Título: Photographos pioneiros de Moçambique
Autor: Paulo Azevedo
Editor: Glaciar
Páginas: 163, ilustradas

A capa de “Photographos”, de Paulo Azevedo

Verdadeiramente um coleccionador mas não um historiador de ofício — ainda que investigador bastante esforçado —, Paulo Azevedo sentiu necessidade de partilhar e fazer valer o que para si e por si foi perscrutando ao longo de anos acerca dos primórdios da fotografia no Moçambique português, onde nasceu em 1968. O facto de a “fotografia colonial” estar a começar a ganhar — pela primeira vez, mas com atraso desmensurado — alguma atenção consistente na nossa universidade, por impulso dado pela academia de países europeus de primeira linha com passado ultramarino, tem ajudado a que, também entre nós, arquivos institucionais e privados estejam a ser identificados, folheados ou estudados, e isso é bom. Mas não é suficiente.

Sem o enquadramento panorâmico que só uma verdadeira história da fotografia à escala global pode dar, não é possível compreender como sucessivamente vastos levantamentos territoriais e etnográficos coloniais foram feitos naquele fim de século, estúdios se fixaram e operaram em lugares inóspitos ou insalubres e o comércio de souvenirs em albumina cresceu exponencialmente em cidades portuárias do Índico e do Atlântico com forte protagonismo na circulação de pessoas e bens. Durban tinha 26 estúdios fotográficos em 1907. E o caso de Júlio Augusto Siza (1841-1919) — aqui referido em Setembro do ano passado — é bastante elucidativo quer da vida aventurosa de fotógrafos à época, acompanhando grandes movimentos migratórios e a súbita emergência de focos coloniais em explosão económica, mas também do privilégio concebido à imagem fotográfica em exposições universais ou em feiras internacionais de prestígio, e mais ainda em revistas de aparato que a litografia moderna então fazia chegar a muitos. E isso teve ainda um efeito novo: o de permitir cimaginar o império”, como Leonor Pires Martins certeiramente intitulou o seu estudo recente dedicado, neste contexto, à revista ilustrada O Occidente, 1878-1915. “Expedição fotográfica” — caçar imagens em vez de animais exóticos — foi até expressão instituída, como no projecto de Manuel Romão Pereira apresentado ao ministro Frederico Ressano Garcia em Setembro de 1889, três anos depois de ter aberto em Lourenço Marques (que ganhara estatuto de cidade apenas quatro anos antes) o seu estúdio fotográfico com o pomposo nome de Atelier Portuguez de Photographia.

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A oportunidade para essa “colecção valiosa de fotografias” (cit., p. 20) tinha sido dada pela Conferência de Berlim sobre territórios africanos, mas também pela perturbada construção da linha ferroviária entre a cidade moçambicana e a república do Transvaal — cujos primeiros 80 km haviam sido documentados por um álbum fotográfico de C. S. Flower, publicado pela companhia construtora de que ele era um engenheiro —, mas recebeu novo impulso pela Missão Mariano de Carvalho a Moçambique, de meados a finais de 1890, da qual Romão Pereira faria a respectiva “reportagem fotográfica” (p. 25). Duas colecções fotográficas — por grosso, cerca de 220 imagens — hoje guardadas em cópias no Arquivo Histórico Ultramarino e na Sociedade de Geografia de Lisboa, mas também em mãos particulares, pecam, todavia, por legendas absurdamente genéricas que impedem a identificação dos lugares e momentos registados, uma dura crítica feita à época por Luciano Cordeiro. Álbuns temáticos com “reproduções de excelente qualidade” foram produzidos, quase de imediato, pela Associação Comercial de Lisboa e pela Livraria Ferin & Companhia. E as próprias albuminas seriam exibidas na Exposição Insular e Colonial Portuguesa, realizada no Palácio de Cristal, do Porto, entre Março e Novembro de 1894. Filipa Lowdnes Vicente refere-se a esta exposição num assinalável estudo em livro comemorativo da inauguração desse extraordinário edifício portuense, mas sobre este e muitos outros trabalhos académicos, recentes e incisivos, nacionais e estrangeiros (v., por exemplo, as bibliografias de O Império da Visão: fotografia no contexto colonial (1860-1960), 2014), é muito de lamentar a escassa bibliografia que Paulo Azevedo regista no seu livro — ou para o qual supostamente consultou —, retirando-lhe a possibilidade de se constituir obra de referência actualizada e abrangente sobre os primórdios da arte fotográfica no Moçambique português, sem perder de vista o indispensável contexto duma dinâmica África Austral.

A linha férrea para o Transvaal também havia sido fotografada pelo francês nascido nas ilhas Maurícias Louis Noel Heroult Hily, que em 1894 se fixara em Lourenço Marques como fotógrafo comercial — o primeiro estrangeiro a fazê-lo —, em 1899-90 tirou uma vintena de fotografias da cidade da Beira, mas depois decidiu produzir cerveja. É dele o retrato fotográfico em estúdio de Mouzinho de Albuquerque e Baltazar Cabral, governadores de Moçambique nos finais da década de 1890, provavelmente tirado na mudança de cargo, em 1897 (p. 41). Hily estivera ocasionalmente associado a Eugene Letard, que tivera atelier em Barberton, conclave de onde viria o inglês Thomas Lee, que em 1898 abriu estúdio no aprazível recanto laurentino da Ponta Vermelha, mas não se demorou muito, pois voltaria a casa antes do fim da segunda guerra anglo-boer, em Maio de 1902. Por Lourenço Marques passou também Eduardo Battaglia, um encadernador italiano que em 1902 abriu o seu Mignon Studio, publicitado nos jornais mas que durou pouco mais que dois anos, fazendo sobretudo bilhetes-postais ilustrados.

O capítulo mais extenso do livro de Paulo Azevedo é dedicado à Photographia Lazarus — “o mais importante atelier de Moçambique entre 1899 e 1908” (p. 47), com loja aberta na principal rua de Lourenço Marques —, dos britânicos de credo judaico Maurice e Joseph Lazarus (actualizando pesquisa que havia publicado em 2016), uma dupla com cinco estúdios fotográficos espalhados por África do Sul, Moçambique e Malawi, mais tarde também proprietários da lisboeta Photographia Ingleza, na Rua Ivens 53 (pp. 57, 110; foto p. 76), e cuja obra está hoje guardada em instituições norte-americanas, sul-africanas, inglesas e portuguesas, incluindo a Fundação da Casa de Bragança, em Vila Viçosa. Ainda que o autor não faça uma tal comparação, talvez nos seja permitido aproximar a actividade dos Lazarus à do seu contemporâneo Joshua Benoliel, também inglês e judeu, hoje muito reconhecido pela reportagem de eventos políticos na metrópole, e de que eles se ocuparam no alarmante contexto da guerra sul-africana, com imagens fornecidas em 1900 às revistas inglesas The Graphic e Black and White e à alemã Die-Woche. A Illustração Portuguesa publicou nas capas dos seus dois primeiros números, em 1903, e depois em 1904-8, “muitas outras fotografias de Moçambique da J. & M. Lazarus” (p. 75), e a Brasil-Portugal fotografia dos Lazarus pelo périplo de D. Luís Filipe em 1907 (p. 99).

Aliás, a estadia de três semanas do Príncipe Real em Moçambique tornar-se-ia “o maior acontecimento fotográfico da província até aquela altura”, e desde logo “uma oportunidade comercial” para os Lazarus, pois mal sua alteza assentara pé em terra anunciavam a pré-venda de álbuns-postais com 90 fotografias alusivas à majestática visita, as mais surpreendentes das quais representando cerimónias de boas-vindas com desfiles de batuque indígena com 18-20 mil homens negros em trajes tradicionais (p. 101). Porém, no ano seguinte os irmãos fotógrafos venderiam o seu negócio a Sidney Franklin Hocking, que retomou o comércio, anunciando o respectivo leilão em Durban antes de o fazerem em Lourenço Marques, e toda a sua edição postal à livraria Minerva Central, e acabariam os seus dias profissionais com algum aparato na capital portuguesa, muito embora o prestigiante estatuto de fotógrafos da Casa Real lhes tenha sido tão abruptamente invalidado logo em finais de 1910 quanto havia sido concedido à sua chegada a Lisboa. Joseph Lazarus, que foi instituído Cavaleiro da Ordem Militar de Santiago de Espada em finais de 1929, por António Carmona, e o irmão Maurice, foram sepultados no Cemitério Judaico de Lisboa, perto do Alto de São João.

Não é de estranhar que fotógrafos amadores tenham proliferado nesse contexto de novidades tecnológicas, entre as quais o cinematográfico. Paulo Azevedo aponta para Ângelo Ferreira — “o mais prestigiado advogado da cidade”, que deixou cerca de mil negativos de vidro tirados em Lourenço Marques, actualmente na posse de coleccionador particular anónimo —, cuja obra, que dá indícios de conhecer, promete torná-lo, pela quantidade e qualidade, “um dos nomes de referência da fotografia pioneira de Moçambique” (p. 104). Refere-se também a Inácio da Piedade Pó (1889-1975), um goês que foi topógrafo e fotógrafo dos Caminhos de Ferro de Moçambique, e cujo espólio está hoje em parte incerta, e a “I. R. Carvalho e J. P. Fernandes, [que] continuam à espera de serem redescobertos, estudados e sistematizados” (prefácio, p. 11). Ainda assim, são sempre estrangeiros que se destacam no ramo, como o já referido Sidney Hocking (1872-1932), que abriu actividade na Liverpool natal e depois em Durban, e se tornou “o fotógrafo da moda em Lourenço Marques”, especializado em retratos em estúdio e por eles foi premiado na Exposição Ibero-Americana de Sevilha, em 1929. Mas também Wilberforce Bayly (1864-1944), natural de Southampton e emigrado para a África do Sul aos 16 anos, e que surgiu em Lourenço Marques em finais de 1898, com casa tipográfica, fotográfica e livraria, com “extensa produção postal” iniciada nos primeiros anos do novo século. Ou Jan Wexelsen — aliás, o bretão Vital de Midy —, que se destacou como fotógrafo na Beira de 1903 a 1909, com “116 postais” contabilizados (pp. 140-41), o que certamente lhe grangeou a oportunidade de ser fotógrafo oficial contratado durante a visita local do príncipe real — “um notável conjunto de fotografias”, considera Azevedo (p. 142) —, e depois enveredou por carreira cinematográfica no continente africano ainda sem contornos definidos, interrompida pela grande guerra, que o vitimou.

O protagonismo de estrangeiros na produção fotográfica em Lourenço Marques e na Beira teve o seu correspondente editorial, pois todos os oito primeiros álbuns publicados sobre Moçambique foram obras dos editores britânicos Lazarus (três) e dos gregos Spanos & Tsitsias (oito), quase todos com apresentações e legendas em inglês, “uma opção linguística utilizada certamente por razões comerciais” (p. 150), e no caso destes últimos (1907-12) utilizando já a cromolitografia. Até mesmo os álbuns fotógrafos antológicos organizados em 1929 por José dos Santos Rufino foram impressos para — encomenda ou patrocínio — o estabelecimento comercial de roupas e tecidos do alemão Otto Tobler. As coisas são o que são…