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"Lisboa, cidade triste e alegre": o retrato em movimento que de livro passou a exposição

Uma nova exposição celebra a vida intemporal de um dos mais importantes fotolivros de sempre. Vasco Rosa escreve sobre as imagens, os autores e a mostra que inaugura no Museu de Lisboa.

Numa operação de grande alcance que é pouco comum entre nós — pesquisa em espólios, exposição num museu destacado, reedição facsimilada dos fascículos com patrocínio da Leica, mais uma dúzia de ensaios na imprensa e um ciclo de conversas com “especialistas” agendadas para o período expositivo —, Lisboa, “cidade triste e alegre” de Victor Palla (1922-2006) e Manuel Ramos da Costa Martins (1922-96), um foto-livro em sete fascículos de 1958-59 que alcançou o estatuto de mito, volta à ribalta sessenta anos após a sua publicação, numa iniciativa do Museu de Lisboa — Palácio Pimenta, com curadoria de Rita Palla Aragão, neta de Victor, e design de Carlos Bártolo.

Se as aspas do título original não deveriam ter sido rasuradas, pois indicam um verso pessoano, o subtítulo da exposição é feliz e certeiro. Arquitectura de um livro sublinha o invulgar e arrojado projecto editorial construído organicamente com o próprio design gráfico, tornando tal foto-livro uma lição magistral de como justapor imagens e texto (no caso, versos) numa narrativa visual fluída, pautada por fantasiosos ritmos alternados, e que a par e passo avança na pequena surpresa de ora se folhearem folhas inteiras, meias folhas ou páginas duplas desdobráveis, e em que abundantes notas explicativas finais — designadas índice remissivo — fazem as vezes de uma didáctica ou memória descritiva, tanto técnica como pessoal.

Todo o propósito desta construção hiper-dinâmica (em que muitos encontraram motivação cinematográfica, o que não pode surpreender de todo e é, de resto, várias vezes reconhecido pelos próprios autores) já havia sido ensaiado um ano antes, quando os dois arquitectos apresentaram estas suas fotografias em galerias de Lisboa e Porto, mas transpôs-se admiravelmente para o papel impresso, a partir de esquissos página a página laboriosamente decididos, um “material arqueológico” que a actual mostra permite examinar e admirar.

Vasco Medeiros Rosa

Foi não só uma subversão da maneira expositiva do salonismo fotográfico português típico daqueles anos 1950. Foi também a adesão, se não mesmo a sublimação duma tendência internacional, iniciada em Janeiro-Maio de 1955 com a exposição “The Family of Man”, no Museum of Modern Art de Nova Iorque, e que teve demoradíssima itinerância internacional. E foi ainda uma surpreendente prova de excelência estética e oficinal surgida num país periférico vivendo o segundo ciclo duma inegável ditadura política.

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Por outro lado, não é subestimável neste contexto todo o trabalho precedente de Victor Palla e Carmo como capista de muitos livros e designer de publicações relacionadas com o seu ofício de arquitecto, mais de uma década de trabalho gráfico que certamente o familiarizou bastante com as potencialidades técnicas da maquinaria tipográfica do seu tempo, e em especial da impressão em rotogravura, em que o foto-livro foi soberbamente impresso. E menos ainda o facto de o arquitecto, pintor, designer e fotógrafo ter cursado produção e publicação de livros no Arts Council of England, durante meses em 1952.

A paginação de Lisboa, "cidade triste e alegre" opera recortes heterodoxos, inusitados reenquadramentos em close up, ao mesmo tempo que a linguagem fotográfica recorre ao alto contraste e ao granulado para desafiar o cânone estético, exigindo que perfeição técnica passe a ser entendida como "a que mais perfeitamente se adequa à ocasião, ao tema e à intenção do autor".

“O fotógrafo é um bicho […] cheio de curiosidade técnica, amoroso pelos instrumentos do seu artesanato”, explicam Palla e Costa Martins no livro que eles próprios designaram como “poema visual”. A criação dum photobook é, por tudo isso, um desafio instigante, que requer essa dupla competência para que se torne “obra foto-gráfica”, na expressão ainda mais certeira de António Sena, que também se lhe referiu como “um poema do antes e depois da fotografia” (1982).

Os autores do livro: Victor Palla e Manuel Ramos da Costa Martins

De facto, a paginação de Lisboa, “cidade triste e alegre” opera recortes heterodoxos, inusitados reenquadramentos em close up, ao mesmo tempo que a linguagem fotográfica recorre ao alto contraste e ao granulado para desafiar o cânone estético, exigindo que perfeição técnica passe a ser entendida como “a que mais perfeitamente se adequa à ocasião, ao tema e à intenção do autor” (Palla e Costa Martins, 1959). Essa ousadia teria o seu preço, e bem alto preço: o fracasso comercial do projecto, ou, dito dum outro modo, a confirmação de que o público português não estava preparado para entender e suportar esse “objecto estranho”, que na verdade é um livro muito cuidadosamente encenado e único em todos os aspectos.

As fotos da Lisboa triste e alegre dos anos 50

Para círculos muitíssimo restritos, Lisboa, «cidade triste e alegre» ficaria como “o grande acontecimento fotográfico dos anos 50” (a expressão é de Maria Teresa Siza, durante muito tempo directora do hoje afundadíssimo Centro Português de Fotografia, dependente do Ministério da Cultura). Apesar de os fotógrafos terem ido ao programa de televisão “Zip-Zip”, as críticas nos jornais foram inexistentes, excepção feita a uma referência, aliás superficial, ou oblíqua, de João Gaspar Simões em crónica no Jornal de Notícias de 2 de Novembro de 1958.

Comentários entre o elogio fácil e o silêncio difícil também ajudaram ao longo eclipse do livro, que durou até que em Abril de 1982 o fotógrafo, historiador da fotografia e mais tarde resoluto bicho do campo António Sena (uma lucidez e tanto!) literalmente o desenterrou da poeira onde ficaram centenas de exemplares por vender e encapar. Mas fez mais, muito mais; e a presente exposição no palacete do Campo Grande replica, amplia, evoca — e sem dúvida é muito devedora dela, aliás como todos os admiradores deste photobookaqueloutra que em 1982 o autor da História da Imagem Fotográfica em Portugal (Asa, Porto, 1998, 470 pp.) promoveu para a abertura  da sua galeria ether | vale tudo menos tirar olhos, de saudosa memória. Foi falar com Victor Palla e Costa Martins e propôs-lhe organizar uma exposição que fizesse a história ignorada deste livro e mostrasse originais fotográficos.

Tão bem recebido foi o entusiasta e alegre gigante de apenas 29 anos, que pôde restaurar milhares de negativos fotográficos, escolher ele próprio as imagens a expor e a respectiva sequência, mostrá-las sob a égide do mesmo poema de Álvaro de Campos a que havia sido retirado o verso título do livro de 1958-59 (aproveitando todo o duplo sentido da palavra revisitação), apresentar alguns manuscritos e provas de impressão, mas também relançar-lhe a venda, a 2500 escudos cada, a partir de um lote sobrevivente de 200 exemplares com fascículos reunidos e encadernação.

Não deixamos de nos interrogar sobre o que mais poderia ter sido feito caso Lisboa, "cidade triste e alegre" tivesse tido um sucesso imediato capaz de impulsionar e sustentar outras realizações, desde logo um segundo volume, inicialmente previsto.

Imaginemos, por um instante, a aventura de tão fascinante renascimento… Madalena Lello, então ligada ao projecto ether e uma das pessoas que ajudou a montar os fascículos, escreveu em Janeiro de 2007 que “ainda hoje sei de memória toda a sequência do livro”. Todas as fotografias mostradas pela longilínea galeria da Rua Rodrigo da Fonseca, na exposição “Lisboa e Tejo e Tudo”, seriam transpostas para um catálogo-cartaz 50 x 70 cm impresso na competente Litografia Tejo, um objecto também ele exemplar — e de exemplar design, como não podia deixar de ser, feito por quem o fez, tão bem elucidado pelo pai, Sena da Silva (1926-2001).

Vinte e três anos depois, tornara-se possível destacar a experimentação fotográfica e a paginação cinematográfica do obliterado livro português, contemporâneo de photobooks tão celebrizados como New York (William Klein, 1955) e Les Américains (Robert Frank, 1958). Para ajudar a criar uma “cultura fotográfica” que manifestamente faltava ao país, o caso Palla & Costa Martins, exibindo as suas altíssimas qualidades intrínsecas tanto quanto o flagrante défice de adesão pública, servia às mil maravilhas a António Sena para tentar começar a colocar as coisas num outro patamar de exigência e conhecimento.

Na passada, a exposição na galeria ether facilitou a identificação de Lisboa, “cidade triste e alegre” por Martin Parr e Gerry Badgern, para a sua “bíblia” em três volumes The Photobook. A History, publicada pela Phaidon em 2004, que simplesmente não lhe poupa elogios: “um livro vibrante”, “soberbamente impresso”, “um dos mais complexos photobooks modernos na forma e no conteúdo”, “particularmente notável pelo uso de muitas das ideias de como fazer livros desenvolvidas por William Klein e fotógrafos holandeses como Ed van der Elsken e Joan van der Keukeen”, “um compêndio de todas as ideias de design dentro dum único volume”, mas tudo feito de tal modo que “essa cornucópia de estratégias de design poderia torná-lo menos conseguido, e no entanto funciona bem assim” (p. 212).

Cinco anos mais tarde, em 2009, também uma dupla de jovens fotógrafos —  José Pedro Cortes e André Príncipe, donos da pequena editora independente Pierre von Kleist — faria uma nova edição, prestigiada e enriquecida por um comentário assinado por Badgern e por uma esforçada campanha de reconstrução química, matérica e tecnológica da tiragem original. Esgotados dois mil exemplares, apesar do preço um pouco proibitivo de 90 €, uma segunda tiragem foi feita em Outubro de 2015.

Victor Palla, falecido em Abril de 2006, com 84 anos, já não as pôde ver, nem saber que um exemplar de Lisboa seria leiloado em Junho de 2007 por cerca de 13 000 € e pela Christie’s de Londres, nem tão-pouco acompanhar — provavelmente com alguma perplexidade… — o que foi sendo escrito acerca de Lisboa, “cidade triste e alegre”. Ao contrário de Costa Martins, que a solo ainda fez um outro livro de fotógrafo (Uma certa maneira de cantar: reforma agrária, unir, construir, vencer, Avante!, PCP, 1977; 19792), que teve honras de figurar no mosaico da capa do segundo volume de The Photobook. A History (o que não sucedera, afinal, com o livro de 1959…), não reincidiu em projectos deste tipo. A sua crescente actividade de arquitecto certamente não lhe deixava tempo para isso, ou ele próprio não terá tido vontade de repetir o flop da anterior empreitada a custas próprias.

Imagens como a de velhos recortados a contraluz num banco ao sol, ou o jovem cego pedinte de viola saindo do saco de pano numa esquina de bairro popular, são pontos de contacto que valeria a pena notar, ao mesmo tempo que a irradiação geográfica até aos cavadores diante da Torre de Belém estabelece já uma síntese histórica da portugalidade.

No entanto, não deixamos de nos interrogar sobre o que mais poderia ter sido feito caso Lisboa, “cidade triste e alegre” tivesse tido um sucesso imediato capaz de impulsionar e sustentar outras realizações, desde logo um segundo volume, inicialmente previsto. Duas décadas mais tarde, Victor Palla beneficiaria de uma bolsa bianual da Fundação Calouste Gulbenkian para “estudar a importância do grafismo na cidade de Lisboa” — outro tema fascinante para um portfólio fotográfico —, mas do processo conservado no arquivo da instituição não constam fotografias, apenas o relatório de bolseiro, com alguns desenhos.

Creio que não é possível folhear o venerado livro de Palla e Costa Martins sem pensar no contraponto que representa, entre outras, a obra contemporânea de Gérard Castello Lopes — mostrada sob o título de “Lisboa de outras eras, 1956-58”, primeiro na Casa Fernando Pessoa, então dirigida por Manuela Júdice, e depois, por empenho do Instituto Camões e iniciativa do adido cultural na embaixada de Paris, Nuno Júdice, na Maison de la Poésie, em Outubro de 1998. Tanto mais que ela foi apresentada sob idêntica égide pessoana, mas na versão Bernardo Soares do então muito em voga Livro do Desassossego, um tal cotejo pareceria duplamente expectável, sugerível, ou criticamente instigante, mas assim não ocorreu, obliterando uma vez mais a memória de Lisboa, “cidade triste e alegre”.

Nem a vereadora municipal de cultura Maria Calado, nem Nuno Júdice, nem Gérard Castello Lopes, nem mesmo António Barreto, que também escreve no desajeitado catálogo (aproximando, sensatamente, Gérard mais a O’Neill do que a Pessoa), fizeram qualquer referência à extensa e tão profícua campanha fotográfica de Victor Palla e Costa Martins, que decorreu, afinal, nos mesmíssimos anos que foram os da iniciação de Castello Lopes enquanto fotógrafo. E no entanto, imagens como a de velhos recortados a contraluz num banco ao sol, ou o jovem cego pedinte de viola saindo do saco de pano numa esquina de bairro popular, são pontos de contacto que valeria a pena notar, ao mesmo tempo que a irradiação geográfica até aos cavadores diante da Torre de Belém estabelece já uma síntese histórica da portugalidade.

Seja como for, a exposição no Museu de Lisboa aí está para facilitar e estimular todas as revisitações do foto-livro de 1958-59. Nesse sentido, a apreciação de outro notável fotógrafo e designer dessa geração, Sena da Silva, num ensaio de 1973 — “Podemos encontrar em todos os trabalhos de Victor Palla marcas recentes (ou remotas) de numerosas tendências expressivas facilmente rotuláveis, mas só uma apreciação superficial ou tendenciosa poderá confundir as afinidades com a submissão a modelos” — pode servir como excelente ponto de partida.

Pavilhão Preto, Museu de Lisboa — Palácio Pimenta (Campo Grande, 245), de 13 de Abril a 16 de Setembro. Todos os dias das 10 às 18h, excepto à segunda-feira

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