O Papa Bento XVI e o Papa Francisco partilham uma pizza juntos e bebem uma Fanta. Também assistem ao Mundial de Futebol e a episódios de “Rex, O Cão Polícia”. Loucura? Nada disso, é o novo filme de Fernando Meirelles, que chega esta sexta-feira, 20 de dezembro, à Netflix. É um “buddy movie” que tem como protagonistas os dois Papas. É, como o realizador brasileiro Fernando Meirelles explica ao Observador nesta entrevista por telefone, inspirado em discursos, sermões e entrevistas que os dois Papas deram, adaptadas para diálogos entre os dois nas poucas ocasiões que se encontraram. O argumento tem a assinatura de Anthony McCarten, autor de biopics de sucesso nos últimos anos, como “A Teoria de Tudo”, “A Hora Mais Negra” ou “Bohemian Rhapsody”.

“Dois Papas” consegue ser um filme divertido e bem-disposto sobre temas sérios. Ajuda a boa disposição e Jonathan Pryce (como Papa Francisco). Mas também ajuda a seriedade com que Anthony Hopkins (Papa Bento XVI) racionaliza todas as palavras de Bergoglio. Nesse ping pong de ideias, “Dois Papas” rapidamente se torna num filme sobre o estado atual do mundo, sobre a necessidade de as coisas serem pretas ou brancas e não se racionalizar um discurso de entendimento. As conversas entre os dois movem o espectador a acreditar que o diálogo realmente resulta. E resulta.

É inesperado como “Dois Papas” se torna num “buddy movie”. Até que ponto é que a história é verdadeira?
Na verdade, os dois Papas encontraram-se três vezes entre os dois conclaves em que a história se passa. Só que ninguém presenciou essa história. Aquilo que falam no filme foi tirado de entrevistas deles, ou de sermões, ou de livros. É disso que gosto no roteiro, o roteirista pegou no que o Papa Bento XVI fala sobre divórcio e no que o Bergoglio [Papa Francisco] fala sobre divórcio, pegou nas duas posições e usou-as como se fosse um diálogo. Um diálogo que pode nunca ter acontecido, mas o que cada um fala é verdade. Até os pequenos detalhes, como a Fanta [há um momento no filme em que os dois Papas bebem uma Fanta enquanto comem pizza] ou aquele programa de televisão austríaco, “Rex, O Cão Polícia”, isso é verdade. O Papa Bento XVI assiste àquilo e de facto toma Fanta no tempo dele. São pequenos detalhes. Mas claro que há uma invenção, ficção, eles não assistiram à Copa do Mundo juntos e, provavelmente, nunca dançaram o tango.

[o trailer de “Dois Papas”:]

O que mais gostou quando leu o roteiro?
Fui convidado para fazer um filme sobre o Papa Francisco. Isso foi em 2015… início de 2015. O Papa Francisco tinha acabado de publicar a Encíclica “Laudato si’”, que achei muito interessante. Uma encíclica baseada na ciência, sobre o esgotamento do meio-ambiente. Achei este Papa genial e pensei: “quero fazer um filme sobre ele”. Só que na época, estava a começar a dirigir a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, eu e dois amigos. Como estava no projeto das Olimpíadas, não podia fazer nada. Esperei dois anos, nesse período vi uma peça de teatro, que se chamava “O Papa”, pedi ao autor para adaptar o roteiro. Ele disse que já tinha um pronto e se me interessava. E achei interessante esse diálogo entre os dois Papas. O meu interesse, como falei, estava em fazer um filme sobre o Papa Francisco. Aliás, o filme chamava-se “O Papa”, mas em maio passou a chamar-se “Dois Papas”.

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Além da encíclica que mencionou, o que o despertou para fazer um filme sobre o Papa Francisco?
Assim que ele foi eleito, eu, como o mundo inteiro, fiquei fascinado com aquela figura meio popstar. Uma instituição fechada, tão dura, de repente tinha uma pessoa aberta, que olhava o mundo. Com aquelas posturas um pouco mais leves. Pensei, o Papa está entendendo o mundo onde a gente está. E está muito mais centrado em questões de realidade social, de que estamos criando um mundo distópico. E pensei: este Papa é muito interessante. Aí, ele publicou a Encíclica que eu falei. Isso foi importante. Ele está entendendo o mundo de um jeito que os nossos líderes não estão. Estou aqui em Madrid, acabou a COP25, a conferência do clima, e foi um desastre. O mundo está realmente sendo destruído, estamos a caminho de uma extinção da espécie e os líderes ficam discutindo o negócio. É uma loucura. E este Papa está conseguindo ver o quadro todo. O que o filme tem de interessante, o que me interessou mais, ainda, é que ele ficou com duas posições muito opostas: o tradicionalismo do Ratzinger e o retornismo de Bergoglio. O mundo hoje está muito polarizado, dá para ver no Brasil, Trump/EUA, ou mesmo Espanha, para onde você olha, o mundo está muito polarizado. E o filme é sobre isso: dois polos dentro da mesma Igreja. Eles fazem parte da mesma instituição, mas precisam de encontrar um chão comum, e têm de conseguir isso através do diálogo: eles representam a mesma instituição. O filme é esse tango, os dois dançando, para tentar entender, escutar um e outro e dançarem juntos. Achei que este tema da tolerância muito oportunidade. Quando li o roteiro, mais do que os diálogos, sobre igreja, gostei do subtexto, da tentativa de dançar juntos, de um tolerar o outro.

“Tive sorte, é muito raro isto, as minhas duas primeiras escolhas aceitaram fazer o filme”, diz Fernando Meirelles sobre Pryce e Hopkins

Fica a ideia de que o Papa Francisco é o Papa com o discurso certo para este momento atual do mundo. Mas já era o Papa que o mundo precisava quando o Ratzinger foi nomeado?
Ele poderia ter entrado muito antes. E tem uma coisa curiosa, que estava no filme, mas foi cortada, porque o filme ficou muito grande. No primeiro conclave, a primeira eleição, o Bergoglio teve 10 votos. E na segunda teve 27. Estava meio claro no conclave que o Bergoglio iria ser eleito. Mas na segunda noite do conclave, foi entregue um dossier para todos os cardeais, denunciando o Bergoglio na sua atuação na Argentina, durante o regime militar. Na última eleição, ele baixou para sete, oito votos, e o Ratzinger foi eleito. A gente filma essa história, esse dossier e tudo isso. Mas ficou muito longo e eu cortei. Era muito provável que o Bergoglio tivesse sido eleito. E teria sido bom. Mas descobriram… foi um jornalista argentino que mandou esses dossiers para os cardeais.

Em algum momento temeu a reação da Igreja Católica em relação ao filme?
A gente tinha passado o filme a alguns padres e um ou outro representante mais importante da Igreja, mas sem uma resposta muito oficial. O mais próximo que chegámos do Vaticano, foi na segunda-feira passada [dia 9 de dezembro, uma semana antes desta entrevista], numa projecção em Roma, para algumas pessoas do Vaticano, e entre eles estava o Cardeal Turkson [Peter Kodwo Appiah], um cardeal do Gana, dos cardeais mais próximos de Bento XVI e agora também de Francisco. E perguntei a Turkson se fui muito duro com a igreja, ele disse que achou que eu tinha sido leve demais. Ele gostou do filme, do humor do filme, achou que fizemos muito bem. E pediu um DVD porque ele queria mostrar o filme ao Papa Francisco. Mandei para ele o DVD com as legendas em espanhol.

O realizador Fernando Meirelles

Como escolheu os atores para desempenhar os papéis principais? O Anthony Hopkins é muito parecido com o Ratzinger. O Jonathan Pryce tem menos semelhanças físicas, mas o modo como se expressa é muito semelhante. Como chegou até eles?
Acho que o Pryce é muito parecido com o Papa. Quando tive de escolher os atores, fiz um Google para olhar para a cara do Papa, ver que atores ele me lembrava. E havia muitas fotos dele ao lado do Jonathan Pryce. Havia muitas fotos dos dois. Achei que o Jonathan Pryce seria excelente, teria o mesmo jeito do Papa. E quis fazer com ele, falei com a Netflix e disse que gostava de fazer com o Jonathan. Eles disseram que o filme é muito caro, tinha de trazer um nome maior do que o Jonathan. E combinaram: se acharmos um ator com um nome maior para fazer o Bento XVI, aí a gente pode ir com o Jonathan. Convidei o Anthony Hopkins com quem já tinha trabalhado. Quando ele aceitou, mandei para o Jonathan e ele também aceitou. Tive sorte, é muito raro isto, as minhas duas primeiras escolhas aceitaram fazer o filme.

Sei que o filme estreou em salas em alguns países. Como vê este confronto entre Netflix e salas de cinema?
É uma falsa questão. Porque este é um novo formato de cinema. Este ano, dos finalistas dos prémios para a Academia, dos dez, cinco ou seis são das plataformas de streaming. Quer queira, quer não, é um novo formato. Este filme, “Dois Papas”, teve uma vida no cinema, esteve em 35 festivais, ganhou 5 prémios de audiência. Está em cartaz em 30 países. E agora vai para a plataforma e quando entrar na plataforma, continua em salas. E o facto de o filme estar na plataforma não impede ele estar em sala. Não são negócios em conflito. A dificuldade da Netflix é encontrar salas para… porque nenhum exibidor, principalmente as grandes redes que têm cinemas bons, nenhuma delas quer passar filmes da Netflix. Mas é uma bobagem, porque é assim que será. Não vale a pena lutar contra disso. Imagine que você tinha um negócio de máquinas de escrever e queria combater processadores de texto. Desculpe, hoje escreve num computador, não é numa máquina de escrever. É uma batalha perdida. Agora, isso não quer dizer que eu não quero que o público assista os filmes em salas. Não, não tem tudo de ser na plataforma. A ideia é que as plataformas não matem as salas e de que os filmes também estejam na sala.