Título: “Se o disseres na montanha”
Autor: James Baldwin
Editora: Alfaguara

A capa de “Se o disseres na montanha”

A autobiografia é evidente. Baldwin, tal qual o personagem John Grimes, foi criado pelo padrasto, que era pastor numa igreja pentecostal. Da mesma forma que Grimes, Baldwin sofreu uma conversão religiosa aos 14 anos. Posteriormente, viria a ser pastor durante três anos. De forma similar, o autor era descendente de escravos oriundos do sul dos Estados Unidos da América e nunca conheceu o pai biológico. O que poderia ser somente uma projeção da sua vida, é muito mais do que isso. Se o Disseres na Montanha retrata a contínua tensão entre aspetos individuais e irreconciliáveis “ismos” na sociedade. O leitor está perante a tacanhez de uma sociedade religiosa e pentecostal dos anos 50, sofrida devido à segregação racial.

John Grimes, menino de 13 anos, a entrar na adolescência, começa a interrogar tudo e todos. E a interrogar-se. James Baldwin é delicado na sugestão do princípio do desejo sexual em John. Faz 14 anos, vê o corpo de uma mulher nua numa mancha amarela no teto, lembra-se de ter pensado, na casa de banho da escola, em “rapazes, mais velhos maiores, valentes, que faziam apostas uns com os outros sobre quem conseguia o maior arco de urina, e viu acontecer em si uma transformação de que não se atrevia a falar”. Ele pecara com as mãos um pecado inconfessável e quase imperdoável. A luta com o amigo Elisha parece um bailado sensual entre dois rapazes, na casa de Deus, antes da liturgia dada pelo padrasto de John. Luta de rapazes, num jogo de forças sem caso maior, que serve a Baldwin para mostrar a emergente e indefinida sexualidade de John. O corpo está em transformação, mas a mente mantém-se inócua ao chamamento divino. E assim, John, através das tão bem calibradas frases do autor, vê-se cada vez mais inadaptado à sociedade. Esta ausência de credo no coração é radical. A sociedade negra apela a Deus pela vitória dos humildes, pela emancipação perante os brancos. Apela a Deus como os hebreus apelaram sob o jugo dos romanos. Neste caso, dos brancos.

É disso que trata a canção “Go tell it on the mountain”, que empresta o título ao livro.

Sem autor conhecido, sabe-se que a música veio de escravos africanos. De tom popular e espiritual, é datada do século XIX e tem sido interpretada por diversos coros gospel e destacados cantores como Mahalia Jackson e Dolly Parton. A primeira versão celebra o nascimento de Cristo (“go tell it on the mountain, that Jesus Christ is born”), mas tem sido adaptada ao longo dos anos, sem perder o substrato religioso.

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Na década de 60, a apologia dos direitos civis, na América, motivou os cantores Peter, Paul e Mary a adaptarem o original. Na nova versão, o título foi mudado (“tell it on the mountain”), a letra foi adaptada ao “Êxodo” e foi inserida a frase “libertem o meu povo”.

Se o Disseres na Montanha em muito se assemelha a Se Esta Rua Falasse, anterior romance publicado pela mesma editora. Baldwin escreveu um manifesto adaptado à ficção, não separando o ativismo social e político da produção romanesca. A crítica social é acutilante num romance habitado por personagens complexas e desenvolvido através de situações dramáticas.

Num caso em que uma menina negra foi violada por um grupo de brancos, o pai da menina foi espancado quando procurou justiça. Depois disso, todos os negros daquela comunidade foram ameaçados. O medo toldou-lhes os movimentos. Encerrados em casa, agradeceram a Deus quando os passos dos brancos não foram interrompidos às suas portas. O sangue dos bíblicos cordeiros, agora metafóricos, afastaram os crentes dos ímpios. Mas até uma simples porta pode ser um avanço social, uma proteção da dignidade. Nem sempre houve portas que protegessem. Os negros de agora são descendentes dos negros escravizados, dos negros das plantações, subjugados pelos homens brancos. Eles, os brancos, “pensavam que o chicote os salvaria, e usaram o chicote; ou a faca, ou a forca, ou os blocos de leilão; achavam que a generosidade os salvaria, e o senhor e a sua senhora desciam às cabanas, a sorrir, dando atenção aos pretinhos e distribuindo presentes.”

Desde sempre, as classes pisadas procuraram e encontraram refúgio na Palavra de Deus. Desde as plantações até ao dia em que John e a sua família se refugiaram em casa para não serem sovados pelos brancos. Até ao dia de John, nos anos de 30 da sociedade americana vincada pelo segregacionismo, e até aos dias de hoje. Até que num momento — assim anseiam — poderão dizer “os escravos ergueram-se”. Eram estas as histórias que sua mãe lhe contava para distrair a fome e o frio.

A palavra de Baldwin é continuada por autores como Ta-Nehisi Coates e Maya Angelou; é uma palavra que já vem de há muito tempo, de discursos ditos em surdina até o medo deixar de amarrar a voz. Em Se o Disseres na Montanha as vozes são distintas, plurais, mas tematicamente em uníssono. São o coro de “Go tell it on the mountain” cantando as desventuras dos negros, as condições impostas por um pé centenário, esmagador, sob o qual estrebucham em busca de liberdade e de dignidade. Essas desventuras são narradas em constantes “flashbacks” através da vida de Gabriel (padrasto), de quem John pensa realmente ser filho, de Elizabeth (mãe) e de Florence (tia).

Diversos conflitos são entrelaçados ao longo do romance: conflito entre pai e filho, mudança de idade (entrada na adolescência), crise de fé, conflito com passados violentos, cheios de culpa e projetados no presente. Sempre em constante diálogo com os textos bíblicos.

A pungência dos episódios na igreja, com vozes evangélicas unidas num coro gospel, de crentes batendo com os pés no chão enquanto levantam as palmas das mãos ao céu e louvam Deus ao toque melódico do pregador Elisha oferece algumas das melhores páginas da literatura norte-americana. O leitor está lá, consegue ver o suor a correr pelas testas dos crentes, os esgares feéricos da fé nas suas caras, o fervor das almas, a cadência das pandeiretas. Essa comunhão, num determinado momento, é bruscamente cortada por uma denúncia de pecado, ou melhor, de “pré-pecado”.

“(…) pela sua juventude, não conhecia, as armadilhas que Satanás reservava aos imprudentes. Apesar de o pecado não estar nas suas mentes… ainda: o pecado já estava na carne; e, se continuassem a andar sozinhos pelas ruas, a partilhar segredos e gargalhadas e a tocar-se nas mãos, pecariam seguramente um pecado sem perdão”

Depois dessa queda no estado pecaminoso, os pecadores são salvos e ascendem à condição de “santos” na congregação desta igreja pentecostal. O diálogo com a Escritura é ora ostensiva, ora subliminar. É nos “Actos dos Apóstolos” que os baptizados são apelidados de santos:

“Expulsando todos para fora <da sala>, Pedro, pondo-se de joelhos, orou e, voltando-se depois para o corpo, disse: «Tabitá, levanta-te.» Ela abriu os olhos e, vendo Pedro, sentou-se. Dando-lhe a mão, Pedro pô-la de pé. Chamando os santos e as viúvas, apresentou-a <no meio deles> vida.” (9:40-41).

É a essa condição a que ascende John, numa outra demonstração da portentosa qualidade da prosa de Baldwin.

James Baldwin tem milhares de vozes negras na sua prosa. Ele é um coro de indignação e resiliência. Um manifesto seria somente um manifesto caso se limitasse a difundir uma mensagem. Os livros de Baldwin são muito mais do que isso. Se o Disseres na Montanha é muito mais do que isso. A luta pela dignidade está desde a primeira até à última página, numa cadencia frenética e pungente marcada por cada frase. Uma luta contemporânea com raízes históricas que tem na literatura de James Baldwin expressão de qualidade singular.