“Foi um descobrimento espanhol com ciência portuguesa. Está-se agora a tentar, por razões políticas, manipular uma evidência científica que não tem discussão possível.” O historiador José Manuel Garcia, autor do livro “A viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses”, não percebe a posição da Real Academia de História de Espanha que, respondendo a um pedido do diretor do jornal ABC, considerou que tudo na primeira viagem de circum-navegação “foi espanhol”.

“Se não fosse o Fernão de Magalhães, que era português, os espanhóis nunca teriam feito aquela viagem. Aliás, nunca mais a fizeram. Ainda tentaram mais três vezes, mas chegavam às ilhas Molucas [Indonésia] e ficavam por lá, porque não conseguiam fazer o caminho de volta por águas espanholas, e acabavam presos pelos portugueses”, conta José Manuel Garcia, especialista na época dos Descobrimentos. No entanto, lembra que o navegador virou costas à coroa portuguesa, depois de D. Manuel não se interessar pela viagem. Acabou por adaptá-la aos interesses espanhóis (contrários aos dos portugueses) e conseguir o patrocínio do rei de Castela.

Este ano completam-se 500 anos da primeira volta ao mundo por via marítima — embora não fosse essa a pretensão do navegador — e a candidatura apresentada pelo governo português à UNESCO para considerar a rota traçada por Fernão de Magalhães património mundial criou polémica com Espanha. Portugal foi acusado de tentar apagar o papel da coroa espanhola na viagem, mas, no final de janeiro, numa declaração conjunta, representantes dos dois governos declararam ter sanado quaisquer divergências.

A solução encontrada foi apresentar uma candidatura conjunta, que envolve também outros países por onde passou a rota de Magalhães, e à qual se junta agora o apelido de Juan Sebastián Elcano, o espanhol que terminou a viagem. Fernão de Magalhães morreu pelo caminho.

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A declaração da candidatura Magalhães-Elcano foi feita a 23 de janeiro pelo ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, e pelo ministro da Cultura espanhol, Josep Borrell.

Fernão de Magalhães e a história de uma viagem que Portugal tentou impedir

Agora, e depois de os executivos ibéricos terem resolvido todas as questões diplomáticas, é a Real Academia quem vem dizer que a primeira volta ao mundo é totalmente espanhola. E argumenta que Magalhães estava desavindo com a coroa portuguesa, tendo alterado o seu nome para a grafia espanhola, considerando-se a si próprio súbdito espanhol. Apesar disso, José Manuel Garcia lembra que o navegador não deixa de ser português.

“E era mesmo português, nascido no Porto, e não em Sabrosa, como alguns defendem. A questão da mudança de nome tem fundamento. Quando foi para Espanha, cortou completamente relações com Portugal, mudou o nome para Fernando de Magallanes, e recusou sempre voltar ao seu país, apesar de muitos embaixadores de D. Manuel lho terem pedido. No seu testamento, mantinha o brasão, mas escrevia que os seus herdeiros teriam de ir viver para Espanha e adoptar o nome Magallanes. O irmão dele nunca quis fazer isso e a herança acabou por perder-se.”

Quanto a uma suposta “desnaturalização” de Fernão de Magalhães, diz “haver dúvidas” de que isso tivesse acontecido no século XVI. “Mas é verdade que ele nunca quis voltar para Portugal.”

A primeira viagem de circum-navegação foi iniciada por Fernão de Magalhães (a vermelho) e terminada por Elcano (laranja)

Fernão de Magalhães “aborreceu-se com o rei português”

A ciência, essa, aprendeu-a no país em que nasceu. “Toda a parte política e económica da viagem é espanhola, a ciência é portuguesa. Não há discussão possível. Fernão de Magalhães só foi ter com os espanhóis porque se aborreceu com o rei português. Não se entenderam por causa de uma reivindicação salarial e ele, para se vingar do rei, quis provar que as ilhas Molucas eram espanholas e não portuguesas. Enganou-se por pouco, por 5 graus de longitude, mas eram, de facto, da Coroa Portuguesa.”

No século XVI, vigorava o Tratado de Tordesilhas, celebrado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela para dividir as terras “descobertas e por descobrir” fora da Europa por ambos os reinados. As ilhas Molucas, na Indonésia, estavam no limite do território dominado pelos portugueses. E esse é outro aspeto importante, refere o historiador.

Em 1519, Fernão de Magalhães não pretendia sequer fazer uma viagem à volta do mundo. A sua única missão era provar que as Molucas, onde já tinha estado em 1511, eram de Carlos V, e assim permitir à Espanha enriquecer com o comércio do cravinho, irritando D. Manuel I.

Carlos V só se meteu na viagem porque acreditou na capacidade científica de Fernão de Magalhães que lhe apareceu com mapas como ele nunca tinha visto antes, com uma concepção científica rigorosíssima dos portugueses Pedro e Jorge Reinel [pai e filho que foram considerados os melhores cartógrafos da sua época]. O Fernão de Magalhães tinha naquela altura uma noção do mundo muito mais rigorosa do que todos os espanhóis juntos”, defende o autor de “A viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses”.

“E não era sequer o único português. Para além dos mapas serem dos Reinel, os três principais pilotos da armada eram portugueses: o Vasco Galego, o João Carvalho e o Estêvão Gomes. No total, Fernão de Magalhães levou com ele mais 31 portugueses”, diz José Manuel Garcia. Para a viagem até às Molucas, que acabou por se transformar na primeira à volta do mundo, o rei espanhol entregou a Fernão de Magalhães uma armada de cinco naus, com 237 homens. Só regressaria a comandada por Elcano.

Pelo caminho, o navegador português dobrou o Estreito a que se deu o seu nome e descobriu as Filipinas. A travessia do Oceano Pacífico, por águas espanholas, só foi possível graças à mestria de Magalhães.

“Repare, tudo o que foi descoberto de novo, a parte do ‘por mares nunca dantes navegados’, do Rio de Prata até às Filipinas, foi com o Fernão de Magalhães à frente, a comandar com mão de ferro. O que aconteceu é que, depois de ele morrer, os espanhóis não conseguiram fazer o caminho de regresso pela rota prevista. O Gonzalo Gomez de Espinosa ainda tentou voltar pelo Pacífico, que eram águas espanholas, e não conseguiu, e o Elcano percebeu que se tentasse fazer o mesmo, também não ia conseguir. Então, contrariando todas as ordens do D. Carlos V, voltou por águas portuguesas, regressou pelo hemisfério oriental [que segundo o Tratado de Tordesilhas era dominado pelos portugueses], pelas águas do Oceano Índico”, ou seja, explica o historiador, numa volta completamente ilegal e contrariando as ordens da coroa espanhola.

O Elcano pensou que quando chegasse com a nau carregada, o rei ia fechar os olhos. Mas, de facto, o Carlos V escreveu, desde o início, logo nas primeiras instruções que deu ao Fernão de Magalhães que não podia navegar por águas portuguesas. E chegou a escrever ao rei D. Manuel a garantir que não iam tocar na parte portuguesa do mundo.”

A importância de Elcano para a viagem de circum-navegação não é sequer posta em causa pelo historiador que lembra que para fazer a rota estabelecida por Fernão de Magalhães era preciso seguir timings apertados, por causa das correntes. Se assim não fosse, a tentativa acabaria sempre em desastre.

As questões políticas e o editorial do ABC

Por tudo isto, José Manuel Garcia acredita que o regresso da discussão — num momento em que os dois governos acordaram em apresentar uma candidatura conjunta à UNESCO da rota Magalhães-Elcano — “é puramente política”.

“Não há quaisquer dúvidas do papel de cada um. Está-se agora a tentar, por razões políticas, manipular uma evidência científica. Não faz sentido”, diz o historiador que esta terça-feira, às 17h00, dá uma palestra sobre o tema na Academia de Marinha, em Lisboa.

Em Espanha, a direção do diário conservador ABC tem levantado uma série de questões relacionadas com as comemorações dos 500 anos da viagem, acusando o governo socialista de Pedro Sánchez (PSOE) — que convocou eleições antecipadas para abril — de não estar à altura das mesmas.

Com eleições à vista, Sánchez estende a mão a todos mas ninguém a aperta

Aliás, foi no seguimento de uma petição do diretor do ABC, Bieito Rubido Ramonde, que a Real Academia espanhola emitiu o seu comunicado. Este domingo, 10 de março, o editorial do jornal espanhol tinha como título “Grandes heróis para tão pequeno governo”.

“Depois da petição do ABC, a Academia de História certifica que o feito de Magallanes-Elcano é totalmente espanhol, aniversário que o executivo de [Pedro] Sánchez se recusa a comemorar como deve”, lê-se logo no destaque do texto. “O passado glorioso de Espanha envergonha o Governo de Sánchez”, começa o editorial, que acusa o governo de só enaltecer o passado republicano, deixando cair no esquecimento os feitos de Fernão de Magalhães, Elcano e de Hernán Cortés.

É indigno para uma nação como a espanhola que as suas autoridades imponham um apagão histórico a todo que lhe permita ter orgulho do seu passado, enquanto essas autoridades agitam as brasas da discórdia e da vingança”, continua o editorial.

“Cortés, Magallanes e Elcano são expressão do que à sua época significava estar ao serviço de grandes ideais e contribuíram para ampliar os limites da civilização, então representada pela coroa espanhola”, lê-se no texto que assume que, no entanto, seria um “despropósito” reivindicar para os dias de hoje políticas imperialistas como as de então. Ainda assim, considera um erro negar aqueles episódios de heroísmo. 

“A mentalidade mesquinha do governo socialista e o absurdo complexo de culpa perante a nossa história estão a contribuir para perder uma grande oportunidade de reivindicar os feitos de nossos compatriotas. Estão a contribuir para que a Espanha duvide de si mesma em tempos em que é mais necessário do que nunca afirmar a nossa identidade nacional”, conclui o editorial do ABC.