O que se passaria com Erykah Badu? A dúvida assaltava todos aqueles que esperavam há longos minutos pelo seu concerto, no Parque da Cidade do Porto, na última madrugada. Ao contrário do que aconteceu com todos os outros concertos da edição de este ano do NOS Primavera Sound, festival de música que começou na passada quinta-feira e que terminou na madrugada de este sábado para este domingo, 8 para 9 de junho, a hora do concerto chegava e nem sinais da cantora. Passaram-se dez minutos, vinte, meia hora: e só à 1h05, 35 minutos depois do esperado, fez-se escuro no palco e começou a ouvir-se uma música de introdução ao concerto.

[O ambiente e o público, no último dia do NOS Primavera Sound:]

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Aqueles que acreditaram que os primeiros sons vindos do palco principal significariam que Erykah Badu estava prestes a entrar tiveram de aguardar mais três minutos, ver um técnico andar (o mais discretamente que conseguiu) com uma lanterna pelo meio do escuro e só então fez-se luz: bem no centro estava já a banda que acompanha a cantora e instrumentista, preparada para a receber com um vestido verde, o que pareciam ser ramos de árvores na cabeça e umas folhas esverdadas na mão.

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O visual invulgar lembrava preces xamânicas, mas não é uma novidade na cantora norte-americana e até se adequa bem ao tom transcendental da sua música, para o qual os coros de soul espiritual muito contribuem. Responsável por um dos concertos com mais público da última noite do NOS Primavera Sound — o segundo com mais gente, logo a seguir ao de Rosalía —, Erykah Badu foi sobretudo cantora e líder de uma big band de soul (infundida de jazz e hip-hop dos anos 1990) apurada, neste concerto no Porto.

Com tranças no cabelo, pose de líder espiritual, ora a cantar ora a dançar e entoar onomatopeias ao microfone, a cantora revisitou os grandes êxitos de carreira bem suportada pela sua comitiva de concertos. A dada altura, Erykah Badu — já depois de agradecer a presença de fãs nesta estreia no Porto — sondou o público para averiguar a sua idade e apercebeu-se que a maioria nascera, “como já esperava”, na década de 1990, aquela que a notabilizou na música americana. Felizmente, esta soul não tem prazo de validade e a cantora recordou até que teve o seu primeiro filho em 1997, ano em que editou o seu primeiro álbum, Baduizm. A música, acrescentou então, foi a forma de comunicar com o bebé: não conseguindo fazê-lo por palavras, era possível apenas fazê-lo através de “frequências, vibrações e tons” . Lição da história: “Andei à espera que os bebés dos anos 1990 crescessem para poder falar [com eles] desta porra”.

Erykah Badu em novembro de 2017. A cantora e compositora recusou ser fotografada durante o concerto do último sábado, no Parque da Cidade do Porto (@ Ethan Miller/Getty Images for BET)

O público respondeu bem e Erykah Badu também teve mérito nisso, puxando amiúde por ele com criatividade (“people on the right we can go all night, peope on the top we don’t stop”, desafiou a dada altura). Alguns dos momentos merecedores de destaque foram as interpretações de “Out My Mind, Just In Time” — do álbum New Amerykah Part Two (Return of the Ankh), de 2010 —, com arranjos subtis e um belíssimo destaque dado ao teclista, e de “Apple Tree” e “Other Side of The Game”, ambos do já citado Baduizm.

A banda, o coro e Erykah Badu estavam coordenadíssimos, dialogavam uns com os outros através do groove e balanço soulful dos arranjos, das jam e dos coros, a piscar o olho, aqui e ali, à eletrónica espacial e ao afro-beat, com percussões (mais e menos tradicionais), baixo e teclados bem no centro. Num dos agradecimentos ao público, Erykah Badu afirmou: “Obrigado! Isto é a minha terapia”. Com ar de xamã de uma tribo talentosa, Erykah Badu deu a entender que a música lhe serve como ferramenta de ascensão, de combate aos problemas diários e transcendência espiritual. A coisa correu tão bem que a larga maioria esqueceu o atraso e não só esperou por Erykah Badu — coisa que esta agradeceu, sem mais explicações — como a aplaudiu veementemente. Só um drone aéreo não a agradou especialmente: “O que é aquela coisa na porra do céu? É a CIA?”, perguntou retoricamente, antes de fazer uma pausa e posteriormente concluir: “Lembrem-se que sou uma artista e sou sensível face às minhas coisas”.

Diferente, bem diferente, foi o concerto de Neneh Cherry no palco Pull and Bear (uma espécie de anfiteatro natural, com pinheiros, relva e tons verdes dominantes), que antecedeu a atuação de Erykah Badu. Resgatando também êxitos antigos, como o clássico “7 Seconds”, Neneh Cherry terá chegado ao NOS Primavera Sound mais pelo trabalho recente que desenvolveu com o produtor de música eletrónica Four Tet. O trabalho já deu origens a dois álbuns, o último dos quais, Broken Politics, especialmente elogiado pela crítica, e não só deu uma segunda vida à cantora sueca como iluminou um passado mais obscuro do que o de Erykah Badu, cujo Baduizm é ainda um disco de referência nas coleções de muitos melómanos.

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Dividindo-se entre cantar ao microfone com o “pé” montado ou retirá-lo da base e cantar enquanto percorria o palco, Neneh Cherry atuou acompanhada por uma banda que levou dança a muitos frequentadores do festival NOS Primavera Sound deste ano. A interpretação do clássico “7 Seconds” foi um sucesso, claro, mas foi quando cantou temas como “Synchronised Devotion” e “Natural Skin Deep” (mais o primeiro, ainda assim) que a cantora melhor confirmou que está com vitalidade plena e que está a reinventar-se inventando um futuro auspicioso.

Jorge Ben brilhou, a descendência (O Terno) também

O que passou e com força pelo último dia de concertos do NOS Primavera Sound deste ano foi o tropicalismo brasileiro. Primeiro chegou via O Terno, com as magníficas canções do último disco da banda de Tim Bernardes, <atrás/além>, mas também através temas mais antigos, recuperados de anteriores trabalhos da banda.

Os três membros — o vocalista, guitarrista e compositor, o baterista e o baixista — apareceram em palco sorridentes, apresentando-se devidamente: “Olá, boa tarde, somos O Terno, sejam muito bem vindos”, referiu Tim Bernardes, que acabou por tocar guitarra e cantar sentado no centro do palco, secundado pelo baixista e pelo baterista. O vocalista e letrista estava notoriamente de bom humor, chegando a pedir para o avisarem se estivesse a falar português do brasil “demasiado rápido”, porque não queria ninguém confuso.

O concerto, curto (durou perto de 45 minutos), deixou água na boca para futuras atuações, prometidas pela banda no final da atuação — até com uma espécie de desejo de prazo já confessado e anunciado, “esperamos voltar logo, com um show completo, no início do ano que vem”. Foi uma maravilha, não fosse O Terno uma melhores bandas brasileiras a aparecer nas últimas duas décadas: arranjos de muito bom gosto, do samba-rock à alegre melancolia que tão bem caracteriza o Brasil, com tiradas poéticas e românticas sobre vivências quotidianas e medos (“o medo do silêncio, do vazio, a solidão”, canta Tim Bernardes no último disco).

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“Tudo o Que Eu Não Fiz” começa lamento solene e acaba em desejos expressos em rock tropical, que também paira por “Atrás / Além”, o tema que deu título ao álbum. “Pegando Leve” é um dos singles do ano e ouviu-se especialmente bem ao sol, ainda a espreguiçar da semana de trabalho e “Não Espero Mais” uma das incursões em canções mais antigas e uma passagem mais direta pelo rock, trocado no último disco da banda por um tom globalmente mais sereno e contemplativo. “Bielzinho / Bielzinho”, escrita por Tim Bernardes para o baterista da banda (Gabriel), foi samba bom dedicado “diretamente para o Jorge Ben”, isto é, para Jorge Ben Jor, mestre maior do samba-rock, referência da música brasileira do último século (em especial dos anos 1960 e 1970), craque absoluto da ginga do funk goiaba que atuou mais tarde no palco principal.

Houve, como se esperava, festa rija ao som do veterano brasileiro Jorge Ben Jor, ao final da tarde e início da noite (são 20h, ainda está luz do dia, é meio tarde meio noite?). O cantor e guitarrista e a sua banda alargada, que toca “sempre sorrindo” como o líder quis sublinhar no final, misturou o funk — não o de Anitta, mas o funk negro vindo dos EUA — com o samba para tornar o palco NOS um sambódromo. À sua frente, milhares ficaram deliciados a dançar “Minha Menina” (“pois ela é minha menina / e eu sou o menino dela”, cantava Jorge Ben lá do fundo), a gostosa “Quero Toda a Noite”, “Por Causa de Você Menina”, “Zumbi” ou “Mas Que Nada”. A ponta final então foi de êxtase na plateia, com “Umbabarauma”, “Fio Maravilha” e essa grande canção, infelizmente com versões alheias que a denigrem injustamente, que é “País Tropical”. Não foi só gostoso de mais, foi histórico.

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Prejudicados pela sucessão de concertos, Lucy Dacus e os Big Thief não tiveram talvez o público que teriam noutro contexto, se a primeira não enfrentasse a concorrência dos segundos após uma boa dose de canções e se os segundos não tivessem a concorrência de Jorge Ben na ponta final do seu concerto. No entanto, o que espreitámos permitiu ver bons indícios.

Lucy Dacus mostrou-se surpreendida com a afluência do público ao seu concerto — disse que os Big Thief eram a sua banda preferida e que não percebia porque é que as pessoas estavam a vê-la a ela — e reservou para a ponta final a sua melhor canção, “Nightshift”. Antes, a guitarrista e cantor de indie-rock nascida no estado da Virginia disse que a única coisa que não estava perfeita ali era o vento que lhe estava a atirar o cabelo para a boca e tocou temas como “Addictions”, “Yours and Mine” (canção sobre andar farta do seu país, os EUA), “My Mother and I” (tema que escreveu para a mãe) e “Pillar of Truth”, que compôs a pensar na avó e na qual a dada altura canta “sou fraca por comparação contigo, um pilar de verdade”.

Já os Big Thief foram, por sua vez, vendo a quantidade de público no seu concerto aumentar gradualmente ao longo do espetáculo, até ser hora de a maioria abandonar o palco Seat para rumar ao palco principal onde estava Jorge Ben Jor. A banda de Brooklyn, Nova Iorque, que tem Adrianne Lenker como guitarrista e vocalista, foi ao Porto apresentar o seu terceiro e novo álbum, U.F.O.F., editado já este ano.

A fórmula não é inusitada, são canções de amores e sobretudo de desamores, encontros e sobretudo desencontros, cantadas com sobriedade e melancolia outonal. A execução, porém, é muito boa, com a interpretação dos temas ao vivo a não dever nada (quanto muito acontecerá o contrário) às gravações de estúdio. Lenker regozijou-se com “a brisa porreira” que atenuava o impacto do calor e sol, disse que toda a gente que a ouvia parecia “ser linda”, surpreendeu-se com a quantidade de óculos de sol — “nunca vi tantos”. As interpretações de “Capacity” — tema que deu título ao segundo álbum, editado em 2016 — e “Mythological Beauty”, pelo menos, pareceram pontos altos e merecem nota 20.

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