“A Casa de Papel” chegou à Netflix no final do ano passado, depois de ter conquistado o público espanhol em 2017. A criação de Álex Pina tem uma fórmula simples, usa e abusa de referências televisivas do passado mais ou menos recente e apresenta um plano que transforma o irreal num estímulo ficcional que lança de imediato a pergunta: por que é que ninguém se lembrou disto antes? Apesar de “A Casa de Papel” ser uma variação de outras ficções, o núcleo do plano de assalto tem uma voz original.

Se não sabe do que se está a falar, aqui vai. Em “A Casa de Papel” um grupo de cadastrados, liderados por um tipo designado como “Professor” (Álvaro Morte), vão entrar na Casa da Moeda espanhola e ficar lá dentro o tempo necessário até imprimirem 2,4 mil milhões de euros. É muito dinheiro, por isso vão precisar de ficar por lá alguns dias, com reféns à mistura e com a ambição de não ferir quem quer que seja. O maior desejo do Professor é que saiam de lá ilesos e como heróis para o povo. É o manifesto político e social, anti-institucional, de “A Casa de Papel”. Mais do que o “roubo” do dinheiro.

Estreou-se em maio de 2017 na Antena 3 espanhola. A primeira parte da primeira temporada teve nove episódios de setenta minutos cada e terminou no início do verão num ponto alto da trama. Voltou em outubro com mais seis episódios para o maior assalto da história ser finalizado. Chegou à Netflix – e a quase todo mundo – no dia 25 de dezembro de 2017 com a temporada reconfigurada: a primeira parte passou a ter treze episódios de quarenta minutos e a segunda chegará no próximo dia 6 de Abril. A divisão por partes faz, de imediato, lembrar duas coisas: “Twin Peaks” e “Prison Break”.

[o trailer de “A Casa de Papel”]

De “Twin Peaks” fica o corte num ponto alto da acção. Na transmissão original da série de David Lynch, em 1990, meteu-se um verão pelo meio entre a primeira e a segunda temporada, num momento particularmente tenso e exótico da série. “A Casa de Papel” repete a fórmula, entre a primeira e a segunda parte acontece algo de particularmente importante que deixa o espectador ansioso pelo futuro das personagens. A Netflix simula como pode a distância da transmissão original e isso é de valorizar, porque permite a fórmula de “A Casa de Papel” respirar: a fórmula é um dos senões da série.

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Com “Prison Break” a dívida é maior. A divisão que existiu na primeira temporada de “Prison Break” justifica-se por uma série de factores (pela relutância da Fox antes de aceitar o sucesso da série, seguido de um espremer absurdo do sumo após o sucesso da série) e foi ideal para encher as medidas. A primeira parte da primeira temporada, tal como acontece agora com “A Casa de Papel”, retém a perfeição do plano e deixa as dúvidas do insucesso para a segunda metade. Em ambas as séries o princípio é o mesmo: planear todo e qualquer detalhe ao pormenor, até mesmo os falhanços, em prol de uma saída suave e sem transtornos.

As duas acontecem numa prisão. Em “Prison Break” há mesmo um estabelecimento prisional, em “A Casa de Papel” há uma espécie de caixa forte, sem qualquer força interna a perturbar a acção no interior, mas com um país a olhar para o que se passa lá dentro: ou melhor, à espera de perceber o que se passa lá dentro, quando saírem cá para fora. Esse é um dos elementos mais surpreendentes e eficazes da criação de Álex Pina: a poucos minutos do primeiro episódio já se está dentro da Casa da Moeda. A introdução da protagonista/narradora (Úrsula Corberó) é rápida e singela, os restantes membros do gangue e a ideia de um assalto acontece minutos depois, com uma brevidade invejável. Quase sem se dar por isso, o maior assalto da história já está a decorrer e os pormenores sobre tudo serão dados nos episódios seguintes, sem a criação de grandes efeitos de antecipação ou engodos amadores.

Com uma prenda tão grande no primeiro episódio, “A Casa de Papel” podia perder qualquer noção de responsabilidade sobre aquilo que dará ao espectador. Consegue o controlo total da atenção e faz uma coisa admirável: não abusa dele. Apesar de não resistir ao engonhar de novela em certos momentos, respeita o espectador e o seu tempo e dá-lhe sempre mais do que lhe tira: não há um passo atrás nesta série, é um movimento em contínuo para a frente. A sua narrativa é tão profissionalizada como o plano dos assaltantes e os assaltantes são tão humanos como os espectadores.

O grupo de assaltantes que protagoniza “A Casa de Papel”, com o líder, o “professor”, na frente

Apesar do plano do Professor ser rígido, os assaltantes falham. Apaixonam-se, perdem a cabeça, deixam o ego vencer, fazem idiotices. São personagens que não criam grande envolvência emocional e isso faz parte do seu encanto. Sabe-se o que esperar delas, um sim ou não meramente operático, e isso liberta o espectador para dar total atenção ao plano geral, perceber as motivações de cada personagem (tanto as que estão dentro como as que estão fora da Casa da Moeda) e não criar afectos por aí além. É como se quem estivesse a ver de fora, no sofá, também entrasse no plano do Professor e se concentrasse na coisa mais importante de “A Casa de Papel”: sim, aquela que prende, prende mesmo.

Quando um plano é muito, muito bom, o espectador quer que os ladrões vençam. E “A Casa de Papel” mete o espectador do lado dos assaltantes quase sem esforço: e não é por aversão à autoridade ou coisa que o valha. É porque o plano é fabuloso. Estão a imprimir dinheiro e tudo o que precisam é de roubar tempo aos que estão lá fora para conseguirem imprimir ainda mais dinheiro e atingirem o seu objectivo de 2,4 mil milhões. E enquanto o fazem, passam a maior parte do tempo com umas máscaras de Dali na cara. Com esse pormenor, “A Casa de Papel” torna-se num “Mr. Robot” com ironia, a melhor resposta possível aos anonymous. E com graça. A máscara é um toque de génio.

Problemas? Há um endémico. Um detalhe que entra depressa no registo de fórmula: a perfeição é rotina e o plano do Professor não falha. Mesmo quando está na iminência de. É possível que falhe na segunda parte da temporada (quem escreve vai aguentar, enquanto rói as unhas, até abril), mas até isso acontecer, há apenas a impressão da primeira: “A Casa de Papel” é obcecada com a sua perfeição, enquanto plano e, posteriormente, enquanto série. Até nos erros ou contratempos do plano se nota uma obsessão com isso, como se não existisse outra fórmula para o plano interpretar o seu papel. Mas nunca tentámos “roubar” 2,4 mil milhões, por isso, o que raio sabemos de rotinas e obsessões num assalto destas dimensões?