Nos anos da contracultura, idos de sessenta, o ID era parte do vernáculo dos navegadores da mente, era tido como o destino incerto do subconsciente, um poço profundo onde somente se manifestavam os instintos mais básicos, desde a fome ao prazer. Hoje, 50 anos depois, foi atrás desta forma involuntária de movimentos que foi montada a programação do primeiro ID No Limits, um festival de música eletrónica que busca este momento suspenso, de corpos à deriva encontrados na pista, e mais, nas entrelinhas, e entre as batidas, está uma vontade de dar a esta gente diversa um chão comum para dançar.

Outrora, pelo LX Factory e Beato, o Lisboa Dance Festival andou nestas mesmas andanças, e agora, esta mesma sensibilidade para identificar identidades musicais urbanas renasceu no ID, no improvável Centro de Congressos do Estoril. Como diria Dino D’Santiago, “Qualé ideia?”. A proposta do festival é, a meros passos da pastelaria Garrett, coqueluche da classe alta portuguesa, numa das zonas de distrito de Lisboa mais incólumes pela mudanças das vontades, apresentar um ideal utópico de sociedade marginal em convívio. Para facilitar, chamemos a este conceito alargado de “música urbana”. E o que é esta música lisboeta urbana? É o êxtase das noites Príncipe no Musicbox, os jogos de luzes hedonísticos do Lux, a informalidade do Damas? Prossigamos com Dino, parte preponderante deste certame, célebre oráculo que canta “Nova Lisboa”, que convida a deixar estas conceptualizações de lado e mergulhar nas profundidades do subconsciente: “Se o batuque vai, deixa andar”.

Primeiro dia

No Centro de Congressos do Estoril, o batuque desafiou a imponente entrada envidraçada, que pulsa ruidosamente, sob o olhar de uma longa fila de curiosos, e mais preocupante, sob o olhar da esquadra do Estoril, desacostumada a estas demonstrações de modernidade. Sem arredar pé da entrada, a mostrar serviço, um polícia duvida da eficiência legislativa do festival estreante. “Desculpe, tem a licença de ruído?”, agita o boné, franze a testa e garante: “É que já começaram as reclamações”. A produtora encolhe os ombros, deixa-se deslumbrar pelo nervoso miudinho que antecede qualquer estreia, escapam-lhe as palavras de elucidação, nomeadamente, que este grave que aterroriza a vizinhança tem razão de ser, está impregnado na identidade costeira Oeste dos Estados Unidos, é banda sonora de gangster, ou melhor, podia ter dito sem rodriguinhos: é o Madlib, senhor polícia.

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Madlib

Uma recriação da cena icónica do “Parque Jurássico”, aquela em que a água dentro do copo é progressivamente agitada até revelar um dinossauro, é a melhor imagem para descrever o primeiro dia do festival, desde as casas-de-banho ao bengaleiro, uma tremedeira propaga-se pelas estruturas do edifício e os baixos portentosos perdem-se pela grandiosidade do hall, onde está Madlib no palco principal. Nada que incomode o produtor norte-americano na sua estreia em solo lusitano, ou sequer o público ainda amorfo, repleto de pessoal tão moderno que deixou de dançar, já diziam os de Barcelos. O local inusitado do concerto trouxe uma especial variedade de ditas tribos urbanas, desde os que jogam em casa, surfistas bronzeados e outra gente discreta da Linha de Cascais, aos visitantes, entre eles, um orgulhoso almadense, de cabelo rapado, cap e pochete atravessada, à bandido mexicano, e mais, uma miúda de gorro e calças Lacoste, argolas nas orelhas, e ao fundo, perto de palco, no seu próprio mundo, dança de olhos cerrados um rapaz de top tigreza, calças justas e batom que deve saber a vinho, a ser só muito vaidosa.

A utopia social igualitária deste festival é cumprida a preceito, somente as batidas em todos os seus formatos e possibilidades são permissivas a esta união de pessoas improváveis. E se a música não bastar, aparentemente existe outro fator agregador. “Onde é que estão os charutos”, pergunta a luso-angolana IAMDDB, num sem jeito adorável, próprio de quem ainda dá os primeiros passos, a receber em resposta uma valente fumarada, e até, atirados ao palco, dois talvez-estupefacientes prontamente enrolados.

Entre a nuvem de derivados que foi o tema comum deste primeiro dia, IAMDDB surpreende: “Poças, eu cheguei em casa, vocês nem sabem a história, eu Diana de Brito nasci em Cascais”. Aos 23 anos, a história é de uma miúda que foi de Cascais para Manchester e conseguiu ser indissociável da nova cena da capital das raves. Será a música urbana portuguesa isto, uma mesma marginalidade sem fronteiras, como defendem Branko e Kalaf, estando até este último entre a plateia de olho semicerrado, que acorda para cantar “Shade”, e prossegue enfim, no mesmo transe molengo. Ou será que a César o que é de César, e este R&B escorreito é propriedade anglófona? No palco, de cabelo arregaçado, Diana elucida as nossas dúvidas: “Sou portuguesa, ‘tás a ver”.

Segundo dia

“É o Conan Osiris da Venezuela?”, deixa no ar uma das tantas pessoas à entrada do palco principal, que não arriscam aproximar-se demasiado da performance de Arca, não vá esta transgressão musical e de costumes ser contagiosa. Mas cuidado, assim como Conan, este músico multifacetado vai ao desafio, desce para a plateia, atravessa o hall e canta em cima de um pedestal na outra ponta do recinto, a provar afinal, a polivalência do Centro dos Congressos, num segundo dia de acústica devidamente calibrada.

Arca

Possuído, porventura pela garrafa de champanhe em frente, ou pelas imagens sadomasoquistas no ecrã, manobra como cientista louco este folclore cibernético, alterna o canto entre o palco e os devotos da plateia, para estarrecimento geral da população resguardada longe deste cataclismo. A estupefação é tremenda, e em frente ao palco, os súbditos de salto alto, maquilhagem desbotada, bodies cor-de-rosa, sabem que no fundo isto não tem nada que saber, é novamente, como Dino D’Santiago explica, uma questão de soltura: “Vem, sente, sente, sente esta nova Lisboa”.

O músico venezuelano sai do palco como chegou, de cuecas e mala de cabedal, agradecido pelo magro público para a magnitude deste artista. O culpado não é apenas um certo preconceito, é mais de que isso, é um tipo que aqui ao lado faz uma palestra de groove: Kamaal Williams. No auditório, pouso altamente improvável, só um músico com truques na manga consegue obrigar o pessoal a ficar em pé, quando mesmo aqui a bater nos gémeos, estão cadeiras de conforto sublime. Felizmente, os recursos do londrino são infinitos, todos resistem à tentação do mal, estão em pé compenetrados com cada subtileza, contratempo, efeitos no pedal e floreados deste pianista de mão cheia, entre a rica tradição do improviso virtuoso à invasão alienígena proposta por George Clinton. O som abafado do auditório é um coração palpitante em uníssono, estão todos nesta mesma nuvem de groove, este é o ID que agita o subconsciente, esqueçam os tetos baixos, os engravatados, esta comunhão são os clubes de jazz dos nossos tempos.

O sentimento de pertença é gritante no último concerto do auditório, Dino D’Santiago, a transfiguração deste conceito global urbano que o ID procura atingir, o músico que nasceu na Quarteira e está prestes a ser do mundo. O caldo de funaná, aprimorado por Ferro e Gaita, pelas excursões caribenhas de Tito Paris, está entornado neste chão comum que todos os lisboetas pisam, a batida nervosa, que resulta numa pop que podemos chamar de nossa, e melhor, que podemos vender lá fora como pãezinhos quentes. E para quem ainda não está convencido pelo cantor charmoso, esponja de todas as convulsões musicais da capital, fique atento, como diz na camisola de Dino, isto “Não é um sonho”. Infelizmente, a configuração da sala não permite aos devaneios de bailarico bravo, reminiscências de B.Leza, os corpos colados, resta uma dança sem par, cada um por si. Porém, quando se canta “Nova Lisboa”, emerge um clima de doce harmonia, somos todos um mesmo corpo dançante, urbano, orgulhoso, e porque não, crentes nesta sintonia da identidade equalitária.