Título: MNAA 2010-2019. Para a história do Museu Nacional de Arte Antiga
Autor: António Filipe Pimentel
Prefácio: Miguel Zugaza Miranda
Editor: Palavras Límpidas
Páginas: 310
Preço: 21,20 €

É bom que titulares de cargos públicos com a relevância da direcção de um grande museu nacional (mesmo que grande à nossa pequena escala, bem entendido) deixem testemunho, memória ou interpretação do que ali fizeram, não puderam fazer ou tão-pouco quiseram deixar feito (se for o caso), sobretudo quando o seu mandato teve suficiente lastro para gravar uma marca pessoal que importa focar e debater, elogiar ou contestar, lembrar e honrar. Mas se é bom, muito raramente assim sucede entre nós, não faltando na cena ocidental bons exemplos neste domínio, dos quais um dos primeiros e notável é o de Sir William Henry Flower, director do Museu de História Natural de Londres com os Essays on Museums and other subjects (409 pp., 1898). Outros testemunhos houve, como o de Alfonso Pérez Sánchez, dirigente do Museo del Prado de 1972 a 1991, a que no prefácio se refere Miguel Zugaza Miranda, director do grande museu espanhol entre 2001 e 2016 — um “excelente amigo com quem partilho idêntica perspectiva sobre a missão dos museus públicos” (Pimentel, p. 19) e que há cinco anos concluiu artigo, de co-autoria com António Filipe Pimentel, com a frase desafiadora: “Esperemos que a experiência recente do Prado, reivindicando autonomia e responsabilidade, possa servir de exemplo para valorizar as extraordinárias oportunidades que oferece o novo projecto em marcha no maravilhoso museu das Janelas Verdes”.

Ao chamar Zugaga Miranda, actual director do Museo de Bellas Artes de Bilbao — uma cidade renovada pela exuberância do seu Guggenheim — para prefaciar o seu livro de balanço de nove anos à frente do MNAA, Filipe Pimentel diz-nos muito claramente (e essa evidência é impactante…) que o seu horizonte foi o de aproximar quanto possível “o primeiro museu português” do processo de grande renovação museológica em curso na cena internacional — em particular “nos museus-bandeira do Primeiro Mundo” (p. 101) — e levar por diante uma “metódica e decidida reversão da histórica inexistência de uma estratégia para o primeiro dos museus nacionais” (p. 29), ainda que o quadro comparativo lhe seja assaz desfavorável, pois como escreveu logo nas primeiras linhas do guia-catálogo Obras em Reserva. O Museu que não se vê, o Museu Nacional de Arte Antiga “jamais usufruiu do conforto aquisitivo dos seus congéneres internacionais (por histórica inexistência de uma política, consolidada e eficaz, de valorização nacional das colecções públicas)”, e se a “generosidade particular” lhe foi valendo, tão-pouco houve “verdadeira e consolidada tradição nacional de filantropia cultural” (2016, p. 7).

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Para atingir a tão ambiciosa quanto “desejável paridade com os seus congéneres internacionais” (p. 25) — e ambiciosa, sobretudo dadas as condições de partida impostas pela tutela —, e fazer valer a “incontroversa relevância universal do seu acervo” (p. 47) que faz dele “o mais pequeno entre os maiores”, o Museu reforçou consideravelmente a sua “integração em redes de cooperação internacional instituídas” (p. 123), ao mesmo tempo que buscou, no contexto propiciatório do aumento muito exponencial de turismo no nosso país, multiplicar a “visibilidade mediática das suas prestigiosas colecções” (p. 87) e atrair públicos portugueses e estrangeiros para uma “malha cerrada de eventos expositivos” (p. 61) dirigidos a interesses específicos ou diferenciados, que a abertura de novos (ainda que exíguos) espaços de exposição temporária permitiu reforçar no calendário. António Filipe Pimentel diz mesmo que a “hiper-actividade” (sic) do Museu — uma “casa palafítica assente em estruturas cada dia mais precárias e informais” (p. 200) — foi o modo escolhido para demonstrar o “que poderia vir a fazer se dotado de recursos minimamente elementares” (para não dizer: decentes), contrariando da melhor maneira possível a “inércia dominante nas frágeis estruturas museológicas nacionais” (p. 257), junto das quais este Museu aspira ser, por direito ou por dever, a “nau-almirante, impulsionando as outras” (p. 199) com a “capacidade intelectual da sua equipa” (p. 201) e a “liderança da criatividade nas práticas museológicas” (p. 97), serviço educativo pioneiro e precoce — e, “para obviar a escassez dos meios, uma rede crescente de mecenas e parceiros de toda a espécie, com o apoio inestimável do seu Grupo de Amigos” (p. 132), “sempre pedra basilar e o parceiro fundamental da instituição” (p. 101). Aliás, “deve ao seu Grupo de Amigos o essencial da sua capacidade operativa” (p. 214).

Ao longo dos anos, António Filipe Pimentel foi-nos dando em inúmeras entrevistas corajoso alerta das dificuldades, precaridades e constrangimentos da instituição que dirigia, sublinhando em contramão o que defende ser o seu especial valor estratégico para a nossa representação identitária diante de quem o visita, ou nos visita. Mas alguns documentos agora pela primeira vez compilados neste volume, e que sempre tiveram circulação restrita (há também artigos de jornal e revista), são ainda mais esclarecedores sobre a vida dum museu nacional que na Reflexão Estratégica de 2014 se reconhecia “chegado a um beco sem saída” (p. 113) e em Julho de 2018 se declarou “instituição objectivamente ameaçada” (p. 242), precisando e reclamando, além de um novo modelo de gestão administrativa, uma profunda requalificação, ampliação e melhores acessibilidades (até a extensão do wi-fi a todo o edifício estava por fazer…).

O repetido esforço contido nestas páginas para tornar evidente a quem decide politicamente a urgência dessas medidas de grande alcance, favoráveis a uma instituição museológica e identitária de primeira linha em “decidido take-off” (p. 125), mediante programação expositiva “assertiva e de prestígio” (p. 87) ano após ano viabilizada inteiramente por um mecenato fiel e esclarecido — e que conseguiu envolver a população numa campanha inédita de aquisição de um quadro de Domingos Sequeira, etc. — é quase hercúleo, tanto quanto é de fazer chorar as pedras da calçada a profunda irresponsabilidade — porque não basta chamar-lhe indiferença — com que foram sendo acolhidas tais reivindicações visando “o necessário salto do Museu para uma nova dimensão, decerto ambiciosa mas solidamente pensada” (p. 102). Pimentel até sublinha, na estrutura do seu livro, o avolumar desse transe: aos anos 2010-16 chama “Tempo de semear” (cap. I), a 2017 “Entre tempos” (cap. II) e a 2018-19 — sem meias tintas, no agudizar da crise, no limite da ruptura — “Contra o tempo” (cap. III); e logo no início (p. 12, fotografia), a frase de Camões “Quem não sabe arte, não na estima” impressa na base da escadaria nobre aquando da respectiva requalificação, mais uma, ali está para bons entendedores dum libelo “político”. As grandes expectativas de mudança esboroaram-se por fim, mesmo que o director — que é um “português de serviço”, em linha com os admiráveis pais fundadores deste Museu — admita que 15 anos sejam o ciclo certo para que a direcção dum museu frutifique e marque o seu tempo (p. 142).

Aparentemente — mas só aparentemente — foi vencido pela “crónica morosidade processual” (p. 127), pela “entropia atávica da administração pública” (p. 246) e por “um modelo arcaico e centralista de gestão que faz de cada passo um penoso calvário de burocracia” (p. 253), “a velha ganga administrativa que tolhe a acção” (p. 283), “a funcionalização que impede de exprimir pensamento crítico”  (p. 202), enfim toda a pasmaceira habitual e subserviente do funcionalismo não-te-rales que mantém “o grupo remanescente dos museus ditos ‘nacionais'” no “limiar puro da indigência” (p. 198), debatendo-se “com carências que não arrolo por decoro” (p. 203). O próprio Filipe Pimentel admite ter apenas à sua disposição um “pequeno e esconso gabinete nas águas-furtadas” (p. 13) do velho Palácio Alvor…

Nem sequer o propósito de que a ampliação do edifício do Museu, financiada por fundos europeus, tivesse “uma ostensiva carga autoral, em articulação com o próprio protagonismo internacional da arquitectura portuguesa” (p. 182) — e Álvaro Siza Vieira ter-se-á interessado pelo exercício, coadjuvado por Alexandre Alves Costa (citado numa badana deste livro) —, foi suficiente para levar por diante esse desígnio, tido como fundamental para adequar ao tempo futuro um edifício velho com uma “panóplia ampla e grave de patologias complexas, algumas estruturais” (p. 151), carecido notoriamente de “áreas técnicas contemporâneas e eficazes” (pp. 132, 177) e da melhoria de “repartições obsoletas, congestionadas e disfuncionais” (p. 126) e onde actualmente só 8 % do acervo podem estar em exibição.

O estudo dessa ampliação, levado a todos os domínios e pormenores, e certamente trabalho denodado de muitos (v. pp. 161-79), e que lhe permitiria, enfim, “o ensaio de novas e mais ousadas narrativas” museográficas (p. 200), acabou no cesto do lixo de dois ministros e um autarca, pois — e são palavras duras! — “a administração pátria aplicou-se em projectar no que é privado [Museu Berardo, Fundação de Serralves, …] as ambições de representação nacional, não raro outorgando-lhe o esteio financeiro e em qualquer caso sempre a agilidade que, com avareza, regateia ao sector público. Em coerência, rodeou os seus museus de um fosso intransponível de obstáculos, que acabou por tolher-lhes o desenvolvimento e a necessária afirmação” (p. 276).

Tão-pouco Filipe Pimentel se escusa de comentar — em justo e lúcido contraponto — o estranho caso do novo Museu Nacional dos Coches, “um elefante branco com mais de 1/3 do custo do que o MNAA e reduzido a mero sítio patrimonial”, ou do anunciado Museu das Jóias da Coroa, no Palácio da Ajuda, quase inteiramente financiado pela Associação de Turismo de Lisboa, e “a quem caberá a tutela dos Tesouros Reais (com o que tal substancia), há um século quase sequestrados à fruição pública” (p. 202). E o disparatado projecto de um Museu das Descobertas, para o qual haveria de súbito 40-50 milhões…

Onde a corda realmente esticou e partiu foi a nova lei de autonomia dos museus, sucessivamente prometida, adiada e depois toscamente alinhavada nos gabinetes ministeriais, com muito ilusória abertura a comentários dos visados, requeridos com “carácter de urgência” às vésperas do mês de Agosto de 2018…  Filipe Pimentel fora excluído dos trabalhos preparatórios — apesar do seu especial estatuto de subdirector-geral do Património Cultural —, e o Museu Nacional de Arte Antiga, principal impulsionador dessa mudança operativa, apenas teve conhecimento, como todos os demais, da “nova versão final” do documento nesse tão singular momento do calendário.

“A carência de conhecimento sobre a realidade dos museus, por parte da estimável equipa que assessorou o ministro da Cultura” — escreve o autor — produziu “a mais bizarra organização de serviços alguma vez tentada em Portugal na área do Património” (pp. 248, 237), e “altamente perniciosa” pois “não se afigura provir qualquer benefício da artificial “composição” entre museus de vocação distinta, ou entre museus e monumentos” (pp. 241, 238). Rato escondido tem rabo de fora, e a imediata abertura de concursos para a direcção das instituições, com os mandatos doravante reduzidos de três para dois (com toda a estupidez disso!), deixaria inexoravelmente de fora e o esforçado, carismático — mas, para o Governo, incómodo — director do museu das Janelas Verdes, que observa ainda, em defesa da sua notável e motivada equipa de curadores e historiadores de arte, que o projecto de decreto-lei é omisso num ponto essencial: “a sobrevivência do conhecimento instalado depende da sua urgente regeneração, a qual implica a revisão das carreiras de técnico superior, por forma a proteger […] o número já avultado dos detentores de doutoramento, estimulando a sua valorização pessoal com reflexos no quadro profissional” (p. 243).

E como se tudo isto não bastasse já, um dos últimos documentos deste livro é o discurso do director na inauguração da Sala do restaurado Presépio dito dos Marqueses de Belas e do acesso à Capela das Albertas, a 14 de Dezembro passado, e mantido inédito pois “minutos antes” (p. 285) o Museu foi avisado da não comparência da ministra Graça Fonseca, “retida numa reunião” (por ela própria, subentende-se), deixando por certo perplexamente aborrecidos e desconsiderados — entre muitos — os altos representantes da fundação privada que financiou mais estes melhoramentos públicos.

O sentido de Estado e o bom serviço de Portugal não são, de facto, sentidos por todos. A felicidade do trabalho bem feito também não.