O clássico Mulherzinhas de Louisa May Alcott já foi adaptado ao cinema tantas vezes (sete, a primeira em 1917, ainda no tempo do mudo, versão que se perdeu), que já podemos jogar o jogo de quem são as nossas atrizes favoritas nos papéis das quatro irmãs March. Para mim, a melhor Amy é Elizabeth Taylor na primeira versão a cores (em deslumbrante Technicolor da MGM) de Mervyn LeRoy (1949); a melhor Meg é Janet Leigh, no mesmo filme; a melhor Beth, Margaret O’Brien, idem; e as melhores Jo eram, até agora e “ex aequo”, Katharine Hepburn na fita de George Cukor (1933), a primeira versão sonora, e Winona Ryder na adaptação de Gillian Anderson feita em 1994. Mas Saiorse Ronan, no novo “Mulherzinhas” de Greta Gerwig, acaba de se lhes juntar.

[Veja o “trailer” de “Mulherzinhas”:]

Tal como Ronan a interpreta, a sua Jo é tudo aquilo que caracteriza a personagem — arrapazada, inteligente, resmungona, inquieta, imaginativa e revoltada –, sem precisar de ter a agressividade da Jo de Hepburn nem a denguice da de Ryder, e acrescentando-lhe uma chama muito sua, onde arde a vontade de ser independente e auto-suficiente, e uma escritora reconhecida e recompensada, feliz nos termos que sempre quis e ninguém lhe impôs. Nem a atriz resvala para o “overacting”, nem Greta Gerwig comete o erro de a mostrar como demasiado desenxabida, porque Jo tem a beleza da sua inteligência e dos seus sentimentos, e Ronan transmite-nos isso na sua fulgurante e vigorosa interpretação, que só a sempre excelente Florence Pugh em Amy consegue acompanhar (mesmo que, apesar de ter 23 anos, pareça velha demais para o papel).

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[Veja uma entrevista com Greta Gerwig:]

Como que para animar as coisas do ponto de vista formal e lhe injetar alguma da energia e do desaforo de Jo, Greta Gerwig começa o filme já lá muito para o meio da história, com aquela já adulta e instalada em Nova Iorque e a tentar vender os seus contos a um editor. Este “Mulherzinhas” é todo ele cronologicamente desarrumado, sempre num virote temporal, o que talvez não fosse necessário e resulta confuso a espaços. A realizadora aproveita para inserir numa história já de si muito autobiográfica (Alcott inspirou-se na sua vida e na da sua família para escrever o livro) mais alguns dados sobre a autora que não constam originalmente na obra e “encostar” Jo à sua criadora, mas sem forçar a nota ou cair em anacronismos “feministas”.

[Veja uma entrevista com Saoirse Ronan e Florence Pugh:]

Ao contrário de muitos outros filmes de época, “Mulherzinhas” nunca é hirto, decorativo, verboso ou artificial. Tudo nele — casas, guarda-roupa, objetos, sentimentos, atitudes –, parece autêntico, do seu tempo, daquela sociedade e no seu lugar, naqueles anos da Guerra Civil americana e nos imediatos em que se passa a história das quatro irmãs March, da sua cumplicidade calorosa e cerrada união fraterna, dos seus amores, escolhas difíceis da maturidade e destinos diversos, da sua família e dos que as rodeiam. Greta Gerwig aproveita ao máximo a beleza natural do Massachusetts natal da autora, onde rodou este filme enérgico, inteligente e expressivo, que faz justiça emocional, cinematográfica e evocativa à história, às personagens e aos seus sentimentos e aspirações, e ao espírito da era em que decorre o livro de Louisa May Alcott.

[Veja uma sequência do filme:]

Emma Watson e Eliza Scanlen cumprem corretamente como Meg e Beth, assim como Timothée Chalamet, James Norton e Chris Cooper nos papéis de Laurie, John e do avô de Laurie, e no lado da distribuição masculina apenas o aparvalhado Louis Garrel destoa num professor Bhaer que, de alemão, meia-idade e gordinho no original, passou inexplicavelmente a ser francês, jovem e trinca-espinhas. Laura Dern é uma Marmee perfeita (a forte parecença com a Jo de Ronan no filme não será mera coincidência) e Meryl Streep no papel da velha e sentenciosa tia March, rouba praticamente todas as cenas em que entra. E Greta Gerwig tem a feliz ideia, mesmo no final, de filmar todas as fases de fabrico do livro de Jo, também chamado “Mulherzinhas”, um exemplar do qual é entregue à protagonista, num plano que funde personagem e autora, Jo March e Louisa May Alcott.