“Joyce’s brain is as powerful as Yeats’ heart”.
“If Shane MacGowan told me that he liked one of my tunes I think I could just retire”.
“Life ain’t always empty”.

Grian Chatten

Comecemos assim para que celebração seja mais alargada e justa. Se quisesse apresentar os Fontaines D.C. a alguém que nada deles ouviu e sabe umas coisas de música indie, diria que teriam sido o grupo da atualidade preferido de John Peel se Peel ainda estivesse vivo. Ele que, tendo declarado que os The Fall eram a sua banda favorita, apresenta no seu túmulo a sentença que abre o hino “Teenage Kicks”, dos Undertones: “Teenage dreams, so hard to beat”. E é por aí que este gang dublinense se tem afirmado. Pelo sonho juvenil de ser uma grande banda, sem querer agradar a ninguém. Para citar um dos temas do seu primeiro álbum, Drogel, “My childhood was small/ But I’m gonna be big”. E, ao segundo álbum, continuam a marchar, de forma séria, consistente, encorpada, nesse sentido.

Nomear o histórico locutor/DJ da BBC 1, que morreu em 2004, quer dizer também isto: os Fontaines D.C. trazem nas artérias as qualidades que os fariam entrar para o top 25 das Peel Sessions. À atitude “estou-me nas tintas” juntam uma qualidade sonora-lírica raríssima, a capacidade de captar um certo “ar do tempo”, uma ligação ao lugar – no caso a cidade de Dublin, com os seus sotaques operários. Grian Chatten, o líder da banda, filho de mãe inglesa, nasceu em Inglaterra, e essa circunstância, disse-o em entrevista, revela-se muito importante para o facto de aderir de modo tão enamorado, com a energia passional de quem procura o seu lugar no mundo, à cultura irlandesa, em particular à poesia. Entre Yeats e Joyce, embore admire os dois, prefere o primeiro, por ser mais emotivo, por lhe provocar lágrimas. Tudo dito.

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[“I Don’t Belong”:]

O segundo álbum do grupo de Chatten, Carlos O’Connell, Conor Deegan III, Conor Curley e Tom Coll continua a celebrar uma cultura e uma identidade, falando ao mesmo tempo de sentimentos e convicções de toda a parte a um público cada vez mais adepto. Agora fá-lo numa modalidade, se quisermos, mais soturna, o que revela inteligência perante quem esperava uma mera revisão da matéria dada. Isso não quer dizer que o debute não tenha trazido malhas sombrias como “Hurricane Laughter” ou “The Lotts”. Mas A Hero’s Death escava mais no chão das humanas comoções. Parece ter recebido o perfume de Darklands, dos Jesus and The Mary Chain, objeto de uma surpreendente versão da banda, confecionada com pandémica melancolia.

A capa de “A Hero’s Death”

Sente-se a estratégia, o bom comando, de quem os representa – e isso comprova-se num breve documentário sobre as gravações e os concertos de “Dogrel”. Nos últimos meses foram sendo ofertados os singles e a estética (clássica, baseada numa estátua do escultor Oliver Sheppard) que os acompanha. E os videoclips bem esgalhados de Hugh Mulhern. É com “I Don’t Belong” que arranca o trilho. Chatten, atento aos outros e às seus pesares, afirma não pertencer “a festas de merda”, para citar a letra de “Anti-Fado”, canção do último regabofe de B Fachada. É, tal como o autor de Rapazes e Raposas, moço sem pachorra para poses giras de sunset. “A dilettante is someone who can’t tell the difference between fashion and style”, avisou em “Chequeless Reckless”.

A engenharia de “Televised Mind” deve à audição de Prodigy. E lá está o fantasma eletrónico da banda de Keith Flint transfigurado num baixo inicial, esmagado depois pela cavalgada da bateria (que baterista!), pela vibração e pelo dedilhar assertivo das guitarras . A letra, sobre a incapacidade contemporânea de cada um formar a sua opinião sem a ditadura do ruído, começa pelo refrão, vastas vezes repetido. Como se fosse um slogan nebuloso de uma manif com uma causa mas sem intuitos evangelizadores.

[“Televised Mind”:]

O mesmo dispositivo da reverberação verbal é usado no possante tema que dá nome ao álbum, nome este inspirado numa passagem de uma peça do – lá está — escritor irlandês Brendan Behan. E em “Love is The Main Thing”, a segunda canção, que, ao contrário do que o título poderia sugerir, não é composição primaveril, traz inclusive alguma chuva. Tal como acontece em“Lucid Dream”, uma das melhores canções do disco. Há uma meteorologia instável no desespero com que Chatten canta o texto dentro de um emaranhado orquestral digno de um Kevin Shields. Na produção, em vez do Senhor My Bloody Valentine, está de novo Dan Carey, capaz de dar a espessura certa ao conjunto. Uma notinha para os coros que aparecem, aqui e ali, com boa tonalidade irónica.

Dentro da elegância, há espaço para a rockeira crueza de “Living in America” e “I Was Not Born”, canções que, para ganharem maior interesse, pedem atuações ao vivo, aquelas que a Covid tem adiado (não nos esqueçamos que os Fontaines D.C. cresceram muito na estrada). “You Said”, “Oh Such a Spring”, “Sunny” e “No”, temas nos quais o vocalista mostra capacidade em cantar em modo mais fofinho, ao mesmo tempo que conversa consigo sobre as suas resistências e variabilidades, acabam por ser os momentos menos elogiáveis de A Hero’s Death. Mesmo em Dogrel, neste registo (“Roy’s Tune”, por exemplo), não convenceram. Há quem o faça melhor. O campeonato deles é outro. Faz-se de som e fúria. E o talento de quem sabe ter um futuro arriscado para continuar a pisar.