Para a cantora que atua em Lisboa (no Teatro da Trindade) esta sexta-feira e em Braga (no GNRation) no sábado, na origem da sua “criatividade” esteve a literatura, sobretudo a poesia. Foi um dos seus primeiros “interesses sérios”. A música, Julie Byrne ouvia-a sobretudo na guitarra que o pai tocava em casa, uma “terapia” para o homem que “tinha dois empregos e chegava a casa vazio, sem energia”. O instrumento permitia-lhe “voltar à vida”. Porém, antes de decidir pegar na guitarra que ele tocava, e que Byrne ainda hoje usa para gravar discos e dar concertos, a cantora e compositora nascida na cidade nova-iorquina de Buffalo refugiava-se nos livros de Frank O’Hara, Kenneth Patchen e alguns outros.

“Estudava numa escola pequena, num ambiente conservador. A poesia e a literatura deram-me uma sensação de pertença que nunca tinha sentido”, contou Julie Byrne ao Observador, numa entrevista de antecipação aos concertos em Portugal.

A música que Julie Byrne, 28 anos, tem vindo a fazer nos últimos anos tirou-a da obscuridade e colocou-a em palcos de todo o mundo após o lançamento de Not Even Happiness. Editado em 2017, o álbum (o segundo de Byrne, sucessor de Rooms With Walls and Windows) colheu elogios de quase todas as publicações que o ouviram, do site Pitchfork à revista outrora impressa e hoje digital New Musical Express, passando pelo jornal britânico The Guardian (aqui e aqui), pela webzine nova-iorquina Spin e pelo blogue tornado site musical de referência Stereogum. Elogios merecidos, já que as belíssimas oito composições do disco (uma das quais instrumental) são suficientes para a considerar uma das melhores escritoras de canções a surgir nos últimos anos nos Estados Unidos da América.

O que distingue as canções de Julie Byrne é uma poesia apurada como raramente se vê no mundo das canções, com valor suficiente para sobressair até sem os arranjos delicados e de extremo bom gosto (maioritariamente de guitarra acústica) que a acompanham. Sobreviveriam até, heresia para quem se derrete ao ouvi-la, sem a voz angelical com que Byrne, com uma sabedoria e um olhar sobre o mundo que não denunciam os apenas 28 anos, sussurra ao microfone e aos ouvidos do público. Assistir aos seus primeiros concertos em Portugal — numa digressão que já passou por Faro (Teatro das Figuras), mas que passará ainda por Lisboa e Braga — é não perder um dos grandes destaques da programação musical do ano neste país. Conheça-se ou não, goste-se mais ou menos do registo.

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Julie, a inquieta

Julie Byrne não teve uma adolescência e uma vida adulta (ainda curta, só tem 28 anos) especialmente tranquilas. Nunca sentiu que pertencia a lado algum, e até viveu em vários sítios desde que saiu de casa aos 18 anos: Pittsburgh, Northampton, Chicago, Lawrence, Seattle e Nova Orleães, onde encontrou “comunidades muito criativas.” Isto excluindo as cidades todas por onde passou para concertos. Não só as internacionais e as que lhe permitiram tocar em boas condições, depois do lançamento do segundo disco, mas também as que visitou durante os anos em que andou em digressão pelos EUA, “a dormir em sofás e em carros, para tocar em sítios sem saber o que ia encontrar”.

Está tudo bem, valeu a pena, Julie Byrne sabe há muito que “é isto que queria fazer”. Mas nem sempre foi fácil, “houve um tempo extremamente duro, em que me senti extremamente perdida e exausta, física e psicologicamente”. Quando lançou o mais recente disco, dizia em entrevistas que tinha assentado, regressara a Nova Iorque onde já vivia há dois anos. Era falso alarme: “Vivi dois anos em Nova Iorque, mas deixei o meu apartamento em junho do ano passado, quando parti para digressões mais longas e intensas”, revelou ao Observador. Aquando da entrevista, estava a morar “no rancho de uma pessoa” que conhece, uma propriedade na zona rural do estado do Texas que ficava a 30 minutos da capital, Austin.

O padrão de me mudar tão regularmente deve-se sobretudo à minha inquietação. Acho que todas as pessoas a têm, só que têm-na em diferentes graus. Só agora, pela primeira vez, é que estou a encarar essa inquietação cara a cara.”

As mudanças habitualmente ocorriam quando Julie Byrne passava por “um período de turbulência” interior. “Particularmente quando estou apaixonada, quando passo um período difícil, reverto isso para sentir que estou destinada a não estar com ninguém, a estar sozinha. A solidão não me oferece necessariamente mais oportunidades de crescimento mas é uma sensação que me é familiar”, referiu.

[A capa de “Not Even Happiness”, o disco que Julie Byrne apresenta em Portugal. Pode ouvi-lo aqui:]

Tudo isto é refletido nas canções. Em Not Even Happiness, o disco que Byrne apresenta em Portugal, as composições oferecem belas descrições das paisagens que Byrne já viu, sobretudo as rurais e naturais, menos cosmopolitas. Há as “nuvens”, as “estradas”, o  “Colorado e o Wyoming”, a memória do “oeste místico” que pede a alguém que preserve e as “regiões selvagens” que lhe “lavaram todos os pensamentos utilitários [ou “de objetivos” — a expressão traduzida é ‘endeavor’] que ainda tinha.” Mas também o amor, o desamor, a convivência com os outros, temas de que a poesia há muito se ocupa e que Julie Byrne trata como poucos. Como nos versos que canta em “Sleepwalker”, que nos apetece descrever como uma das mais bonitas canções de amor escritas em tempos recentes, com versos de emocionar até os mais cínicos e que termina assim:

And of all the roads and the cities that I passed through
And of all the eyes I have searched inside
The one sense of permanence that I came to feel was mine
Only beneath your gaze

“Habituei-me, nos filmes de princesas da Disney e nessas coisas, a pensar no amor como uma prioridade. É-nos transmitida uma ideia de que, assim que encontremos uma alma gémea, a vida vai ser uma easy ride [uma viagem sem atribulações]. Um amigo meu de longa data dizia-me há tempos que as almas gémeas são construídas, são forjadas, não se podem encontrar. Acho que demorei muito tempo e muitas relações a perceber essa verdade tão básica”, explicou Julie Byrne. “É como diz o Khalil Gibran [escritor, poeta, pintor, filósofo e artista visual, nascido em 1883 no atual Líbano]: Pois mesmo que o amor te coroe, também te crucificará. Mesmo que ele leve ao teu crescimento, também te podará [tradução nossa; a expressão original pode ser encontrada aqui].”

Se as reflexões são cuidadas e Julie Byrne fala da vida e da inspiração para as canções de forma pausada e pensativa, o mais impressionante é mesmo como tudo isto desagua em canções de recorte clássico, com uma escrita e composição que não ficam a dever nada às de alguns dos melhores compositores de música folk. Mais do que tristes, os temas são um tratado sobre a beleza de ser-se vulnerável e honesto, a melhor “terapia” que Julie Byrne encontrou, porque, diz, só começou a encontrar um rumo quando percebeu que tinha de se “conhecer profundamente.”

Para os concertos nacionais, a cantora e compositora convocou a teclista Taryn Blake Miller e o violinista Dan Bridgwood-Hill, “amigos” que tocaram no disco e que a acompanham na estrada. Pode-se esperar sobretudo intimidade durante a hora e um quarto — mais coisa, menos coisa — que deverá durar o concerto:

“Sinto cada vez mais que, quando atuo e as pessoas tomam a decisão de ir ao concerto, estamos lá todos porque sentimos as mesmas coisas, passámos por experiências parecidas que nos juntaram ali, estamos todos à procura de algo. É isso que sinto nos concertos, que se cria uma intimidade verdadeira entre nós. E perante isso só posso ser humilde, porque é a melhor sensação de todo este processo de gravar e dar a conhecer as canções”. Por outras palavras: estamos todos convocados.