É difícil de acreditar que esta história nunca tivesse sido contada: no século XIX, escravos e abolicionistas escavaram uma rede de túneis e uma linha subterrânea de caminhos-de-ferro foi construída nos Estados Unidos da América, para permitir a fuga para os estados livres no Norte, o Canadá ou até o México. À rede, aos homens e mulheres que colaboraram na sua construção, manutenção e funcionamento e àqueles fugiram através dela, chamaram The Underground Railroad. Estima-se que, por volta de 1850, 100 mil homens e mulheres tivessem entrado nela em escravatura e saído na estação da liberdade.
Numa nota do realizador distribuída conjuntamente com a promoção do lançamento da nova série da Amazon Prime, Barry Jenkins fornece a pista para o porquê de esta história épica ser ainda tão estranha e desproporcionalmente pouco conhecida. 50 anos depois do holocausto, Steven Spielberg fazia “A Lista de Schindler” – tantos filmes se têm, felizmente, feito sobre o assunto. Mas – e salvaguardadas as devidas distâncias, até de meios para a captação documental – 50 anos depois da escravatura, Griffith ainda andava a fazer “Birth of a Nation”. “O trauma está aí”, conclui Jenkins, “mas não sentimos a vergonha como nossa”.
Portanto, a pergunta mais inquietante não é sequer porque é que nunca tínhamos ouvido esta história; é quantas histórias da escravatura não estarão por contar?
[o trailer de “The Underground Railroad”:]
“The Underground Railroad” adapta o romance homónimo de Colson Whitehead que ganhou o National Book Award e o Pulitzer em 2017. Acompanha a história de Cora (Thuso Mbedu) e da sua fuga de uma plantação de algodão na Geórgia para a Carolina do Sul, e depois por muitos estados num jogo de gato e do rato com o caçador de prémios Ridgeway (Joel Edgerton). São 10 episódios de fôlego, mais de uma hora cada, e um ritmo e uma coerência que o aproximam mais de uma longa longa-metragem, do que propriamente da série televisiva. Obviamente, não, não se vê bem. Vê-se mal. Vê-se com dor, com vergonha, com muito desconforto, regularmente aplacado por momentos de doçura e beleza, para que seja possível continuar. Mas o corpo de um homem em chamas enquanto outros almoçam placidamente não sairá da nossa memória, como não sai da criança que assiste. O terror faz-nos sempre crianças, obrigadas a crescer abruptamente para continuar a viver com o que acabamos de descobrir.
O talento de Barry Jenkins já era evidente em “Moonlight”, que tirou, quase literalmente, os Óscares a “La La Land”, em 2017. Todavia, ainda era frágil, inseguro, a obra de um jovem artista. “The Underground Railroad” é a obra de um mestre. É invulgar encontrar realizadores tão atentos à forma que sejam também os autores dos seus próprios argumentos, mas Jenkins acumula ambas as artes oficinais: pena e pincel, palavra e luz. Não há um plano de “The Underground Railroad” que não pudesse ser uma pintura, e as palavras estão lá a saber dar-lhes espaço, não simplesmente a ser-lhes subjugadas como em “Moonlight”.
Se devemos criar estas imagens? Estas terríveis imagens de crueldade e terror? Jenkins coloca-se a pergunta na mesma reflexão. Será moralmente correto ressuscitar o horror da escravatura americana, por detrás do mito da excecionalidade da terra das oportunidades e do “Let’s make America great again”? Quando tomam o Capitólio agitando bandeiras da Confederação? Mais do que nunca. E mesmo que doa. E sobretudo porque dói.
Há momentos na desumanização de “The Underground Railroad”, no desprezo com que se tratam homens e mulheres não reconhecidos como tal, no envenenamento, no controlo forçado da natalidade, no “acasalamento” igualmente forçado, na violência a que os negros americanos foram submetidos em geral, em que pensamos nas distopias que agora vemos, os “Handmaid’s Tale” e afins, que queremos que permaneçam ficções e nunca profecias. O tour de force de Barry Jenkins põe silenciosamente o dedo na ferida: o pior que nos pode acontecer é o esquecimento. A “distopia” não mora forçosamente no futuro; está ali, no passado recente, só à espera de voltar.