Nunca ninguém vai conseguir dizer que Chuck Berry chegou antes de Muddy Waters, que Little Richard fez mais do que Ike Turner, que Bo Diddley, Roy Orbison ou Buddy Holly são, esses sim, os verdadeiros e únicos pais do rock’n’roll. Aqui não há certezas. Mas o que é certo é que há um herói mascarado de mestre do Mississippi que atravessou Estados e oceanos para mudar tudo. Uma espécie de agente secreto que nunca o quis ser e que influenciou toda a coisa rock, ainda que os discos mais marcantes que gravou tenham carimbo dos anos 50. Sabemos bem que isso do tempo nunca contou para nada, muito menos neste campeonato. Sam Philips, o homem que gravou Johnny Cash e Elvis, o patrão dos Sun Studios de Memphis, disse muitas vezes que Howlin’ Wolf era o maior artista com quem alguma vez trabalhou. Maior em tudo, maior que todos. É difícil dizê-lo com mais honestidade e de forma mais simples. Wolf, o gigante, morreu há 40 anos, a 10 de Janeiro de 1976, e ainda hoje ouvimo-lo e ficamos contentes por ter tanto medo que aquela voz do inferno nos apareça à frente em carne e osso.

Não o vimos com o fato escuro e as meias brancas que usava em todos os palcos. Mas sabemos que, em boa parte, foi ali que nasceu a anca incontrolável de Presley, a nervosa dança sexual de Mick Jagger, o mais cavernoso dos gritos que Jim Morrisson ia buscar lá longe, naquele tal mundo paralelo que só ele conhecia. Howlin’ Wolf deu tudo isso ao mundo. A harmónica era a sua fiel companhia de perdição. Se estava à frente nem que fosse de meia dúzia de perdidos, tocava como qualquer exorcista faz o que tem a fazer. E, depois, arrumava o assunto com a voz, um enorme trovão, um monstruoso grito que lhe atravessava todo o corpo antes de se pôr ao ar. E era preciso mais que força para controlar toda aquela erupção. E Wolf, Howlin’ Wolf (que nome mais acertado) não só o fazia como lhe dava brilho. Robert Plant, Captain Beefheart, Tom Waits, ficaram todos presos, pelo menos uma vez na vida, àquele caparro vocal, uma sova de garganta digna de um adamastor.

Antes de ter Howlin’ como primeiro nome, Wolf era Chester Arthur Burnett, nascido a 10 de Junho de 1910 no Mississippi, entre campos de algodão e todas as obrigações que o Delta ditava. População negra em quase 90% mas condenada ao trabalho no campo controlado pelos patrões brancos com mente de senhores feudais, esclavagismo incluído. Sair era difícil, cantar era um escape relativo, até porque ninguém queria motivar uma revolução para depois não ter como ou onde viver. Dizia Howlin’ Wolf que quando estamos a pensar em coisas más, então temos os blues. E Chester Burnett foi ouvindo isso desde muito cedo. Com os pais separados, cresceu com a mãe, que não o queria. Passou pela morada de um tio e acabou por fugir para perto do pai. A música que já o fascinava ganhou ainda maior encanto quando lhe apareceu à frente Charlie Patton, nome sagrado nisto dos blues, com lugar no mesmo altar onde é adorado Robert Johnson, o homem do pacto com o diabo num cruzamento de má memória.

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Foi com Patton que Chester aprendeu a tocar guitarra. E foi também com Patton que percebeu que guitarra não era nem nunca seria o seu forte. O pai comprou-lhe uma, Chester fez o que podia, perdeu-se de amores pelos blues e seguiu em frente. Cantar e tocar harmónica, como nunca se tinha ouvido, como nunca mais ninguém fez. E o mais curioso é que houve mais uns quantos a pensar o mesmo sobre Howlin’ Wolf. Tocou com Robert Johnson, Son House e Willie Brown. Teve um primeiro desgosto de amor que o fechou em casa com dores de crescimento. E depois de agarrar os blues (haverá melhor forma de o fazer que através de uma bofetada no coração?) nunca mais os largou. Pouco mais tarde veio Sam Phillips, o homem que mudou a vida de Chester Burnett e que, ao mesmo tempo, mudou a nossa. O músico já se tinha mudado para Memphis, no Tennessee – a cidade grande era o único destino a procurar para quem queria sair do Delta. Phillips ouviu-o cantar, como ouvia muitos outros naquele centro criativo que juntava pequenos grandes de toda a tradição americana cantada. Mas Burnett estava muito longe de tudo o resto. O mais forte aperto de mão que o mundo já terá conhecido estabeleceu o pacto entre ambos. Wolf gravava para a Memphis Recording Service um primeiro disco, com “How Many More Years” e “Moaning at Midnight”. Foi preciso chegar a 1951.

Começava aqui o desfile imparável de uma estrela rock’n’roll quando o género ainda nem existia. Davam-lhe um palco e Howlin’ Wolf fazia-se deus de tudo e de todos. Ajoelhava-se quando tinha de ser, rastejava para dizer que a sua pequenês perante os blues era enorme (e com isso fazia-se maior que todos os restantes mortais), podia não ter grandes virtudes enquanto guitarrista mas se pegava nas seis cordas era como se as levasse para a cama, muito antes de Jimi Hendrix tornar o acto quase pornográfico.

Quando não era a estrela e estava fora dos concertos (não acontecia muito) pegava nos óculos e ajeitava as meias, ia à sua vida. A hora de expediente era uma coisa, o resto era o resto e o Lobo não misturava as duas. Um profissional tremendo, cuidadoso com a bebida, o jogo e sobretudo com os dinheiros. Quando decide ir para Chicago – nada mais havia a fazer quando a RPM de Sam Phillips escolhe Rosco Gordon, o homem que em 1956 já cantava “Let’s Get High” – vai com o seu próprio carro o único bluesman da diáspora que o conseguiu, e com 4 mil dólares, uma fortuna na carteira. Salários certos e generosos mais as garantias sociais que qualquer trabalhador merece, Howlin’ Wolf era este tipo de patrão. E isto com a ajuda da mulher, Lillie, boa de contabilidade, ela que nem gostava de blues quando conheceu o futuro marido. Resultado: uma enxurrada de músicos a querer tocar com o maior homem do sul, a voz gigante da América inteira, o big boss man dos blues que, se o deixassem, ficava bem num dia de caça ou pescaria, nada mais.

Mas era em Chicago que Chester estava. A terra da liberdade para quem vinha de longe com sonhos de artista. Leonard e Phil Chess, os polacos que emigraram para os EUA para enriquecer, deslumbraram-se com a música negra da América. Juntaram as duas coisas, negócios e blues, e fizeram a Chess Records. Assinaram Howlin’ Wolf, claro que assinaram, e editaram-lhe “Moaning in The Moonlight” (1959) e “Howlin’ Wolf” (1962). Os álbuns certos na hora certa, sobretudo a hora britânica. Os ingleses descobriram os blues e descobriram o lobo. Rolling Stones, Eric Clapton, os Animals ou Steve Winwood, todos o tinham como um ídolo, todos o tocaram e gravaram. E em 65, os Stones vão ao programa “Shindig!”, um encanto para os adolescentes pop de então, uma oportunidade única para Richards e Jagger colocarem Howlin’ Wolf na TV britânica. A banda sentada aos pés do bluesman, como quem presta a devida vassalagem. E Wolf, sempre dono daquilo tudo.

Na América, depois de anos em que os mestres dos blues não existiam no mainstream, os sessentas trouxeram a contracultura, as tradições musicais ao serviço de um desejo de revolução, as transformações sociais a trazer à superfície o que há muito parecia escondido. Os revivalismos folk eram abrangentes e chegavam ao eixo Mississippi-Chicago; Alan Lomax, o musicólogo que gravou o mundo inteiro, mostrava o que de facto unia os diferentes Estados; e gente como Bob Dylan e os seus Hawks (The Band, na verdade) baralhavam tudo para criar algo novo. Howlin’ Wolf estava no meio de tudo isto. Ele mais Hubert Sumlin e Willie Johnson, os guitarristas que mais tempo o acompanharam e que obrigaram muitos aspirantes a virtuosos a prestar atenção a quem sabia de facto como hipnotizar através da electricidade.

Howlin’ Wolf nunca parou. Nem quando o cansaço o queria tirar dos palcos, nem quando as dores o queriam enganar. Gravou as London Sessions com os músicos que o adoravam, gravou discos psicadélicos e conquistou sempre novos fãs. Deixou arrastar uma inevitável desgraça enquanto pôde. A 7 de Janeiro de 1976 foi-lhe diagnosticado um tumor no cérebro. Foi operado e não recuperou. Morreu aos 65 anos, o maior dos bons vilões que o mundo conheceu, que espalhou o seu abençoado inferno e que ainda hoje roda e queima.