Aqui há uns bons 30 anos, vi a peça “Pigmalião” em Londres, com Peter O’Toole um bocado entornado. Ele sabia que estava com os copos, os colegas em cena também e o público igualmente. Como não tinha bebido de mais, O’Toole teve, do primeiro ao último momento, uma interpretação perfeitamente controlada, sem dar um passo em falso, ter uma branca ou falhar uma deixa. Mas as coisas nem sempre corriam assim tão bem. Há um livro, Hellraisers, sobre os excessos alcoólicos da geração de atores de Peter O’Toole em que este conta ter começado a beber com uns colegas num almoço em Londres e acordado dois dias depois num hotel em Paris, sem se recordar do que havia feito e de como lá tinha ido parar.

Um copo na quantidade certa põe-nos bem dispostos, reconforta e dá ânimo, aclara as ideias e aguça o raciocínio. Uns copos a mais e as inibições são derrubadas pelo álcool, e pode-nos acontecer o mesmo que aos quatro protagonistas de “Mais uma Rodada”, do dinamarquês Thomas Vinterberg  (Óscar de Melhor Filme Internacional, estreia quinta-feira, dia 29): fazer figuras tristes num supermercado, acordar esticado no passeio perto de casa com um lanho na cabeça, urinar a cama onde estamos a dormir com a nossa mulher e um filho bebé, entrar a titubear e com a língua enrolada numa reunião de trabalho e bater na soleira de uma porta. E depois, a curto prazo, dar cabo da saúde e das nossas vidas pessoais, familiares e profissionais.

[Veja o “trailer” de “Mais uma Rodada”:]

“Mais uma Rodada” é o único filme sobre bebida e bebedeiras já feito em que as personagens, professores no mesmo liceu e grandes amigos, ficam com os copos como resultado de um plano, de uma experiência coletiva com uma metodologia seriamente definida. Martin (um imponente Mads Mikkelsen, com o seu rosto talhado a escopro e tão convincente na mais contagiante euforia como na mais pesada tristeza), professor de História, e os seus colegas Nicolaj (Psicologia), Peter (Música) e Tommy (Educação Física), decidem, após o bem regado jantar dos 40 anos de um deles, testar a insólita teoria do filósofo norueguês Finn Skarderud, segundo a qual os seres humanos nascem com um défice de álcool no sangue de 0,05%.

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Bebendo às escondidas, com regras bem definidas (nunca após as 20.00 nem ao fim-de-semana, testar regularmente os níveis de alcoolemia com medidores), e reunindo-se para comparar, registar e ponderar resultados, os quatro procuram confirmar o défice teorizado por Skarderud, com resultados assinaláveis. Sentem-se mais animados e motivados, começam a dar aulas que fogem à rotina e animam e interessam os alunos (e que, no caso de Martin, envolvem o elogio de grandes líderes políticos que bebiam como esponjas). E Martin, que é casado com uma médica e tem dois filhos, e cuja vida conjugal e familiar tinha caído num torpor quase monossilábico, volta a ser um marido e um pai ativo e entusiasmado.

[Veja uma entrevista com Thomas Vinterberg e Mads Mikkelsen:]

Só que o quarteto não consegue manter o consumo de bebidas a este nível “científico”, indetetável pelos outros e socialmente positivo. De comédia copofónica, “Mais uma Rodada” transita para drama de alcoolismo e a fachada de satisfação e entusiasmo dos quatro amigos e colegas cai, para revelar a frustração e as angústias da meia-idade. Cada qual, conforme as disposições interiores e o tipo de vida que tem, aguenta melhor ou pior o impacto dos excessos líquidos. E o que era uma peça de conjunto passa a centrar-se em Martin, que é tomado por uma espessa melancolia e assiste ao regresso, reforçado pelo peso do álcool, de tudo aquilo que o afligia antes da experiência ter começado, acabando por ficar sozinho em casa, a comer flocos de cereais na penumbra.        

Thomas Vinterberg e o argumentista Tobias Lindholm fizeram um filme sobre o álcool que não é nem primariamente moralista nem irresponsavelmente libertário. “Mais uma Rodada” celebra, por um lado, o prazer da bebida em boa companhia e mostra os benefícios individuais, laborais e sociais de beber na medida certa, mesmo que numa ocasião especial ou num dado contexto (ver a cena do exame de Filosofia) marche um copinho a mais; e pelo outro, avisa contra os abusos e as consequências da ingestão descontrolada de copos. Na sua coexistência de registos, sentimentos, estados de espírito e atmosferas, o filme tem um correlativo do torvelinho de atitudes, reações e emoções dos quatro protagonistas perante o que lhes está a acontecer por terem ficado de rédea solta.

[Veja uma cena do filme:]

“Mais uma Rodada” começa e fecha com dois rituais escolares dinamarqueses que envolvem muita bebida. A corrida de alunos em redor do lago, a ingerir e vomitar cerveja, e a celebração do final do curso, com champanhe, cerveja e “vodka”, a que se juntam os professores (e que nos permite apreciar os dotes de bailarino de Mikkelsen), que já vêm bebidos de um almoço. Thomas Vinterberg deixa à nossa consideração se os miúdos também têm direito a fazer os seus disparates, ou se já estão em tirocínio para suceder aos mais velhos na copofonia desregrada (os adolescentes dinamarqueses consomem o dobro do álcool da média dos europeus). E também se a alegria tão acrobática e exuberantemente manifestada por Martin é a celebração de algo de muito bom que ficou no ar que lhe poderá acontecer, ou o prenúncio de um novo mergulho no abismo. Fica em aberto se ele vai voar de novo, ou se se vai afogar.

(“Mais uma Rodada” estreia-se na quinta-feira, dia 29)