósticos, PKD descreveu-se como “a fictionalizing philosopher, not a novelist; my novel & history-writing ability is employed as a means to formulate my perception“. Um filósofo que ficciona: não é por acaso que em The Philosopher at the End of the Universe, um livro de Mark Rowlands que tem como programa “a filosofia explicada através dos filmes de ficção científica”, dos nove filmes comentados três são adaptações de obras de PKD: “Blade Runner”, é claro (“a morte e o sentido da vida”), “Total Recall” (“o problema da identidade pessoal”) e “Relatório Minoritário” (“o problema do livre arbítrio”). Para Rowlands, professor de filosofia em Miami, o cinema é, neste aspeto, “pelo menos tão bom como os livros ou mesmo melhor porque muito menos abstracto” (cito livremente). Rowlands diz que toda a ficção científica que leu nunca a leu “pela escrita mas pelas ideias”. Hélas, é o que faz a grandeza e servidão do género, em geral, na opinião deste seu diletante leitor.

Muitos dos livros de Philip K. Dick foram traduzidos e publicados em Portugal, alguns em mais do que uma versão (edições de Galeria Panorama e Panorama, Vega, Europa-América, Presença … — há 41 referências bibliográficas de PKD no catálogo da Biblioteca Nacional). A mais recente edição de O homem do castelo alto foi da Saída de Emergência em 2010, com uma reedição já em 2015. A nova tradução é de David Soares (um autor, ensaísta e tradutor de mérito e créditos firmados na literatura fantástica e na BD). Esta edição inclui um ensaio sobre o autor e a obra da autoria de Nuno Rogeiro. Nos tristes anos 80 portugueses, foi Nuno Rogeiro, de resto, um dos primeiros a dar importância a este autor, na revista Futuro Presente, com o ensaio “As Ruínas Espelhadas – Notas sobre a ficção de Philip K. Dick”.

Cinco filmes (e os outros)

“The Man in the High Castle” (2015)

Nos quase vinte anos que foram de 1982, o ano de “Blade Runner” (“Perigo Iminente”), a 2000 houve três adaptações ao cinema de outras tantas obras de Philip K. Dick, se não contarmos com uma confidencial versão francesa de um dos romances do autor que não é de ficção científica: “Confessions of a Crap Artist” (“Confessions d’un barjo”, dirigido por Jérôme Boivin, 1992). O século XXI tem sido mais prolífico mas nem sempre mais generoso artisticamente. Nestes 15 anos já se aproxima da dezena o número dos filmes baseados na ficção científica de PDK, a acabar nesta versão cinematográfica em dez capítulos de uma das suas obras mais famosas e de maior nomeada: imaginem uma América ocupada por alemães e japoneses vencedores da Segunda Guerra Mundial e onde alguém está a escrever uma “história alternativa” subversiva em que os Aliados ganharam. A sua produção é uma iniciativa da Amazon, lançada num projecto que nos faz regressar aos bons tempos da “integração vertical” que em boa parte fez do studio system de Hollywood o que ele foi, até ser desmantelado pela aplicação das leis anti-trust no pós-guerra. Um dos produtores desta série é Ridley Scott, o realizador que introduziu PKD na história do cinema com “Perigo Iminente”. Só nos dizem bem desta série.

“O Homem Duplo” (“A Scanner Darkly”, 2006)

Em 2002 saiu “Impostor”, de Gary Fleder (do conto “Impostor”), e também “Relatório Minoritário” (“Minority Report”, do conto do mesmo nome; realizado por Steven Spielberg e com Tom Cruise foi provavelmente o maior êxito comercial desta coleção); em 2003, “Pago para esquecer” (“Paycheck”, do conto idem, realizado por John Woo, o realizador de Hong Kong transplantado para os Estados Unidos); em 2007, “Next – Sem alternativa” (“Next”, do sempre frustrante Lee Tamahori, baseado em “The Golden Man”); em 2011, “Os agentes do destino” (“The Adjustment Bureau”, baseado em “Adjustment Team”). Muito – e nalguns casos razoavelmente aceitável – mas nenhum destes filmes está realmente à altura. Nesta década e meia, “O homem duplo” tem de ser escolhido como o filme a destacar: um filme experimental em que Richard Linklater se serve da técnica da rotoscopia para sobrepor aos actores vivos os seus próprios “desenhos animados”, uma escolha “formal” que espelha o “tema” da obra. Um romance de PKD de 1977 que é o retrato de um futuro inscrito no passado: desdobramento da personalidade, a droga como instrumento de destruição e de domínio – em suma, preocupações permanentes e experiências de vida do autor. No fim do livro e do filme, uma dedicatória à longa lista de amigos mortos ou para sempre danificados física e/ou psiquicamente pelo uso de drogas, “punished entirely too much for what they did. I loved them all“.

“Gritos mortais” (“Screamers”, 1995)

Muito mais modesto, em todos os aspetos, do que a maior parte dos outros filmes “dickianos”, é uma fita muito sequinha e direta com a justa medida de efeitos especiais. Teria de o rever para confirmar, mas arrico-me a dizer que é um dos melhores filmes de sempre da “ficção científica” mais “pura”, sem grandes lições ou segunda intenção. Comovente. O realizador Christian Duguay, canadiano, nunca se distinguiu especialmente, que eu tenha dado por isso (e dirigiu até um prometedor e bastante abominável “A arte da guerra”, com Wesley Snipes) mas aqui acertou em cheio. Foi adaptado do conto “Second Variety”, de 1953. No argumento esteve Don O’Bannon, um nome que os aficionados conhecem: dirigiu “O regresso dos mortos vivos”, colaborou com John Carpenter no início da carreira de ambos, e com Ridley Scott (em “Alien, o oitavo passageiro”, p. ex.), foi argumentista de “Total Recall”. “Screamers” tem no papel principal Peter Weller, o protagonista de “Robocop”, que parece especializado em alternar filmes insignificantes com filmes interessantes e obscuros como este ou o “Cat Chaser” (“Caça Grossa”, que Abel Ferrara realizou em 1989 a partir de um romance do grande Elmore Leonard, um autor que depois esteve tão em evidência graças a filmes como “Get Shorty”, de Barry Sonnenfeld, “Out of Sight”, de Steven Soderbergh ou “Jackie Brown”, de Tarantino).

“Desafio Total” (“Total Recall”, 1990)

Em 2012, sob a direção de Len Wiseman, foi realizada uma nova versão deste “Total Recall” (“Desafio Total”), de Paul Verhoeven e com Arnold Schwarzenneger. Foi um exercício de falta de imaginação não muito bem-sucedido. O filme original foi a segunda produção cinematográfica a partir dos escritos de PKD: baseou-se em “We Can Remember It for You Wholesale”, um conto de 1966. O que há numa memória? Sem pretensões, é um filme fiel às suas origens e à tortuosa imaginação filosófica do autor, embora em grande parte sob as vestes de um filme de acção sem ironia, à medida dos primeiros Schwarzennegger, com muita pancadaria. Fulgurante – e fracassante – participação de Sharon Stone num dos seus primeiros papéis de má rapariga. (Num desses papéis, que tem a cena mais famosa da carreira dela, “Instinto Fatal”, actuou outra vez sob a batuta, é assim que se diz?, de Paul Verhoeven.) Na minha fonte sobre os pormenores financeiros da carreira póstuma de PKD no cinema (revista Wired, de Dezembro de 2003, “The Second Coming of Philip K. Dick”, de Frank Rose), não consta quanto pagaram os produtores pela história. Mas, tirando os luxuriantes 1.250 dólares (!) pagos pela história de “Blade Runner”, os direitos de autor literários de PKD nunca chegaram aos 400 dólares no caso das seis primeiras adaptações cinematográficas (em valores, bem sei, das datas em que tinham sido comprados).

“Perigo Iminente” (“Blade Runner”, 1982)

A primeira adaptação de Philip K. Dick ao cinema e, de momento, cinematograficamente definitiva. Um film noir futurista, com um Harrison Ford à imagem de todos os “detetives privados” da literatura hard-boiled, e do cinema correspondente a essa literatura, com as suas angústias existenciais e a sua estóica moralidade num mundo de negrume, podridão e enganos, onde a desumanidade não está nas máquinas e os androides têm o seu coraçãozinho, como qualquer de nós. A caça ao homem (neste caso aos seus fac-similes) transforma-se numa busca do “sentido da vida”. A fonte literária foi “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, de 1968: sonharão os androides com ovelhas elétricas? “Blade Runner”, realizado pelo Ridley Scott que também realizou o primeiro “Alien” e agora é um dos produtores de “O homem no castelo alto”, já não precisa de apresentação. Só duas palavras pró-memória: uma para a cenografia, os figurinos e a fotografia memoráveis; a segunda para um elenco infalivelmente escolhido e dirigido, de Harrison Ford a M. Emett Walsh, Joanna Cassidy, Daryl Hannah, Rutger Hauer, etc., passando pelo inesquecível William Sanderson no personagem de J. F. Sebastian.

Miguel Freitas da Costa foi cronista no Expresso, no Público, no Diário Económico e no DN, entre outras publicações. Foi director editorial da Guimarães Editores e secretário-geral da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. É tradutor.