A espera tem tem duas consequências imediatas. Se, por um lado, cria progressivamente uma ansiedade e expectativas que conduzirão a um build up emocional, por outro lado pode rapidamente levar à desistência e à exasperação, criando uma cisão irreversível. No caso de The Last Guardian os nove anos que demorou o seu desenvolvimento, somados aos sete anos desde o seu anúncio, tornaram esta espera algo de verdadeiramente penoso para todos os fãs.

Para compreendermos a importância desta ânsia por The Last Guardian, que foi lançado hoje nas lojas portuguesas, temos de perceber a importância do seu criador, o japonês Fumito Ueda, e da sua equipa criativa, a Team Ico. Apenas com dois jogos no currículo antes deste The Last Guardian (não tendo em conta os dois em que trabalhou anteriormente como animador, poucos anos depois de ter terminado a Faculdade), Ueda é para muitos o pináculo da definição artística de “videojogo de autor”. Se o primeiro jogo com o seu cunho autoral, Ico (cujo nome prefixa a sua equipa) é indubitavelmente uma das grandes obras da 10ª Arte, Shadow of the Colossus, o seu segundo jogo, é consensualmente um dos melhores jogos de sempre, e para muitos até o melhor.

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Ueda constrói os seus jogos com um fio condutor recorrente: relações, e a dor emocional e a complexidade a si agregadas. Em Ico controlamos um misterioso rapaz na longa jornada de salvamento de uma rapariga chamada Yorda da morte certa à crueldade da sua mãe, simplesmente denominada A Rainha. Mas esta não é a típica história da princesa-no-topo-da-torre. Todo o caminho de salvamento é feito a dois, em que a subtileza do toque entre os dois personagens – ele, controlado por nós, ela, a companheira sempre presente ao seu lado – e a forma como a união de ambos funciona para ultrapassar qualquer provação.

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O valor de Ico para a história dos videojogos não se centra numa questão mecânica ou de design, mas sim na forma como, de um jeito magnânimo, Ueda conseguiu criar e desenvolver uma relação entre dois desconhecidos que necessitam um do outro, através da construção de um mundo em videojogo. E numa estética narrativa que se tornou a sua assinatura de design subtrativo, em que todo o enredo e as ligações e desenvolvimento dos poucos personagens é feito progressivamente pela interligação entre os dois, e não por ingerências da narrativa.

Em Shadow of the Colossus controlamos Wander, um rapaz a galope no seu fiel cavalo Agro por uma terra desconhecida habitada por dezasseis colossos. Na sua típica estética minimalista, a equipa da Team Ico deixa-nos descortinar que o nosso objetivo é simples: matar aquelas dezasseis criaturas titânicas do qual nada sabemos, em troca da ressurreição de uma rapariga morta chamada Mono. A dor aqui é tangível tanto na missão desesperada e apaixonada que somos obrigados a levar a cabo, como pela sucessiva perda de humanidade a cada golpe disferido nos colossos.

Não há perguntas a fazer nem respostas a serem dadas, Shadow of the Colossus é a personificação da dor da morte, num relacionamento que existe (ou existiu) antes do jogo e cuja força e dor intrínsecas são fortes o suficientes para nos mergulhar na terrível missão que temos pela frente, sem questionarmos o porquê.

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Em The Last Guardian encarnamos o papel de um rapaz que foi raptado da sua aldeia e que acorda numa estrutura labiríntica ao lado de uma estranha e gigantesca criatura meio-ave, meio-mamífero. Trico, a criatura, está ferida e exibe marcas de muito tempo de abusos e tortura. A sua desconfiança perante a nossa presença é imediata, e ainda que se contorça com dor das muitas lanças que lhe cravam a o corpo. Num óbvio acenar a Esopo e à sua Fábula O Leão e o Rato, é a nossa atitude de descravar as lanças que cria a primeira dúvida na criatura, sobre a possibilidade de confiar ou não em nós. A nossa missão torna-se desde início uma missão conjunta, de duas entidades que se desconhecem, que não possuem uma linguagem comum e que, acima de tudo, iniciam uma relação baseada na dor e na desconfiança causadas pelo mal passado e recente.

The Last Guardian é um jogo sobre relações, como é habitual na linha criativa de Ueda, mas é acima de tudo um jogo de partilha e de construção emocional. Acredito que os quase dez anos de desenvolvimento deste jogo tenham sido grandemente dedicados a desenvolver da melhor forma a Inteligência Artificial de Trico, de forma a que este mimetize as reações animalescas de um cão ou de um gato, apresentando uma personalidade forte pela forma como interage (ou não) connosco.

Mais do que os muitos puzzles que nós – o protagonista sem nome – e Trico temos de ultrapassar, é a construção do relacionamento assente em cada momento de partilha, cumplicidade e provação entre os dois que transparece na forma como a gigantesca criatura vai baixando as suas defesas perante o rapaz. Seja pelo facto de que o podemos confortar a qualquer momento escalando para as suas costas e afagando as suas penas para o acalmar, e provar a uma criatura virtual que é estranhamente realista do ponto de vista emocional que estamos ali para ela, ao contrário do que o seu passado de abuso lhe provou. E esta cumplicidade, esta inter-confiança crescem até percebermos que aquela união forçada para escapar de um mal comum passou a ser algo mais, à ligação emocional (ainda que neste caso virtual) que qualquer pessoa tem com o seu animal de estimação, com as reações inesperadas e emotivas que esperamos de um cão verdadeiro.

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A complexidade de criação de Trico é óbvia nesta aprendizagem virtual do que são sentimentos de confiança para com outrem, e em que as sugestões, gestos e acenares que fazemos com o rapaz vão sendo cada vez mais compreendidos e seguidos pelo animal. Há um gigantesco desafio técnico em tudo isto, e que poderá ser a explicação para a demora do desenvolvimento, mas há acima de tudo uma tremenda carga emocional de aproximação a um ser virtual que nos submerge na crença das suas reações, e que desde muito cedo em The Last Guardian nos aproxima afetivamente de Trico.

Ueda cria afinal sobre relações, mas evidentemente sobre o amor e as suas muitas formas de ser sentido. O amor que nos compele a dar a nossa vida para salvar a de alguém que queremos salvar como em Ico, ou o amor e a dor da saudade de querermos com todas as forças trazer de volta à vida alguém que partiu como em Shadow of the Colossus. The Last Guardian é mais um lado do complexo polígono que é o amor: uma construção sólida e progressiva de cumplicidade e confiança, e tendo esse mesmo amor como ponto de viragem emocional para todo o sofrimento vivido até então.

The Last Guardian é o somatório das duas obras anteriores e, com todos os defeitos técnicos que apresenta, vem mais uma vez mostrar a força de um “jogo de autor”, carregado de emoção e que nos leva para possibilidades experimentais que deviam ser, cada vez mais, uma tónica recorrente no media que são os videojogos. Foram nove anos de espera para esta experiência e, neste 2016, foram quase doze meses decorridos até encontrar aquele que é, para mim, o Jogo do Ano, abrilhantado a cada segundo pelas magnífica banda-sonora do compositor Takeshi Furukawa. E não há espera que diminua o impacto emocional de The Last Guardian, que é muito mais do que um jogo: é uma das derradeiras manifestações da 10ª Arte.

Ricardo Correia, Rubber Chicken