Numa das poucas citações que ficaram para a posteridade, a italiana Artemisia Gentileschi (1593-1656), uma das primeiras mulheres pintoras a serem reconhecidas no seu tempo, e também a conseguir viver da sua arte, disse: “Enquanto viver, serei eu a ter controlo sobre mim mesma”. É uma frase que faz todo o sentido, se atendermos aos vários dramas da vida de Gentileschi, e a tudo o que passou por ser uma mulher pintora numa época em que isso era invulgar e visto com maus olhos, socialmente e pelos seus próprios pares. Marianne, a pintora de “Retrato da Rapariga em Chamas”, de Céline Sciamma, é uma personagem de ficção, mas percebemos rapidamente que poderia fazer dela as palavras da artista italiana, embora a sua situação não lhe permita concretizá-las.

[Veja o “trailer” de “Retrato da Rapariga em Chamas”:]

Estamos em França, na segunda metade do século XVIII. Filha de um pintor, Marianne (Noémie Merlant) foi contratada por uma condessa (Valeria Golino) para pintar o retrato da sua filha Héloise (Adèle Haenel), que foi tirada de um convento para se casar com um nobre italiano. O quadro servirá para o noivo conhecer a noiva. Mas Héloise recusa-se a ser pintada. A irmã, que ia casar com o dito nobre, caiu de um penhasco e morreu (ter-se-á suicidado para fugir ao matrimónio), e aquela está naturalmente relutante em a substituir. A artista terá assim que fingir que é uma dama de companhia contratada para vigiar Héloise, e pintá-la às escondidas. Como a condessa se vai ausentar por alguns dias, modelo e pintora vão ficar apenas acompanhadas por uma jovem criada, Sophie (Luàna Bajrani), na mansão da família, situada numa ilha ao largo da costa.

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[Veja uma entrevista com as duas atrizes:]

Marianne acaba por dizer a Héloise que lhe está a pintar o retrato. E quando lhe mostra o resultado final, a rapariga revolta-se e indigna-se com o que vê. A troca frontal de palavras que se segue leva não à partida da artista, mas a uma alteração radical de atitudes. Não elas só passam a confiar uma na outra, como se envolvem romanticamente, com a cumplicidade da jovem criada. Esta reviravolta vem mudar igualmente a relação entre pintora e modelo, para uma colaboração que passa a ter um envolvimento íntimo. Héloise está completamente disponível para ser pintada, e Marianne olha-a e pinta-a agora também com o coração. A paixão passa a influenciar quer a atitude da modelo, quer o gesto criativo da pintora, e o segundo retrato de Héloíse reflete isso, transmitindo expressão, empatia, calor, vida, onde antes havia só uma representação tão correta como amorfa. 

[Veja uma entrevista com a realizadora Céline Sciamma:]

“Retrato da Rapariga em Chamas” é um filme elegante e sugestivo, emocional e psicologicamente intenso sob uma superfície recatada, erótico mas sempre de forma contida, em que a realizadora faz com que quase tudo passe pelo olhar. Os olhares trocados por Marianne e Héloise, mas também os de ambas para a câmara. E isto sem que a fita se torne rígida e afetadamente “pictórica”, mantendo sempre, ao contrário, uma ideia cinematográfica a orientá-la, mesmo quando ela filma as duas amantes em momentos de intimidade cuidadosamente compostos. E Céline Sciamma introduz o mito de Orfeu e Eurídice no enredo e associa-o à situação das duas mulheres, com tanta inteligência como sentido poético e poder emocional. As duas atrizes, correspondem na medida justa, sem um passo, um gesto ou uma palavra em falso que seja.

[Veja uma cena do filme:]

O filme foca também as circunstâncias constrangedoras da vida das mulheres na época, explicitadas na proibição de Marianne desenhar modelos masculinos nus na escola de arte (“Fazia-o às escondidas”, explica a certa altura) e só poder expor usando o nome do pai, nos casamentos combinados por interesse pelas famílias ou nos abortos às escondidas às mãos das “fazedoras de anjos”. Apesar de quase não aparecerem homens no filme (a ilha onde “Retrato da Rapariga em Chamas” se passa assemelha-se uma comunidade exclusivamente feminina, e o cúmplice trio formado por Marianne, Héloise e Sophie a um microcosmo desta), o seu poder e ascendente sobre as mulheres não deixam de ficar subentendidos.

[Veja uma cena do filme:]

Mas tal como a fita é muito mais do que a história de um “ousado” amor lésbico entre mulheres de estratos sociais diferentes, numa época em que isso era inaudito e geralmente inaceitável, também Céline Sciamma não o converte em comício feminista. E em vez de optar por uma revolta arrebatada e desafiadora das normas sociais e morais da época por parte das amantes, a realizadora resolve a história com lógica e bom senso, submetendo as personagens às imposições vigentes. Tornando assim “Retrato da Rapariga em Chamas” num filme muito mais verosímil, coerente e pungente do que se tivesse seguido as convenções do final reconfortantemente feliz. (O filme ganhou o Prémio do Argumento em Cannes).

Sciamma só comete um erro ao não acabar “Retrato da Rapariga em Chamas” na sequência da exposição em que Marianne vê o retrato de Héloise onde está pintada uma mensagem codificada para ela, e segui-la com a sequência no teatro, tão dispensável como desconcertante. É como rematar com uma pincelada em falso um quadro impecavelmente pintado.