“Vai começar”, anuncia-se na rua frente à entrada do Teatro Nacional D. Maria II. Lá dentro, perto da bilheteira, circulam intérpretes de um lado para o outro, misturados entre os espectadores, ao som de uma ópera infantil de Maurice Ravel. Ora entram, ora saem para a rua. E avisam: “Se vocês não saírem daqui, nada vai acontecer.”

O espetáculo já teve início e o público ainda mal entrou no teatro. Eis a primeira surpresa de “Cortado por Todos os Lados, Aberto por Todos os Cantos”, que acontece esta semana, de terça a quinta, às 19h00, com bilhetes entre 6 e 12 euros.

“Queremos criar no espectador uma surpresa constante”, resume o encenador, Gustavo Ciríaco. “Surpresa por não saber o que vai acontecer a seguir, se aquilo que está a acontecer foi ensaiado e programado ou é apenas um acaso ou um engano dos intérpretes.”

O espetáculo integra a programação do Alkantara, festival de artes performativas que está a assinalar 25 anos de existência e cuja edição de 2018 começou a 23 de maio e decorre até 9 de junho em Lisboa. Cruzamento de teatro e dança, consiste numa visita a diversos espaços do D. Maria, incluindo camarins e bastidores, e tem uma forte carga teórica em torno da ideia de teatro e arquitetura.

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É uma “peça em deambulação”, nas palavras de Gustavo Ciríaco. Uma visita guiada, cheia de mistérios, com duração de 75 minutos e um máximo de 80 espectadores por sessão. O Observador assistiu a um ensaio na semana passada.

Num corredor, uma intérprete queixa-se da vida. Numa sala, um homem no divã de psicoterapia está em pânico quando vê pessoas. Da varanda assiste-se ao vivo a uma canção, pela voz de Carla Gomes. De repente, as personagens passam a pessoas reais e quem estava num certo papel torna-se algo completamente diferente. Parece um filme surrealista ou o thriller de um realizador fantasioso.

“Cortado por Todos os Lados, Aberto por Todos os Cantos” pode ser descrito como uma viagem de descoberta, em fragmentos. Teve anteestreia no início de maio, no Centro Cultural de Ílhavo, depois de residências artísticas na Universidade Estadual de Campinas, no festival açoriano Walk & Talk, no Centro de Artes Performativas do Algarve e em O Espaço do Tempo, de Montemor-o-Novo. Mostra-se agora em versão adaptada ao local de acolhimento (“site specific”) e assim acontecerá em futuras apresentações, uma das quais está agendada para o Teatro Micaelense, durante o Walk & Talk 2018, dias 29 e 30 de junho.

[vídeo de promoção de “Cortado por Todos os Lados, Aberto por Todos os Cantos”]

“A ideia é tratar o edifício do teatro como se fosse uma escultura. Quando olhamos uma escultura, tentamos, em deslocamento, encontrar o ponto de vista ideal para observar a escultura”, explica Gustavo Ciríaco. “Pego no edifício, digamos assim, e cada momento deste espetáculo serve como ponto de vista para ver a escultura total, que é a peça. Há verbos associados à arquitetura, como “entrar” e “sair”. Isto aplica-se a uma porta, todos os edifícios têm uma porta pela qual se entra e sai. E aplica-se à caixa cénica do teatro, também se entra e sai de cena, algo surge e desaparece num espetáculo, ou se acende e se apaga. O teatro contamina a arquitetura e a arquitetura contamina o teatro.”

Outro ponto de partida teórico, segundo o criador, é o de fazer acontecer teatro fora da caixa preta do teatro ocidental, ou seja, fora do palco tradicional.

“O teatro pode situar-se em todos os espaços em redor da caixa preta. Pode acontecer para além da caixa preta, imediatamente antes de se entrar na sala, ou na rua, ou na bilheteira. O meu desejo é que o espectador não tenha a certeza de quando começa ou termina um ato teatral e que se interrogue até que ponto a arquitetura do edifício é visível ou influencia a perceção. É uma peça muito ligada à experiência do espectador. Muitas vezes, perante a caixa preta, o espectador está emudecido no escuro, mas aqui não, ele tem que se deslocar e isso é relevante.”

A determinada altura, os intérpretes tornam-se presenças sinistras, olham de soslaio para o público, como fantasmas. E num camarim uma mulher chora presa a um charriot, enquanto uma costureira aponta o caminho através de uma seta que recorta num tecido. O delírio parece tomar conta dos atores quando o salão nobre do D. Maria II serve de palco a uma coreografia inspirada na canção “Amor d’Água Fresca” e irrompe uma dança de fanfarra que mais parece um filme de terror num carrossel dos anos 30.

A música tem um papel relevante. Bill Callahan é outra das escolhas e o músico Bruno Humberto assina várias composições sob a forma de instalações sonoras. Segundo o encenador, o cinema também serviu de inspiração e duas das referências são “A Arca Russa”, de Alexandr Sokurov, filmado num só plano-sequência, e “Noite de Estreia”, de John Cassavetes, obra de referência sobre a relação entre teatro e realidade.

Gustavo Ciríaco é coreógrafo e nasceu no Rio de Janeiro em 1969. Está radicado em Lisboa desde há seis anos. Estudou dança na Escola Angel Vianna e antes disso cursou ciência política na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nos últimos anos, sobretudo a partir de “Aqui Enquanto Caminhamos”, de 2005, espetáculo que o trouxe pela primeira vez a Portugal, também no âmbito do Alkantara Festival, começou a criar em torno de conceitos de paisagem, espaço e arquitetura. “A ideia de deambulação que existe neste espetáculo, a que chamo rapsódia arquitetónica, já começou há vários anos”, nota.

Em “Cortado por Todos os Lados, Aberto por Todos os Cantos” participam 16 intérpretes, incluindo o criador: quatro fixos (Rodrigo Andreolli, Ana Trincão, Sara Zita Correia e Tiago Barbosa), cinco atores do elenco do D. Maria II (José Neves, Lúcia Maria, Paula Mora e Manuel Coelho) e mais seis estagiários da Escola Superior de Teatro e Cinema (André Loubet, Diana Narciso, Gonçalo Egito, João Estima, Rita Delgado e Sara Inês Gigante).