“Tenho uma história marada”, disse-nos Gabriel Ferrandini, de sorriso estampado na cara. Estava sentado no piso superior da Galeria Zé dos Bois, a sala de espetáculos, galeria expositiva e espaço de criação artística do Bairro Alto, em Lisboa, uma espécie de segunda casa onde passa muitas horas a ver concertos, a atuar e a conviver com amigos. Nesse dia, uma tarde quente de verão, Gabriel deixara em casa camisa e fato, indumentária habitual para entrevistas com sessões fotográficas (e, no caso específico da camisa, muitas vezes também de concertos). Estava confortavelmente sentado e confortavelmente vestido, de t-shirt e calções.

Baterista proeminente de 33 anos, amplamente elogiado pela crítica especializada — nacional e internacional — nos universos musicais do free-jazz e da música improvisada, Gabriel Ferrandini falava na sua “história marada” a propósito de uma pergunta sobre o motivo de os nove temas do seu álbum de estreia, Volúpias, terem nomes de ruas de Lisboa. “Nasci nos Estados Unidos, o meu pai é de Moçambique e a minha mãe é meio brasileira, meio italiana, meia espanhola. Vivemos em Los Angeles e depois viemos para aqui. Já fiz muito trabalho cá, mas sendo esta a minha primeira ‘cena’, há finalmente uma afirmação de chão”, apontou ainda.

Se a camisa e os fatos com que é habitualmente fotografado foram deixados de parte nessa tarde, também o discurso — com abreviações, anglicismos, coloquialismos e maneirismos constantes, da “cena” ao “tight”, do “epá” ao “gig” — soava descomplexado, alinhado com a música desempoeirada que Gabriel Ferrandini haveria de descrever como sendo “de rebelião”. Música que é jazz de desafio e improviso, que se liberta dos coletes de força dos standards do passado, que é uma procura de um futuro novo que Gabriel busca há mais de uma década entre a melodia e o ruído, a fúria e o silêncio, a energia frenética e a quietude.

Talvez o seu percurso musical, que resulta agora num álbum de estreia enquanto compositor — já disponível em versão digital, com edição física praticamente a chegar às lojas e primeira apresentação ao vivo agendada para esta terça-feira na Culturgest, em Lisboa — tenha algo a ver com a “história marada” a que Gabriel Ferrandini se refere. Uma história que passou por LA e pela “LA portuguesa” o “monte do Estoril”, para onde foi viver com a família aos 10 anos, já que “aquilo é meio Califórnia”, como nos disse sorridente. Uma história que logo após a mudança para Portugal traduziu-se numa linguagem falada que, tal como a linguagem musical que viria a desenvolver depois, quase ninguém percebia mas que talvez não tivesse também de ser decifrável.

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A capa do disco ‘Volúpias’, de Gabriel Ferrandini (ed. Clean Feed)

À linguagem que ninguém percebia, os pais chamavam zulu. Gabriel Ferrandini explicou: “Em casa, naquela altura, falava português do Brasil, porque o meu pai é de Moçambique mas viveu muitos anos no Brasil”. Já a viver na “LA portuguesa”, Gabriel foi “para uma escola inglesa, super british, mas o inglês que falava era o americano, que ouvia nos EUA. De repente já misturava o inglês dos EUA com o inglês britânico da escola, com o português do Brasil de casa e com o português de Portugal do dia-a-dia. Durante uns tempos só os meus pais é que percebiam o que dizia, gozavam e diziam que falava zulu”.

Foi o próprio que arriscou o paralelismo entre a mistura de idiomas e proveniências desse “zulu” que falava em criança com a música que tem vindo a fazer há mais de dez anos, com o gosto pelo improviso e com a vontade de contornar as “regras” de que se continua a afastar, até no (supostamente) já livre panorama da música improvisada e do free-jazz. “Acho que às vezes isto do jazz até aparece aí, dessa maluquice e dessa linguagem toda”, disse-nos. Mais tarde, o jazz apareceu-lhe então e pareceu-lhe livre. O free-jazz seguiu-se e pareceu-lhe liberdade ainda maior, tanto que os últimos anos foram passados como um dos instrumentistas portugueses mais enaltecidos da vanguarda jazzística nacional.

Agora, tudo isso não vai para as urtigas mas fica para trás: com Volúpias, disco que compôs e que gravou com a companhia do saxofonista Pedro Sousa e do contrabaixista Hernâni Faustino, Gabriel Ferrandini já não é só o músico e baterista, é o compositor que se libertou de “vícios” adquiridos há anos. Volúpias é uma espécie de língua de fora deitada à sua história passada e às convenções do jazz improvisado, que Ferrandini vira aqui do avesso. Ou é, pelo menos, um caminho alternativo a esse em que se notabilizou e em cujas águas certamente continuará a navegar, uma resposta a “um momento de insatisfação e de pequena revolta” que dificilmente não entrará nas listas de “melhores álbuns de jazz do ano” de publicações por essa Europa fora. Na promoção do concerto desta terça-feira, a Culturgest chama-lhe “fenomenal disco de jazz”. Ainda bem que não fomos nós.

Demora? “Estava a fazer montes de coisas”

Há mais de dez anos membro do Red Trio, formação de free-jazz que o uniu ao contra-baixista Hernâni Faustino e ao pianista Rodrigo Pinheiro, Gabriel Ferrandini tem estado um pouco por todo o lado nos universos da música improvisada e free-jazz dos últimos anos. Já tocou com músicos como Thurston Moore, Nate Wooley, Alex Zhang Hungtain (Dirty Beaches), David Maranha, Elias Bender (Iceage), Ryley Walker, Rodrigo Amado (integra o Rodrigo Amado Motion Trio), Filipe Felizardo e Pedro Sousa, com quem formou o duo Peter-Gabriel, entre tantos outros. A multitude de projetos e discos em que participa sucedem-se aliás a um ritmo tão frenético que é difícil enumerá-los a todos.

[“Volúpias”:]

O percurso como instrumentista já durava há mais de uma década quando Gabriel Ferrandini começou a sentir um impulso mais forte para compor para um disco, algo pouco habitual num baterista. “Estudei, tive aulas de harmonia e sabia escrever minimamente [música], tinha algumas noções, mas não sou um compositor e essa era uma capacidade que já tinha perdido desde a escola”, contou ao Observador, referindo-se às aprendizagens no Hot Clube de Portugal, por onde passou.

A vontade de escrever não é recente, mas Gabriel Ferrandini explica a demora, “estava a fazer montes de coisas, estava a aprender” e tinha “várias bandas que são sérias e exigem muito tempo”. O clique que o levou a decidir-se aconteceu por vontade de fazer uma guinada na música que andava a fazer, “teve a ver com uma fase em que senti que podia estar a ter certos vícios naquilo que é a música improvisada”, talvez também “com um excesso de conforto com o papel de baterista, com estar sempre ali atrás a ajudar o pessoal e querer agora ter mais responsabilidade, pôr-me num papel novo e desconfortável”. Esse papel passava agora por criar música fora dos limites do palco, onde também compõe no momento, durante os improvisos.

As composições, contou, surgiram-lhe em momentos tão banais como “cantarolar no chuveiro”, começaram com “melodias” que lhe “apareciam na cabeça” e que tentava depois passar para o papel. “Depois tinha lá a minha pianola para ver se corria bem. Claro que pegar numa caneta e começar a escrever… para mim não foi nada fácil”. Daí até chegar aos temas finalizados de Volúpias, o trabalho foi longo, exigiu tempo e esforço.

Ciente da vontade de Gabriel Ferrandini em compor e crente do seu potencial para o fazer bem, Sérgio Hydalgo, programador da Galeria Zé dos Bois, desafiou o baterista: e se passasse um ano em residência na ZDB, a compor temas e a experimentá-los ao vivo em concertos?

“Tudo Bumbo”, um gongo e o deslumbre da bateria de Gabriel Ferrandini

“Quando comecei era tudo tão mau…”

A residência foi há já três anos, durante o ano de 2016, e se o disco só saiu este ano é porque Gabriel Ferrandini e o duo que o acompanha em Volúpias passaram muito tempo num método de tentativa-erro. Na Galeria Zé dos Bois, o trabalho passava por ir compondo regularmente música nova, que era testada ao vivo em concertos de dois em dois meses — ao todo, Ferrandini levou a palco os seus esboços em seis momentos diferentes, habitualmente em modo trio, como surgiria no disco.

Durante a residência, o baterista encontrou uma espécie de meio termo entre “estar obrigado a mostrar trabalho de forma séria” e ter “espaço para errar, para falhar, para melhorar e para crescer” como compositor. Isso, apontou ao Observador, “é um milagre, uma raridade, não é todos os dias que se consegue trabalhar num contexto que mistura leveza e seriedade”. A convicção de Ferrandini era a de que se estivesse “envolvido tempo suficiente com material escrito, a tentar compor em dois meses para dar um concerto e depois voltar a escrever outras coisas, dar outro gig e assim sucessivamente, eventualmente isto há-de correr bem”.

Consciente de que compor não lhe seria fácil, Gabriel Ferrandini começou por tentar simplificar o processo. “Escolhi este trio bateria-saxofone-contrabaixo, para ser sincero, porque me era mais fácil. Ser-me-ia difícil compor tendo um instrumento como a guitarra ou o piano. Teria de pedir muito à pessoa que ia tocar, não teria tanto controlo sobre as decisões e a escrita daquilo que se passa no disco harmonicamente. Assim tenho o saxofone mais a fazer a melodia, o contrabaixo ali comigo, é-me mais fácil controlar”, explicou. No entanto, o início não deixou de ser tortuoso: “Quando comecei era tudo tão mau que na verdade para aí metade do que escrevia no papel era reescrito quando chegava ao pé do Pedro [Sousa] e do Hernâni [Faustino] na sala de ensaios”.

[“Rua Nova da Piedade”:]

O tempo foi aprimorando a técnica, os concertos correram “bem” e chegou a ser discutida a hipótese de as gravações dos seis concertos dados no âmbito da residência serem editados em disco. Porém, o músico e agora também compositor começou a perceber que aquele ano que passara era sobretudo uma porta de entrada, o início de um disco que ainda demoraria a completar. “Quando acabou o ano sentimo-nos ótimos. Depois fui ouvir o material gravado e notava-se que os primeiros concertos eram mais frágeis do que os últimos. O crescimento que tinha tido durante aquele ano era o suficiente para olhar para trás e pensar: isto ainda não está lá”, resumiu.

Os temas que compôs com a ajuda dos parceiros eram “fixes”, garantiu, mas faltava alguma coisa: “Não estávamos a tocar… não estávamos tão tights, não estávamos tão seguros. No final, tínhamos aquele material todo mas não estava mesmo feliz com a música”. As boas ideias estavam presente, mas era necessário editar e revitalizar as gravações. “O que acabámos por fazer foi: escolhemos as que gostámos mais, os temas que achámos melhores. Porque eram muitas malhas, mesmo que tivesse corrido fantasticamente era preciso escolher, são muitos concertos, muita música gravada”. Com a seleção das composições que mereceriam entrar numa espécie de best-of da residência artística, Ferrandini rumou ao Monte da Fonte Santa, perto do Alandroal, no Alentejo, acompanhado por Hernâni Faustino e Pedro Sousa. O trio regravou então tudo. “Com aquela bagagem toda daquele ano, já escolhidos os melhores temas, passámos três dias a ensaiar e três dias posteriores a gravar”, contou.

“Contra-natura”, como sempre: “Bora não fazer assim”

Quem esperasse um disco na senda do que Gabriel Ferrandini vinha fazendo, sem quaisquer surpresas, enganou-se. Se os álbuns de música improvisada tendem a ser gravações ao vivo, em alguns casos com apenas uma ou duas composições estendidas durante longos minutos, Volúpias é “contra-natura”, como cunhou o músico quando o descreveu ao Observador: “Foi só mais uma vez assumir uma posição de que gosto: ‘bora não fazer assim”.

Os temas são quase uma dezena (nove, mais precisamente) e à exceção do último, “Rua da Barroca”, curtos. A faixa que encerra Volúpias tem cerca de dez minutos e meio de duração, “Rua das Academias das Ciências” tem quase seis minutos e meio e “Travessa dos Fiéis de Deus” ultrapassa os cinco minutos, mas se mesmo essas são bastante mais curtas do que o habitual em discos de free-jazz, as restantes oscilam entre um minuto e meio e pouco mais de quatro minutos. “A natureza desta música e do Pedro Sousa — porque fui eu que escrevi mas isto na verdade é um trio de saxofone, ele não deixa também de liderar — é começar uma malha e seguir na escola [John] Coltrane: fica-se ali a procurar, a escavar, a escalar, sempre à procura de crescer e encontrar”. Essa abordagem é válida, tem aliás sido seguida pelos instrumentistas da maioria das formações que Ferrandini integra, mas “também há perigos em não se ser straight to the point [mais direto] num disco, em metermo-nos em sítios que não interessam”. Eis o mote: “E se o solo durasse 30 segundos em vez de 30 minutos? E se estivesse ali um relógio a contar tempo?”

Gabriel Ferrandini durante o concerto “Tudo Bumbo”, em junho de 2017, no antigo Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa (@ Vera Marmelo)

Outra surpresa, além da utilização da eletrónica (um contributo de Ondness), é o tom dos temas, mais contidos do que o habitual no free-jazz. Isso nota-se muito, com o silêncio a impor-se várias vezes durante alguns segundos, com os músicos a disciplinarem-se para fugirem à aceleração e volume habituais no género. “Ao vivo, esta música normalmente vive muito de força, de sangue, suor e lágrimas, de decibéis. E o disco é quase todo baladeiro”, corroborou o baterista e compositor, acrescentando que foi consciente o intuito de gravar composições de tom “mais elegante, em vez de ser tão macho music, com mais energia”. Soma-se a isto quer a composição antes de ir para estúdio — a “escrita é logo à partida o inimigo número um da improvisação livre e do free jazz” — quer haver um baterista que tem “os papéis de líder e compositor”, e Volúpias torna-se um objeto ainda mais distinto e pessoal.

Foi da vontade de dar a volta aos vícios de um movimento musical que “tem tantas regras como o próprio jazz” e que “está cheio de neuras, cheio de coisas básicas e escondidinhas que vamos tomando como obrigatórias”, que nasceu o nome (inicialmente previsto) Volúpia das Cinzas, que depois ficou reduzido a Volúpias porque a composição e gravação do disco deu tanto prazer ao seu autor que “isto já não tem cinzas, já não tem nada a ver com morte, agora é só fogo outra vez”.

Se o facto do álbum poder ser eventualmente mais acessível — ou pelo menos direto — do que muitos discos exploratórios de free-jazz o poderá levar a mais gente, aproximando até ouvintes desse género musical, Ferrandini não tem certezas: “Se acontecer, é uma sorte e uma coincidência feliz, porque chegar a muitas pessoas nunca foi o que me guiou. Se não, estaria a tocar umas canções… Estou super curioso porque dizia constantemente que o disco era demasiado normal para os malucos e demasiado maluco para o pessoal mais normal. Fica ali no meio, pode soar bem mas acho que é um álbum atrofiado o suficiente para não ser assim tão fácil”, concluiu. E não será nunca fácil até porque “há um lado nesta música de rebelião — não é que a improvisação e o free jazz vão salvar o mundo, mas ainda há alguma coisa de valioso nesta música. As pessoas têm de encarar o imprevisto que há aqui, as coisas não têm de ser e soar sempre iguais, a música não tem de ser tipo papel de parede, uma coisa com uma estrutura sempre muito parecida, tudo muito encaixotado”.

[“Rua da Academia das Ciências”:]

Esta terça-feira, na Culturgest, em Lisboa, Gabriel Ferrandini vai apresentar o álbum com o trio que o gravou (além dele, estarão em palco Pedro Sousa e Hernâni Faustino) e com um convidado muito especial: o veterano pianista alemão de 81 anos Alexander von Schlippenbach, uma referência no jazz europeu. “O Pedro Santos, que já me tinha convidado para várias coisas no [encerrado] Teatro [Municipal] Maria Matos, sabe que sou maluco e desafiou-me a ter um convidado. Há pouco tempo conheci o Schlippenbach, uma pessoa de quem sou fã número um, que mudou a minha vida quando o ouvi no Jazz em Agosto com uns 18 anos e cujo trio é para mim a melhor banda viva que existe. Conheci-o na Rússia, toquei com ele e vi-o feliz por ter pessoal tão jovem a tocar isto [free-jazz]. Convidámo-lo a vir e aceitou”.

O pianista almeão chegou esta segunda-feira e Gabriel Ferrandini planeava passar um dia a “ensaiar o material” com o convidado e com a banda. Isto apesar de ter reservado a Schlippenbach um papel “mais planante” sobre as estruturas musicais já pensadas. “Mas ele é um mestre, se calhar nem precisávamos de ensaiar”, rematou. No final do concerto, já sabemos o que o baterista e compositor gostaria de ouvir: “A cena que mais adoro, que me deixa muito feliz, é aquela coisa de uma pessoa dizer: epá, não percebi nada mas isto é brutal. Uma pessoa achar uma coisa positiva sem a perceber… é um milagre brutal, porque as pessoas o que querem é estar sempre confortáveis. Quando acontece o contrário é espetacular”.