Título: Não mais amores
Autor: Javier Marías
Editora: Alfaguara
Páginas: 408
Preço: 23,50€

A capa de “Não mais amores”, de Javier Marías (Alfaguara)

Quem estiver já familiarizado com a escrita de Marías encontrará neste livro um mosaico que faz sentido em relação ao resto da obra: também aqui, embora em narrativa curta, o autor opta por apresentar o desconcerto, criando no leitor uma estranheza que depressa se torna familiar. Lê-lo é ser vítima de um feitiço: as longas frases fluem, os longos parágrafos afundam. É nesta altura que o desconcerto volta em todo o esplendor, e a mão ágil do autor finge que a inquietação vai parar, porque as frases são longas, as explicações urgem, as dúvidas também, e páginas depois a leitura ainda é uma vertigem.

Ler um livro de contos de rajada não é das tarefas mais fáceis. O leitor tem pouco tempo com cada história, é difícil saltar de um cenário para o outro, pelo menos sob a pena de confundir tudo no final, ou esquecer por não ter tido tempo de se envolver. Com Javier Marías, o perigo passa ao lado, já que o nível permanece altíssimo e cada conto incita um vício. Cada um dura algumas páginas, mas fica – será esse o trunfo de toda a sua ficção.

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O universo é derrapante; o conjunto de personagens, formidável. Encarando situações sempre diversas e surpreendentes, o autor deixa a sua marca de inquietação sem ceder a uma fórmula – e por isso a inquietação continua no conto seguinte. Nesta situação, o leitor brinca com cada história sem deixar de se comprometer  com ela.

Em Não mais amores, aparece um Elvis Presley, mas também a sombra de um fantasma; uma atriz porno iniciante que está prestes a conhecer o seu parceiro de filmagens e um mordomo antiquado em Nova Iorque; um assassino por encomenda que tenta dissuadir quem o quer contratar, mesmo que isso lhe implique o soldo, e a desgraça de um casal de mafiosos; um escritor anacrónico, e talvez sem talento, tão viciado na sua dor que abandona a medicação que a apaga para investigar o seu efeito na existência, e um homem que encontra outro homem igual a si e que tenta fugir da semelhança, em simultâneo com o outro, mantendo-a.

A condição humana refulge nesse homem que enfrenta o seu duplo, estando Javier Marías a refazer o cenário já experimentado por autores como Saramago (O Homem Duplicado) ou Dostoievski (O duplo). Mesmo num mundo em que se procura a unidade, a ausência de individualidade atinge e transtorna, daí os esforços para a distância e para a diferença, mesmo que isso implique o colapso profissional, pessoal ou mental.

Noutro conto, a fotografia é um vício que prova o amor: pode amar-se sem uma máquina fotográfica, sem o desejo obtuso de se cristalizar a imagem da coisa amada? Uma das personagens responde:

“Você adora a sua mulher? Não me faça rir. Você nem sequer tem uma câmara. Não a quer recordar verdadeiramente, tal como foi, se a perder. Não quer voltar a vê-la quando já não a puder ver.” (p.92/93)

E então atinge-se a inquietação a la Marías: um cenário à partida idílico que leva com a sombra, e o tormento, da sua efemeridade. Pelo meio, um amor louco, e louco no sentido de doentio: o homem que amava a mulher desde antes de ser mulher, que esperou por ela como um estóico, ou um obcecado, que viveu o seu tempo e o tempo dela em simultâneo, que contrapôs às décadas que os separavam um afluir de referências, e uma “adoração imutável” (p. 97) que, mais do que arcabouço cardíaco, é um perigo iminente: o homem sabe que acabará por matá-la.

Marías enfrenta ainda os despojos que a vida de alguém deixa quando já deixou de ser vida: os espaços maculados pela ausência, a tristeza de tudo continuar igual quando alguém já não existe, a afronta ao ego que é a irrevogável passagem do tempo e a regeneração da vida, o reaproveitamento de espaços e esses espaços como depositários do tempo.

Os contos são não apenas hipóteses de situações ou de vida, mas confrontos morais permanentes. Não há situação em que não se sinta a angústia de uma decisão, e é isso que o leitor encara, tentando formular uma hipótese ao mesmo tempo que é engolido no drama das personagens. Assim sendo, fica claro que a inquietação de Marías é dos maiores tesouros da literatura contemporânea.