Mal sabia Woody Allen quando começou a rodar “Um Dia de Chuva em Nova Iorque” em Manhattan, no Outono de 2017 (e onde não filmava há quase 10 anos) o que lhe iria cair em cima. O seu filho Ronan Farrow foi desenterrar e trazer de novo a público, as acusações de que Allen teria molestado sexualmente a filha adotiva Dylan, então com sete anos, em 1992. Apesar do caso ter então sido longa e meticulosamente investigado pelas autoridades, que concluíram em 1993 que não se tinha passado nada e que Allen estava inocente, esta nova atenção que lhe foi dada, em pleno turbilhão persecutório do movimento #MeToo (desencadeado, recorde-se, pelo próprio Ronan, com os seus artigos na “The New Yorker” sobre o produtor Harvey Weinstein), veio complicar-lhe a vida.

A Amazon, com a qual Allen tinha um contrato para cinco filmes, teve medo de ver o nome associado ao do realizador, rompeu o acordo e pôs “Um Dia de Chuva em Nova Iorque” na prateleira. O autor de “Annie Hall” viu ainda todas as editoras a que propôs a publicação da sua autobiografia fecharem-lhe as portas na cara. Num abrir e fechar de olhos, passou de artista aclamado a boicotado e censurado. Woody Allen processou a Amazon e os direitos de distribuição da fita no mercado norte-americano acabaram por lhe ser devolvidos em Maio passado, mas “Um Dia de Chuva em Nova Iorque” não deverá ser exibido nos EUA, estando a estrear-se aos poucos em vários países europeus, como a França, Polónia, Espanha, Itália e agora Portugal. (Depois do filme acabado, alguns dos atores viraram-se também, miseravelmente, contra Allen e doaram a sua remuneração a movimentos ligados ao #MeToo.)

[Veja o “trailer” de “Um Dia de Chuva em Nova Iorque”:]

No retorno a Nova Iorque, e à sua bem-amada Manhattan, Woody Allen continua perfeitamente sintonizado no seu comprimento de onda estilístico, narrativo e intelectual, assinando um filme que não faz a menor concessão aos “millennials” e deixa os seus admiradores de papinho cheio. Adeus, Universo Marvel e efeitos digitais, olá, Cole Porter e filmes a preto e branco. O herói de “Um Dia de Chuva em Nova Iorque” é Gatsby Welles (Timothée Chalamet), um estudante universitário de família  abastada, que gosta de jazz clássico e filmes antigos, veste-se como se tivesse 50 anos, joga póquer com paradas altas, despreza sarcasticamente as suas origens apesar de viver do dinheiro dos pais e não tem a menor ideia do que fazer com a vida. Gatsby é uma espécie de primo em segundo grau do Holden Caulfield de “Uma Agulha no Palheiro”.

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Aproveitando ter ganho um dinheirão ao jogo, Gatsby acompanha até Nova Iorque a sua namorada, a bonita, aérea e nada brilhante Ashleigh (excelente Elle Fanning), que vai entrevistar um famoso realizador (Liev Schreiber, a fazer de “autor” torturado) para o jornal da universidade, e hospedam-se num hotel de luxo, para passarem o fim-de-semana juntos. Mas o realizador oferece um exclusivo a Ashleigh, começa a chover torrencialmente, Gatsby reencontra a irmã (Selena Gomez) de uma ex-namorada e ele e Ashleigh vão afastando-se cada vez mais um do outro, à medida que as peripécias se acumulam e a chuva vai caindo. E o que sucede à atontada Ashleigh, que anda num virote do realizador para um argumentista  (Jude Law) e depois para as mãos de um lascivo galã latino (Diego Luna), é todo um programa de gargalhada e quase por si só um filme dentro do filme.

[Veja uma entrevista com Woody Allen:]

Requintadamente servido pela deslumbrante e rigorosa direção de fotografia desse enorme mago da luz que é Vittorio Storaro, Woody Allen consegue uma divertida, satírica e melancólica comédia romântica que é também uma meditação, bem à sua maneira, sobre as inquietações, as dúvidas, os inesperados e as escolhas que a existência nos põe à frente, sobretudo quando somos novos e ainda temos muito para viver. Assim, o inquieto, indeciso e ingrato Gatsby terá uma revelação familiar de fazer cair a alma aos pés, receberá uma grande lição de vida e ficará mais maduro e seguro de si mesmo (já Ashleigh continuará tão burrinha e deslumbrada como era, e a confundir Cole Porter com Shakespeare).  

Allen filma uma Manhattan ao mesmo tempo idealizada e real, tira comédia, poesia e melancolia das variações meteorológicas, espeta umas farpas no mundo do cinema e no das pessoas que saem na “Forbes 500”, extrai interpretações adequadas e saborosas de um elenco que cobre várias faixas etárias (até Selena Gomez vai bem) e onde Chalamet e Fanning monopolizam as melhores tiradas “allenescas”, dos soluços de ansiedade sexual de Ashleigh à saída de Gatsby segundo o qual “O tempo voa, mas em Económica”. E tem ainda a ousadia jubilatoriamente anacrónica de situar um primeiro encontro amoroso em Central Park, à chuva e ao cair da tarde. No final, quem ganha, como sempre, ou pelo menos nos filmes de Woody Allen, é Nova Iorque.