Foi o discurso mais marcante da última cerimónia dos MTV Music Video Awards, que decorreu na noite desta segunda-feira (madrugada em Portugal) no Radio City Music Hall, em Nova Iorque. Madonna, que ainda há poucos dias celebrou os seus 60 anos em Marraquexe, deslocou-se à cidade norte-americana para entregar o prémio de Vídeo do Ano da MTV à cantora Camila Cabello, mas fez mais do que isso: durante alguns minutos, recordou como a “rainha da soul” Aretha Franklin, que morreu no dia 15 de agosto, mudou “o rumo da minha [sua] vida” e como um manager lhe vaticinou o fim de carreira depois de uma atuação precisamente nos MTV Music Video Awards. De tão forte, o discurso dividiu opiniões, com muita gente nas redes sociais a criticar o que alguns consideraram um discurso autocentrado de Madonna, a chamar para si o foco de uma homenagem a Aretha Franklin e de uma noite dos VMA.

A homenagem de Madonna à “rainha da soul”. (Theo Wargo/Getty Images)

Ainda assim, no Radio City Music Hall, as palavras foram ouvidas do início ao fim quase sempre em silêncio, com apenas alguns aplausos e gritos pontuais de encorajamento. Madonna começou por recordar como saiu de Detroit “com 18 anos e 35 dólares no bolso”. Na altura, o sonho da cantora era “singrar como dançarina profissional”. “Mas, depois de anos de dificuldades e de viver sem dinheiro, decidi ir a audições em teatros, para fazer musicais. Ouvi dizer que pagavam melhor. Não tinha treino nem sequer a ilusão de algum dia vir a ser cantora, mas decidi ir”, recordou.

Nessas audições, ouviu repetidos nãos, recordou: “Fui rejeitada e recusada em todas audições. Ou não era suficientemente alta, ou não me misturava o suficiente, ou não era bonita o suficiente. Não era o suficiente, nunca era o suficiente”.

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A certa altura, uma sensação da música disco francesa estava à procura de dançarinas e cantoras para fazerem coros numa digressão mundial. Não tinha uma alternativa muito melhor, a alternativa era voltar a ser assaltada, voltarem a apontar-me uma arma ou voltar a ser confundida com uma prostituta na casa do terceiro piso sem elevador em que vivia, que era também uma casa de crack. Sim, sou rebelde de coração [referência da cantora a Rebel Heart, expressão que utilizou para se definir num álbum que editou em 2015].

À recordação do uso de drogas, o público respondeu com aplausos, impressionado com o descaramento e tom desafiante da cantora. E ela prosseguiu: “Portanto, fui às audições. Estavam dois grandes produtores discográficos franceses no teatro, que me desafiaram a ser incrível. A audição de dança correu bem mas depois perguntaram-me se sabia ler música e se tinha alguma canção preparada. Entrei em pânico, tinha ignorado essa parte importante da audição”.

[Homenagem a Aretha Franklin ou mais um discurso egocêntrico de Madonna? Veja no vídeo o discurso.]

Na altura, só havia uma coisa a fazer, recordou Madonna: “pensar rápido”, a refeição seguinte “dependia disso”. “Felizmente, um dos meus álbuns favoritos era o Lady Soul, da Aretha Franklin”. Vai daí, lembrou-se de cantar “(You Make Me Feel Like A) Natural Woman”. “Disse-lhes: sabem? A canção da Aretha Franklin? Eles disseram hm, hm. Olharam para o pianista, que abanou a cabeça. E eu disse: eu não sei ler pautas, mas sei todas as palavras, conheço esta canção do coração, vou cantá-la a capella”.

Percebi que eles não me levaram a sério. Porque é que o fariam? Uma branca magricela aparece ali e canta uma canção da maior cantora de soul que já viveu? [Aplausos] A capella? Disse-lhes: bitch, I’m Madonna. Não, na verdade não disse isso, porque ainda não era a Madonna. Não sei quem era, não sei o que disse, mas entrei em palco e comecei a cantar”.

Quando acabou a cover, Madonna estava “encharcada em suor, dos nervos”. Os produtores ouviram, disseram que lhe ligariam um dia, talvez em breve. As semanas passaram e o telefone tocou. “Era um dos produtores discográficos, que me disse que achava que não era a pessoa certa para o trabalho”. A reação? “Porque porra é que me estás a ligar, então?” A resposta era simples: queria “levá-la para Paris e fazer dela uma estrela”, colocá-la em estúdio com “o grande Giorgio Moroder”, estrela da disco francesa. “Não sabia quem ele era mas soou-me bem. Além de que queria viver em Paris e também queria comer alguma coisa.”

Esse foi o início do meu percurso como cantora. Fui para Paris mas voltei uns meses depois, porque não tinha merecido a vida de luxo que estava a viver, estava errado. Eram boas pessoas, mas eu queria escrever as minhas próprias canções e tornar-me uma música, não um fantoche. Precisava de voltar para casa e aprender a tocar guitarra. Foi exatamente isso que fiz. E o resto é história”.

A conclusão é simples, explicou Madonna: “Provavelmente estão-se a perguntar porque é que estou a contar esta história. Estou a contá-la porque nada disto teria, nada disto poderia ter acontecido sem a nossa senhora da soul [lady of soul], ela levou-me até onde estou hoje e sei que também influenciou muita gente que está nesta sala esta noite. Quero agradecer-te Aretha, por nos dares poder a todas. Descansa em paz. Longa vida para a rainha”.

Madonna parecia ter terminado, mas foi só falso alarme. Faltava ainda revelar uma história desconhecida do público, o que fez antes de “apresentar o vencedor do Vídeo do Ano” dos MTV Music Awards. A história remonta a 1984, à primeira edição dos VMA, que decorreu precisamente no mesmo edifício que acolheu a cerimónia desta segunda-feira. Madonna interpretou o êxito “Like a Virgin” e fê-lo “em cima de um bolo. Quando descia, perdi um sapato, e andei a rebolar pelo chão a tentar que parecesse parte da coreografia”. O momento foi embaraçoso, “fiquei com o rabo à mostra”. Depois daquilo, o seu manager da altura disse-lhe algo que Madonna não se esquece: “Disse-me que a minha carreira tinha acabado”. Provocante, em tom de desafio, aproveitou a edição deste ano para responder: “L-O-L”. Então sim, estava pronto para entregar o galardão à cantora e compositora de “Havana”. Camila Cabello não se fez rogada e, quando subiu a palco, prestou a devida homenagem à estrela pop sexagenária. Os elogios e declarações de amor (“Adoro-te”, “Vi todos os vídeos dos teus singles”, “Vi todos os documentários em que aparecias”) não chegaram e uma vénia selou a passagem de testemunho.