Uma galeria de arte de Lisboa teve um papel fundamental na exposição, divulgação e investigação da fotografia em Portugal e, no entanto, caiu no esquecimento e já poucos sabem que algum dia existiu. Não se tratou de um espaço obscuro, frequentado por meia dúzia de pessoas. A galeria situava-se no centro de Lisboa, teve repercussão na imprensa e nos meios culturais e funcionou entre 1982 e 1994. Até agora, mesmo os estudiosos das artes visuais ignoravam pormenores daquela “máquina de imagens” fundada pelo misterioso António Sena, professor e colecionador de arte, há muito estabelecido na ilha do Pico.

Um ensaio agora publicado, Ether: Um Laboratório de Fotografia e História, de Susana Lourenço Marques, contextualiza a época e recupera a história da galeria, que em rigor foi uma associação cultural e não se limitou a apresentar exposições.

O livro adapta parte da tese de doutoramento que a autora defendeu há dois anos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Vai ser apresentado esta semana no Porto: quarta-feira, às 21h30, no Cinema Passos Manuel, e quinta-feira, às 21h00, na Fnac de Matosinhos (depois de apresentações em novembro no Museu do Chiado e na Fnac Chiado, em Lisboa).

Em entrevista ao Observador, Susana Lourenço Marques – designer, curadora, investigadora e professora na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto – descreve a Ether como “uma associação de promoção e valorização da fotografia em Portugal” e destaca as exposições como a “face mais evidente e regular” do projeto, sublinhando que a designação “galeria” é prática, mas insuficiente. “Era até uma palavra incómoda para eles. No fundo, foi um espaço polivalente com atividades de divulgação, formação, exposição e investigação da imagem”, refere.

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Situava-se no número 25 da Rua Rodrigo da Fonseca, um prédio da família de António Sena, ligada à empresa de baterias Autosil, e em pouco mais de uma década organizou 24 exposições individuais e coletivas de 60 criadores.

O nome exato era “Ether/vale tudo menos tirar olhos”, assim se lia na fachada, a sublinhar a atitude política na abordagem da palavra e da imagem. “Ether” por “razões alquímicas, químicas, técnicas e filosóficas” e “vale tudo menos tirar olhos” porque se trata de uma expressão popular que “dá uma dimensão radical sobre o posicionamento em relação à fotografia em Portugal: já não se podia esperar mais“, declarou António Sena em 1989, num entrevista a Eduardo Paz Barroso publicada no Jornal de Notícias.

Livro nasceu quase por acaso

No início, à entrada da galeria, encontrava-se inscrito um lema que hoje parece vaticinar a época das “selfies” e das redes sociais da Internet: “A importância da fotografia já não advém apenas da utilização que fazemos dela, mas também, e de forma cada vez mais assustadora e amadora, de como ela nos utiliza.”

No interior, “um percurso inexorável, modulado por estantes, secretária, escada ascendente a desembocar numa sobreloja de baixo pé direito – a galeria propriamente dita –, uma claustrofóbica câmara obscura cujas aberturas para o mundo exterior são as imagens nas paredes”, escreveu o crítico e curador Jorge Calado em 1987 no Expresso, lê-se no livro (aspeto depois de obras de remodelação em 1986).

Ether: Um Laboratório de Fotografia e História, editado pela Dafne em parceria com a Pierrot Le Fou e com o apoio do Ministério da Cultura, é o primeiro livro que investiga a fundo a história daquela galeria lisboeta. Uma ideia nascida quase por acaso, depois de a autora ter organizado em 2008 um ciclo de conferências no Cinema Passos Manuel sobre a história da fotografia em Portugal, durante o qual alguns convidados referiram a Ether. “Depois encontrei um texto do Fernando Lopes, publicado em 1983 no Expresso, onde ele mitificava a Ether. Decidi investigar e contar melhor esta história”, recorda.

O papel da galeria “era singular no contexto português”, afirma a autora. “Construíram um contexto vasto de exposições e de investigação e fizeram algo difícil de associar a uma galeria: a produção das próprias exposições, ou seja, eles próprios ampliavam as fotografias que seriam exibidas. Num só espaço concentravam muitas funções e isso era distinto do que se fazia naquela época”, principalmente dos Encontros de Fotografia de Coimbra nascidos em 1980 e considerados uma referência na fotografia portuguesa.

O livro explica que nas décadas de 70 e 80, pela primeira vez, as galerias comerciais começaram a ter um papel na “construção e consolidação de um mercado da fotografia em Portugal” e na “consequente internacionalização”. Mas apenas duas apresentavam “um programa orientado exclusivamente para a divulgação e criação”. A Imago Lucis, do Porto, que surgirá em 1989, e a Ether, nascida em 1982.

Foi esta última que “contribuiu, juntamente com os Encontros de Fotografia de Coimbra, os Encontros da Imagem de Braga ou a atividade das galerias Módulo, Roma e Pavia, Monumental, Diferença e Imago Lucis, para uma profunda mudança na cultura fotográfica em Portugal”, lê-se. Isto numa época em que a fotografia, e não só em Portugal, estava ainda cotada como arte menor, “instrumento sem autonomia nem valor próprio”, como notava o crítico Alexandre Pomar em 1982, num artigo do Diário de Notícias, citado no livro.

“Ether: Um Laboratório de Fotografia e História”, de Susana Lourenço Marques, ed. Dafne, 329 páginas.

A revista com Herberto Helder

Ao que relata Susana Lourenço Marques, a Ether nasceu em torno de uma ideia de António Sena e do poeta Herberto Helder. Queriam abrir uma livraria em Lisboa dedicada à poesia e desenho, a que chamariam Lágrimas de Crocodilo. Em lugar disso, acabaram por concretizar uma revista, “Nova – Magazine de Poesia e Desenho”, com apenas duas edições, em 1975 e 1976. O design gráfico e alguns textos eram assinados por António Sena. “Esta experiência editorial foi o embrião do que mais tarde veio a ser a Ether”, escreve a autora.

Com 29 anos, a 15 de abril de 1982, Sena inaugura a primeira exposição da Ether e Costa Martins e Victor Palla são os primeiros convidados. Título da mostra: “Lisboa e Tejo e Tudo”, baseada no mítico livro “Lisboa, Cidade Triste e Alegre”, que ambos tinham feito publicar entre 1958 e 59, mas agora com imagens inéditas. Gérard Catello-Lopes, Paulo Nozolino, Daniel Blaufuks, António Pedro Ferreira, Carlos Calvet, Helena Almeida, José Loureiro, Jacques Minassian e Johan Cornelissen, entre muitos outros, também foram mostrados pela Ether, com catálogos cuidados que hoje testemunham esses momentos, à falta de registos fotográficos sistemáticos.

Além das exposições, a associação promoveu cursos de teoria e história, um dos quais na Casa de Serralves em 1989. Deu início, sem concretizar por completo, à primeira base de dados informatizada da imagem fotográfica em Portugal, a Luzitânia. E organizou exposições com a Fundação de Serralves e a Europália ’91 (festival cultural na Bélgica). A atividade era financiada por dinheiros públicos e privados, através da então Secretaria de Estado da Cultura, da Fundação Calouste Gulbenkian e de Serralves. O equipamento informático que utilizavam tinha sido uma oferta da Apple e em troca a Ether cedeu imagens para campanhas publicitárias da marca.

Ao longo dos anos, a imprensa generalista dedicou vários artigos à galeria, assinados por críticos como Alexandre Pomar, Fernando Lopes, João Pinharanda, Alexandre Melo ou Jorge Calado. Ao mesmo tempo, surgiram críticas contundentes às escolhas da Ether. Alguns críticos apontavam a rasura de nomes e diziam que o espaço era disfuncional para acolher exposições de pintura (como aconteceu pontualmente). Outros, ainda, censuravam o suposto elitismo das exposições. “Era um meio pequeno, com as vicissitudes próprias”, diz Susana Lourenço Marques ao Observador. “Essas trocas aconteciam com alguma regularidade”.

O momento mais aceso que o livro cita deu-se em 1990, quando a Ether se associou à Casa de Serralves para a segunda edição da bienal Foto-Porto. António Sena era comissário de um núcleo, com obras de Sena da Silva, Paulo Nozolino, Neal Slavin e Christer Strömholm. O artista e crítico António Cerveira Pinto não gostou do que viu e reagiu com ira nas páginas de O Independente:

“Estou farto dos orgasmos vertidos pelo doutor Jorge Calado sobre a Foto-Porto. E estou ‘hasta los narizes’ da sapiência histero-fotográfica do António Sena, bem como do génio patológico de Paulo Nozolino. A Foto-Porto é, apesar dos foguetes provincianamente lançados, uma entre as mil possibilidades de montar, sem grande esforço, nem gastos excessivos, uma mostra de fotografia em qualquer parte do mundo.”

Um dia mudou-se para os Açores

O misterioso António Sena nasceu em 1953 e formou-se em pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (ESBAL) em 1976. É filho do artista plástico António Sena da Silva (1926-2001). Foi professor de educação visual no ensino preparatório, depois deu aulas de Estética e Estudos de Arte na ESBAL e em 1994 decidiu abandonar a Ether e Lisboa. Foi viver para o Pico, nos Açores, onde começou por ensinar história da arte numa escola básica integrada. A mudança surge descrita no livro como um exílio. Em 1998, publicou a “História da Imagem Fotográfica em Portugal: 1839-1997”, que Susana Lourenço Marques considera uma clara consequência do trabalho realizado na Ether.

“A exposição pública que teve enquanto professor em Lisboa e mentor da Ether levou-o a confrontos permanentes e a partir de certa altura passou a gerir muito bem a sua privacidade”, diz a autora. “Por isso é que hoje é muito difícil encontrar informações sobre ele na Internet. Ele nem tem interesse em aparecer como único protagonista da Ether.”

Aliás, o projeto teve outros intervenientes na sua génese: Alfredo Pinto, António Júlio Aroeira, Leonor Colaço, Luís Afonso, Madalena Lello e José Soudo, quase todos estudantes, com direção de António Sena, Luís Afonso, João Francisco Azevedo e Pedro Gonçalves. Legalmente era uma “associação de educação popular, sem fins lucrativos”.

Encontro no Pico

Ainda que possa parecer, o fim da galeria não se deveu às críticas ou a eventuais anticorpos que o mentor do espaço tivesse colecionado nos meios culturais, segundo Susana Lourenço Marques. “Foi uma decisão pessoal, isso é certo. Não se pode estabelecer ligação direta entre a Ether e a decisão dele de se mudar para o Pico. A galeria terminou quando o projeto de vida dele passou a ser no Pico”, explica.

A autora falou pela primeira vez com António Sena em 2009, tendo-lhe explicado a investigação que estava a fazer. “Ele respondeu que tudo o que dizia respeito à Ether já estava publicado e era só coligir. É verdade que há muito material em bibliotecas, mas o acesso não é fácil e havia muita história oral que precisava de recolher. Falei com outros membros da Ether e fui construindo o meu argumento. Mais tarde, acho que ele acabou por aceitar falar comigo porque percebeu que havia algum trabalho feito da minha parte. Voltámos a falar em 2012 e passei quatro dias no Pico, em conversas que se revelaram muito úteis para a minha tese e para o livro.”

Quase 25 anos depois do fim, terá a Ether deixado herança em termos de práticas ou modos de estar? A investigadora responde que “talvez a questão não se ponha”, porque “já não é possível repetir” aqueles métodos. “A Ether foi muito importante e tem a ver com uma determinada época, com o contexto político e cultural dos anos 80 e 90. O mundo mudou muito desde então, os artistas fazem auto-edição, é uma realidade incomparável, mas penso que não conhecer a Ether é não perceber os anos 80 e 90 da fotografia em Portugal.”