Talvez até possamos ser, como se diz, um país de poetas (discuto, mas não agora); o que não somos, certamente, é um país de estrelas rock. Somos demasiado deprimidos, demasiado moralistas, carregamos demasiada culpa cristã ou demasiada inveja. Talvez um dia nos passe; por enquanto, ainda somos assim. Aqui, a terra dá fadistas, alguns bons escritores, alguns bons cínicos, muito cobarde e muito demagogo. Quando, de geração em geração, brota uma rock star – em sentido lato, como um Paulo Futre nos anos 80, com o seu Porsche amarelo – concluímos rapidamente que tem a mania, que lhe subiu à cabeça, que devia mas era ir trabalhar, ou ter vergonha, que – lá está – é uma coisa muito nossa.

Os hedonistas não moram aqui. Os moralistas de direita não deixam. Os moralistas de esquerda não deixam. É preciso é sofrer, ou ir trabalhar, ou pensar nos pobrezinhos. E depois há as drogas. E o sexo. E essas coisas que não ficam bem na hora do “Natal dos Hospitais”, ou de ser júri no concurso de talentos, ou de apoiar uma causa humanitária, ou uma opção política. Porque nós gostamos muito de saber da vida dos outros, mas é do lado de lá da porta, para podermos espreitar confortavelmente escondidos pela fechadura. Não é assim, exposta, desbragada, em frente a toda gente. Porque, senão, vão ver-nos corar.

Perante a descida do rock e do punk sobre as azinheiras do Portugal pós-25 de Abril, Zé Pedro foi um ungido. Foi a rock star num país sem rock stars. Não foi um iconoclasta, que era a outra atitude possível – como Reininho –, nem uma imitação, como o nome que o caro leitor aqui quiser colocar; foi a coisa autêntica. Não foi um guitarrista extraordinário, decerto, mas foi sempre fantástico na pose porque, justamente, percebeu desde cedo que, muito no rock, era pose. Pose, estilo, atitude, mensagens claras e simples. Era preciso comunicar em três minutos. Era preciso falar para a turba entre guinchos de feedbacks e distorções. Era preciso falar mesmo quando não se fosse mais do que uma figura bidimensional estampada num poster.

Mesmo tendo por termo de comparação apenas os colegas de banda (sem concorrência no rock português em matéria de sucesso e longevidade), erguia-se sem rival. Cabeleira era demasiado discreto, Tim demasiado homem de família (fosse ou não, não faço ideia – no rock, o que parece é) e Kalú estava demasiado lá atrás, escondido pela bateria. Zé Pedro era o bad boy, o frontman, o homem da frente de palco e das multidões, que sabia que muito do rock se fala sem palavras. Sem notas sequer. Fala-se com o corpo, com a roupa, com a pulsão daquele sortilégio da comunhão com a multidão. Zé Pedro não era o profeta, mas era o místico que conduzia a missa do rock. O transe. A catarse.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Para muitas gerações, é difícil imaginar o que virá agora. Um mundo sem Xutos? Uns Xutos sem Zé Pedro? Podem lá pôr um guitarra ritmo que toque mil vezes do que ele; continuará a faltar o Zé Pedro. No fim, o rock é isto: a alma, e não é um acaso que tenha sido ele, Zé Pedro, o fundador da banda, o tipo que colocou em 78 o anúncio no jornal a pedir um baterista e um baixista para relacionamento sério. Ele era a alma. E foi isso que nos tocou enquanto crescíamos e sonhávamos, porque gente como ele o autorizava agora entre nós, ser também rock stars. Afinal, quantas vezes não estava lá a guitarra do Zé Pedro, nas canções que nos amparavam quando levávamos com os pés e carregavam em ombros nos momentos de glória e que, agora, desde que chegou a notícia, insistem em rodar-nos em loop na cabeça: “Circo de Feras”, “À Minha Maneira”, “Conta-me Histórias”, “Sémen”, “Jogo do Empurra”, “Chuva Dissolvente”, “Não Sou o Único”, “Esta Cidade”, “Remar, Remar”…

“Live fast and die young”, diz um velho mantra do rock. O desaparecimento de Zé Pedro só não é mais brutalmente surpreendente porque eram públicos os longos anos de luta com a hepatite C, o transplante de fígado, a debilidade física que nunca escondeu e que apresentou, pela última vez, há poucas semanas, no concerto no Coliseu dos Recreios com que os Xutos terminavam a digressão de 2017. Viveu e morreu como uma rock star, depressa demais. Terá sido esse bad boy, o rebelde, o “ganda maluco” que alguns soltam agora, enquanto encolhem os ombros para lamentar a morte, mas, ao mesmo tempo, como que o saudando pelas vidas que não tivemos a audácia de viver.

E todavia nós, que não o conhecemos, mas, lá está, já que, no rock, o que parece é, arriscamos dizer que foi o bom bad boy. Teve sempre esse olhar de bom rapaz, apareceu sempre rodeado de amigos, apoiado pelos amigos e a apoiar os amigos. E envolvido nas boas lutas. Como quem sabia reservar e gerir magistralmente o ar perigoso só para fazer arrepiar as meninas.

Talvez tenha sido o coração de bom rapaz que lhe permitiu sobreviver num país de fadistas, moralistas, poetas e funcionários. Agora que partiu, é claro que Portugal ficou mais pobre. Mais pobre e muito mais sozinho.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal)